Democracia Económica e Responsabilidade Social nas Sociedades Tecnológicas

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DEMOCRACIA ECONÓMICA E RESPONSABILIDADE SOCIAL NAS SOCIEDADES TECNOLÓGICAS Edição Escola de Direito da Universidade do Minho

2019



DEMOCRACIA ECONÓMICA E RESPONSABILIDADE SOCIAL NAS SOCIEDADES TECNOLÓGICAS

Coordenação Científica Maria Miguel Carvalho | Ana Flávia Messa | Irene Patrícia Nohara

Edição EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho

2018



FICHA TÉCNICA

TÍTULO Democracia Económica e Responsabilidade Social nas Sociedades Tecnológicas DATA Fevereiro 2019 COORDENAÇÃO CIENTÍFICA Maria Miguel Carvalho Ana Flávia Messa Irene Patrícia Nohara AUTORES Ana Flávia Messa | Anabela Susana de Sousa Gonçalves | Antonio Cecilio Moreira Pires Antônio Ernani Pedroso Calhao | Carlos Eduardo Nicoletti Camillo | Everton Luiz Zanella Fabiano Del Masso | Irene Patrícia Nohara | Joana Covelo de Abreu | João Luiz Martins Esteves Lilian Regina Moreira Gabriel Pires | Margarida Santos | Rogério Cury | Sónia Moreira Sophie Perez Fernandes EDIÇÃO EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho APOIO JUSGOV Centro de Investigação em Justiça e Governação PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA Pedro Rito ISBN 978-989-54194-3-2

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ÍNDICE

PARTE I GOVERNAÇÃO PÚBLICA E CIDADANIA NAS SOCIEDADES TECNOLÓGICAS

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Transparência no âmbito da Administração Pública

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A Reforma Administrativa: Organização Social e Governança Pública

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O Mercado Único Digital como catalisador de uma metamorfose digital da administração pública na União Europeia

53

Ciberdemocracia e Novos Desafios de Participação Polítíca nos meios digitais

77

A justiça eletrónica europeia e a modernização do espaço de liberdade, segurança e justiça: a videoconferência no Regulamento n.º 1206/2001 ao serviço de uma integração judiciária

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O comando político-jurídico da Constituição e a inovação tecnológica

117

Cidade, inovação tecnológica e inclusão digital

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PARTE II RESPONSABILIDADE SOCIAL NOS SETORES PÚBLICO E PRIVADO

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Pós-verdade, opinião pública e Estado Social

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Da formação do conhecimento científico à Biotecnologia – algumas considerações sobre as novas fronteiras da ciência e seus impactos jurídicos

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A Procuradoria Europeia, a democracia económica e a ação penal contra as infrações lesivas dos interesses financeiros da União Europeia

187

A corrupção no sector privado e no comércio internacional

207

Breves notas sobre a responsabilidade civil no âmbito da corrupção (por danos causados a terceiro)

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Inovação e tecnologia nas empresas de pequeno porte

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Colaboração premiada e seus efeitos

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NOTA PRÉVIA

O presente livro reúne a maioria das intervenções proferidas no workshop dedicado à «Democracia Económica e Responsabilidade Social nas Sociedades Tecnológicas», que se realizou na Escola de Direito da Universidade do Minho – EDUM (Braga), em 16 de janeiro de 2018. Este workshop – que teve o apoio do Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos (DH-CII), do Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU) da EDUM e da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) -, visou promover a reflexão e o debate de questões éticas, morais e jurídicas colocadas pelo desenvolvimento económico globalizado, no contexto das sociedades tecnológicas contemporâneas, fomentando a partilha de conhecimento e de experiências entre investigadores portugueses e brasileiros. As signatárias, coordenadoras desta publicação e coorganizadoras do workshop, agradecem a disponibilidade demonstrada pelos Colegas das Faculdades de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (S.Paulo), da Universidade de Londrina, da Universidade do Porto e da Escola de Direito da Universidade do Minho para participar nesta iniciativa e que fizeram com que a mesma tenha tido enorme sucesso.

Maria Miguel Carvalho Escola de Direito da Universidade do Minho Ana Flávia Messa Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Irene Nohara Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie

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PREFÁCIO

O convite das professoras Ana Flávia Messa, Irene Nohara e Maria Miguel Carvalho para escrever o prefácio da obra organizada por elas: DEMOCRACIA ECONÓMICA E RESPONSABILIDADE SOCIAL NAS SOCIEDADES TECNOLÓGICAS despertou em mim o interesse em compreender para onde caminhamos, como sociedade. O mundo está próspero. Ao contrário do que nos leva crer as redes sociais, os registros1 indicam que as pessoas morrem menos de acidentes naturais, a expectativa de vida aumentou, e a população enriqueceu. A pesar das discussões sobre a qualidade do que se come, a economia de Thomas Malthus nunca esteve tão errada. O mesmo acontece em relação à evolução tecnológica. Temos acessos à médicos e à remédios, nossos carros estão mais inteligentes e podemos nos comunicar, a qualquer tempo com alguém do outro lado do mundo, em apenas um digitar de números. E com tantas evoluções, tantos progressos, as questões que permeiam essa realidade tecnológica que vivemos e que nos angustiam esbarram na discussão sobre o Justo, o Ético e o Bem. A riqueza econômica que vivemos não obtemperou nossa necessidade de entendermos o universo que nos cerca e de melhorá-la, sempre com observância da lei. Seja no mundo real, seja no mundo virtual. Essa obra, resultado de debates na Universidade do Minho e pesquisas de seus autores, é um convite para compreendermos de que forma, nós, como sociedade podemos caminhar juntos, investindo na melhoria das condições da existência humana, por meio da responsabilidade social nos setores público e privado, com a governação pública e cidadania nas sociedades tecnológicas. É, pois com prazer que apresento esse estudo e que destaco a beleza do vínculo entre esses países, que como irmãos buscam soluções a problemas comuns e para a Academia, que ao transporem os muros das universidades, alcançarão ‘mares nunca dantes navegados´. Professor Felipe Chiarello de Souza Pinto Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbeteriana Mackenzie 1 Disponível em: https://www.gapminder.org/ignorance/, 15.06.2018.

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Parte I Governação Pública e Cidadania nas Sociedades Tecnológicas

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TRANSPARÊNCIA NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Ana Flávia Messa1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a defesa da transparência administrativa na contemporânea concepção de Administração Pública Aberta ou Democrática. A transparência administrativa é o esclarecimento compartilhado da atividade administrativa, fundamentada na governança, na era digital e no movimento anticorrupção, e caracterizada pela visibilidade, confiabilidade e responsabilidade no exercício do poder. Dentre os movimentos de defesa da transparência foi objeto de destaque o digital. Palavras-Chave: transparência – visibilidade – esclarecimento – abertura – democratização. Abstract: The present work aims at the defense of administrative transparency in the contemporary conception of Open or Democratic Public Administration. Administrative transparency is the shared clarification of administrative activi1 Advogada. Mestre em Direito Político e Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutora pela Universidade de Coimbra. Doutora pela Universidade de São Paulo. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro do Conselho Científico da Academia Brasileira de Direito Tributário. Membro do Conselho Editorial da International Studies on Law and Education. Email: anafmessa@uol.com.br. Professora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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Transparência no âmbito da Administração Pública Ana Flávia Messa

ty, based on governance, the digital age and the anticorruption movement, and characterized by visibility, reliability and responsibility in the exercise of power. Among the movements for the defense of transparency was highlighted the digital. Keywords: transparency - visibility - clarification - openness - democratization. Sumário: 1. Novo Direito Administrativo. 2. Modernização da Administração Pública. 3. Conteúdo Jurídico da Transparência Administrativa. 4. Defesa da Transparência Administrativa. 5. Administração Pública na Era Digital.

1. Novo Direito Administrativo O Direito Administrativo se transforma continuamente2 desde as suas origens no ritmo da história ligada ao modelo de Estado cuja evolução ele segue, de maneira que traduz novos institutos, teorias e princípios e traz os estigmas da época em que se formou3. Na trajetória de construção e estabelecimento de bases e fundamentos do Direito Administrativo, o funcionamento das estruturas administrativas do Estado passa por mudanças e pressões da nova ordem mundial com os mitos da

2 “El problema ontológico fundamental, de la exégesis del ser en cuanto tal, abarca, por ende el poner de manifiesto la ‘temporalidad’ del ser. En la exposición de los problemas de la temporalidad se da por primera vez la respuesta concreta a la pregunta que interroga por el sentido del ser (HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. Tradução de José Gaos. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 29); “O persistente não deve converter-se em impedimento onde o movimento e progresso estão dados; senão o desenvolvimento passa por cima da normatização jurídica” (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 46). 3 BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 135; “O “novo” já está acontecendo, o problema é que os atuais modelos teóricos não conseguem percebê-los e retratá-lo. Há de se criar um modelo que permita reproduzir a realidade concreta e a partir daí articular uma proposta de mudança” (WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001, p. 352).

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globalização4 e do neoliberalismo, a rápida evolução dos fatos tecnológicos e financeiros, as constantes modificações legais, a ponto de se cogitar, neste contexto histórico-social, de teorias reflexivas que geram novos modelos explicativos de ver o mundo, de explicar o novo e de olhar o passado5. Ao constatar que o Direito Administrativo avança de forma progressiva seja pela construção, seja pela retificação, pode-se afirmar que os seus institutos básicos estão sofrendo uma rediscussão e ressignificação extraída do dinamismo da vida estatal, notadamente no que tange aos limites de sua intervenção na autonomia do indivíduo e nas relações interprivadas cujos produtos encarnam valores que dão sentido aos sistemas administrativos que constituem num con-

4 A imagem que caracteriza de forma original a globalização é a de um processo multidimensional expansionista de interesses das sociedades humanas, e de integração mundial com a intensificação da interdependência entre Estados, organizações e indivíduos. Esta imagem espelha, nesta dinâmica civilizacional inevitável, de forma clara a desterritorialização, com remoção de fronteiras e uma complexidade relacional entre os atores internacionais e nacionais intensificadas com as implicações na convivência entre a ordem jurídica global e as ordens jurídicas nacionais. Esse adensamento das relações com integração mais estreita dos países e dos povos, surgido de um progressivo desenvolvimento de tendências anteriores, ou ainda como algo novo, deflagrado seja com o advento das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI, seja em épocas mais antigas de contatos e viagens intercontinentais, assumiu desde o último quartel do século XX, com a revolução das comunicações, uma propagação ampla, diversificada e profunda. É verdade que, na prática, as consequências deste movimento intenso que atua em múltiplas direções, tendo o capitalismo como seu principal e não único formador comporta conteúdos valorativos de dimensão positiva, uma vez que há uma interação que visa crescimento e consolidação sócio-econômica, política e cultural e, por outro lado, de dimensão negativa, uma fonte geradora de dificuldades como formato de problemas mundiais que exigem solução para um mundo melhor. (BALL, S.J. Cidadania global, consumo e política educacional. In: SILVA, L.H. A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 121-137; MILLER, M. Where is globalization taking us? Why we need a new “Bretton Woods”. Futures, 1995, 27 (2), p. 126; OHMAE, Keinichi. O Fim do Estado-Nação: A Ascenção das Economias Regionais. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. 5; SCHOLTE, Jan. Globalization: a critical introduction. Nova York: Palgrave, 2000, p. 46; HELD, D. et al. Global transformations: politics, economics and culture. Cambridge: Polity Press, 1999, p. 16; HIRST, Paul & THOMPSON, G. Globalização em questão. Petrópolis: Vozes, 2002; RODRIK, D. Has globalization gone too far? Washington: Institute for International Economics, 1997; HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Império. Buenos Aires: Paidós, 2001; SOROS, G. Globalização. Lisboa: Temas e Debates, 2003; GARRETT, G. The causes of globalization. Comparative Political Studies, 33 (6/7), 941-991, 2000; MAGNOLI, Demétrio. Globalização, Estado Nacional e Espaço Mundial. São Paulo: Moderna, 1997; NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. A Globalização e o Direito Administrativo. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 226, out/dez. 2001, p. 265-280; CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996; COX, Robert W. A perspective on globalization. In: MITTELMAN, James H. (ed.). Globalization: critical reflections. London: Lynne Rienner Publishers, 1997). 5 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2011, p. 23; BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 17; HUGHES, J. A filosofia da pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 73.

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junto de descontinuidade imersa e atuante sobre o estudo dos fins e postulados do Direito Administrativo6. Desde a última década do século XX há fundamentos suficientes para composição de um ideário das novas tendências do Direito Administrativo, como o alargamento do princípio da legalidade7, a crescente utilização de institutos de direito privado, a consensualidade, subsidiariedade, agencificação, processualização...diante de desafios técnicos e tecnológicos que ultrapassam em muito as categorias conceituais dos séculos XVIII e XIX8. Dentre o que HESPANHA9 denominou com acerto, “... não se pode ignorar que estamos hoje perante um direito realmente diferente daquele para o qual foi construída a dogmática jurídica corrente”. GRAY já alertava que a história não é progresso ou declínio, mas ganhos ou perdas recorrentes10. O avanço do conhecimento ao nos guiar no mundo da vida, possibilitando o debate em torno dos seus problemas reais, gera novas perspectivas para a compreensão e explicação de certos aspectos da realidade. O progresso das ciência é um processo contraditório marcado pelas revoluções do pensamento científico, e pela construção de paradigmas, processo complexo e multifacetado, que, como modelos explicativos, consideram problemas, elege métodos e permite o foco da pesquisa. A mudança de paradigmas é originada da constatação de que a teoria científica é dinâmica, e traduzida num processo de construção de novas formas de pensar e entender a realidade, e superação de outros modelos de racionalidade. Essas mudanças encontram-se de tal forma imbricadas nas estruturas sociais que se torna necessário, considerar a atividade do cientista sob o influxo de fa-

6 ESTORNINHO, Maria João. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Editora Almedina, 2003, p. 13-14; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coords). Supremacia do interesse públicos e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p.9. 7 (...) a mera juridicidade da atuação estatal como elemento de legitimação, se tornou insatisfatória a partir do momento em que começou a também ser exigida a obtenção de resultados. Não se considera mais suficiente que os governantes não violem a lei: exige-se deles a redução do desemprego, o crescimento econômico, o combate à pobreza, solução para os problemas de habitação e saúde....” (GROISMAN, Enrique. Crisis y Actualidad del Derecho Administrativo Económico. In: Revista de Derecho Industrial, vol. 42, p. 894). 8 CARNEIRO DA FRADA. ‘“Vinho Novo em odres Velhos”? A responsabilidade civil das “operadoras de Internet” e a doutrina comum da imputação dos danos’. In: ROA, 1999, pp. 665-692. 9 HESPANHA, Antônio Manuel. Pluralismo Jurídico e Direito Democrático. São Paulo: Annablume Editora, 2013. 10 GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Tradução Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 169.

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tores sociais, externos ao conhecimento científico, sem descurar da causalidade intrínseca do domínio interno da ciência. Pensar e escrever sobre a mudança científica além de instigante, é refletir sobre ideias e coisas dentro da contingência e heterogeneidade dos processos históricos, evidenciando as influências sócio-culturais nos conteúdos cognitivos, sendo lógico considerar na linha de entendimento de SHAPIN & SCHAFFER que soluções para problemas de conhecimento são soluções para problemas de ordem social11. Com a evolução do Direito Administrativo, vivemos nos dias atuais numa transição12 paradigmática13, em que a dinâmica da realidade exige novos paradigmas que consigam melhor explicar os problemas contemporâneos14. Esta imagem espelha de forma muito sugestiva os dilemas e os desafios epistemológicos que existem no século XXI, em que múltiplos e inter-relacionados problemas evidenciam a existência de um estado de mal-estar15.

11 SHAPIN, Steven & SCHAFFER, Simon. Leviathan and the air-pump: Hobbes, Boyle and The Experimental Life. Princeton: Princeton University Press, 1985. 12 “O mundo é “um” em certo sentido, mas radicalmente cindido por desigualdades de poder em outro. E um dos traços mais característicos da modernidade é a descoberta de que o desenvolvimento do conhecimento empírico não nos permite, por si mesmo, decidir entre diferentes posições de valor” (GIDDENS, A. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Edunesp, 1991). 13 [...] a definição da transição paradigmática implica a definição das lutas paradigmáticas, ou seja, das lutas que visam aprofundar a crise do paradigma dominante e acelerar a transição para o paradigma ou paradigmas emergentes”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000. v. 1, p. 19). 14 “Os paradigmas fazem a ponte entre a teoria e a realidade por meio da elaboração de teses científicas que são utilizadas na elaboração de programas e sistemas, na execução de políticas, de projetos de desenvolvimento. Estes têm como referências os conhecimentos construídos a partir de determinada visão de mundo que projeta as ações necessárias para a transformação da realidade”. (ARENDT, Hannah. O que é política?. In: O que é política?. Tradução: Reinaldo Guarany. Rio Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 21-25). 15 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1998.

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São tantas as mudanças ocorridas no cenário jurídico nos últimos tempos, a atuação do Estado Garantidor16, a emergência de uma quinta17 ou até sexta18 geração dos direitos fundamentais, o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação19, a globalização20, a constitucionalização dos ramos do direito, a valorização dos direitos fundamentais, que se põe obrigatoriamente na

16 “...há quem fale de Estado “Pós-Social”, visto que o Estado deixa de ser o Estado Providência (o Estado Social de Serviço Público) e, sem regressar ao Estado Liberal, se transforma, nas áreas econômicas e sociais num Estado de Garantia (ou “Estado Garantidor”) que regula, orienta, incentiva as atividades privadas, designadamente e com especial intensidade aquelas que prosseguem interesses gerais ou colectivos.” (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Lições de Direito Administrativo. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p.22). 17 Paulo Bonavides “destaca a paz como um direito de quinta geração que legitima o estabelecimento da ordem, da liberdade e do bem comum na convivência dos povos. Segundo ele, a concepção da paz no âmbito da normatividade jurídica onfigura um dos mais notáveis progressos já alcançados pela teoria dos direitos fundamentais” (BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental da quinta geração. Revista Interesse Público. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 1999-, v. 8, nº. 40, de nov./dez. 2006); Outros defendem que a biotecnologia e a informática fazem parte dos direitos de quinta geração (MELO, A. N. Liberdade de expressão: um direito fundamental na concretização da democracia. Fortaleza: Premius, 2009. 18 FACHIN , Zulmar, SILVA, Deise Marcelino da. Acesso à água potável: direito fundamental de sexta geração. São Paulo. Millennium editora. 2010. p. 74. 19 DOMINGUEZ LUIS, José Antonio. El derecho de información administrativa : información documentada y transparencia administrativa. Civitas: Revista Española de Derecho Administrativo, Madrid, n. 88, out./dez. 1995. 20 A globalização na era da informação gera impactos significativos no espaço social e na estrutura estatal com assunção de um papel de regulador num conjunto de redes e conexões interagentes. Isso explica precisamente que, na perspectiva sócio-política, há mudanças não apenas na estrutura do Estado Nacional, nos aspectos da governabilidade, legitimidade e juridicidade, mas também na configuração de uma sociedade civil mais informada e consciente de seus interesses, exerce pressão por participação e eficiência no atendimento de suas necessidades. Assim surge o Estado em mutação, baseada na referida globalização que, por um lado fragmenta a soberania estatal, num contexto policêntrico e, por outro lado, gera a necessidade de uma organização de poder coerente ao pluralismo jurídico e à eficiência nos reclamos sociais. (TOFFLER, A. A terceira vaga (F.P.Rodrigues, Trad.).Lisboa: Livros do Brasil, 1999; ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Tradução por Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 214; OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria de princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. Porto Alegre: Lúmen Júris, 2007).

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agenda da discussão, em face da inadequação da “dogmática jurídica clássica”21 às novas realidades jurídico-administrativas, a releitura de parâmetros comportamentais da administração pública em compatibilização com a temática da dignidade da pessoa humana, melhoria da performance administrativa e ampliação da prática democrática. No contexto da renovação conceitual e compreensiva, a insuficiência das tradicionais matizes teóricas do Direito Administrativo para a resolução dos problemas surgidos no seio da sociedade contemporânea regida por uma narrativa do inconstante22 combinada com a evolução tecnológica, a revolução digital e a globalização, demonstra a necessidade de repensar institutos, conceitos e princípios deste ramo do Direito. As transformações das feições do Estado, notadamente nos anos 90, suscitou a necessidade de rever a forma de compreensão dos paradigmas da matéria para adequação aos variados e sucessivos movimentos reformadores e modernizadores do Estado. É verdade que, na prática, a busca de referenciais na ação administrativa representa formas de caracterização da atuação pública de qualidade que por um lado, exercem pressão de aprimoramento dos procedimentos e o funcionamento dos serviços públicos, por outro lado, abrangem novos direitos da cidadania e democracia participativa.

2. Modernização da Administração Pública Das considerações acima expendidas de que não há um novo Direito Administrativo, constata-se a existência do questionamento e o enfrentamento acerca da necessidade de repensar temas relevantes deste ramo do direito para 21 Não é possível defender o dogmatismo na ciência jurídica, que considera a norma jurídica como algo dado e imobilizado, pois tal situação é incompatível com a dinamicidade do conhecimento científico, e com o influxo determinante dos aspectos axiológicos e críticos no estudo do direito. A adoção do termo da dogmática foi com o sentido de ramo da ciência jurídica que estuda as normas jurídicas vigentes em uma determinada comunidade. O uso das aspas é justificado, pois tal expressão reúne dois termos antagônicos. No estudo do direito as normas só possuem sentido quando conectados com os fatos e os valores (KAUFMANN, Arthur. Filosofia del derecho. Tradução de Luis Villar Borda e Ana Maria Montoya. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2002; MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; MARÍN, Rafael Hernández. Introducción a la teoría de la norma jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2002). 22 “O rótulo genérico abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estado. A era da velocidade. A imagem acima do conteúdo. O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a angústia do que não pode ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras. Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós-freudiana.” (ADEODATO, João Maurício. Ética & Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 353).

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que estes se adaptem à dinamicidade da realidade contemporânea e às novas demandas sociais. Neste contexto da rediscussão dos contornos do Direito Administrativo, a Administração Pública se insere num processo dinâmico que envolve uma premente readequação do seu modo de ser e de atuar, de que participam os gestores na satisfação dos interesses e necessidades da sociedade. Com efeito, a reforma administrativa23 se propõe a introduzir aperfeiçoamentos e correções na Administração Pública. Opera no rumo da evolução. Reflete, com maior ou menor profundidade, uma insatisfação com a estrutura e o funcionamento da administração pública, cuja organização seja alterada ou substituída. A modernização administrativa abre passagem para a reflexão sobre flexibilidade, eficiência, simplicidade e responsabilidade quando trata da melhoria da performance do aparato administrativo. Na realidade, as reformas administrativas nada mais são do que a recolocação do papel da administração pública no cenário contemporâneo. É preciso considerar, no entanto, que desde os anos 70, com maior expressão nos anos 80/90, reformas administrativas ocorrem em diferentes contextos espaciais e temporais, sob a guarda de diferentes escopos e valores, com inovações em políticas públicas de gestão e no desenho de organizações programáticas, expressas na introdução de práticas típicas de mercado na administração pública, bem como em prescrições para melhoria da efetividade da gestão pública24.

23 É um conjunto sistemático de providências destinadas a melhorar a administração pública de um dado país, com eficiência na prossecução dos seus fins, e coerência com os princípios norteadores de sua atuação (FREITAS DO AMARAL, D. Curso de Direito Administrativo. Coimbra, Almedina, 2000). 24 SECCHI, Leonardo. Modelos organizacionais e reformas da administração pública. In: Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro 43 (2): 347-69, Mar./abr. 2009; REGO, G. Gestão empresarial dos serviços públicos - Uma aplicação ao sector da saúde. Porto: Vida Económica, 2008; BRASIL. MARE. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: MARE, 1995, p. 21.

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Essa onda reformista decorre da crise do Estado de Bem-Estar25, face ao expansionismo administrativo distorcido na gestão de uma imensa quantidade de atividades econômicas, sociais e culturais e ao processo de globalização, a administração pública revela-se incapaz de satisfazer as demandas sociais26. Essa redefinição da Administração Pública é uma constante que ganhou destaque após a segunda guerra mundial em razão dos modelos pós-burocráticos inspirados em discursos e práticas do setor privado, dos quais destacam os modelos gerenciais27 e o de governança pública28. Diversos autores, numa concepção unitária, tratam das reformas administrativas, condicionadas pelo contexto histórico, complexidade social e orientação do poder político29, falando que embora haja vários modelos de modernização administrativa, em resposta aos desmandos e desleixos na gestão pública,

25 Com a transição do Estado Liberal para o Estado Social, substituindo um papel negativo para um papel ativo no desenvolvimento econômico da sociedade e no desenvolvimento pessoal dos próprios cidadãos, a administração pública assume a gestão das necessidades coletivas de segurança, bem-estar econômico e social. Após a Revolução Industrial surgem reinvindicações sociais marcadas pelo contraste entre os interesses do capital e do proletariado. Somada a essa luta pela realização efetiva da justiça social, sob o influxo da crise de 1929 e a Grande Depressão, verifica-se a necessidade de substituir a ideia do livre-mercado para um necessário capitalismo de Estado, influenciado pelas ideias keynesianas de busca do pleno emprego. A Revolução Russa de 1917 inspira a concessões no âmbito das relações sociais para garantir a legitimidade estatal em face da ordem mundial polarizada, com a consequente incorporação de direitos sociais no âmbito das constituições. Neste cenário surge o Estado Social com um papel de garantidor dos direitos sociais, assumindo a condição agente do desenvolvimento econômico e social. No aspecto social aparece como garantidor do bem-estar da coletividade através da satisfação de suas necessidades básicas. No aspecto econômico assume um papel de intervenção na economia não apenas para alcançar o pleno emprego, mas também para atuar nos setores importantes da economia. No aspecto administrativo, surge o fenômeno da estatização com o incremento da burocracia de modelo weberiano. Na implementação deste novo modelo estatal, ao mesmo tempo em que o Estado assume um papel positivo, no cenário jurídico, ganha fama o positivismo em contraposição ao jusnaturalismo predominante no Estado Liberal. 26 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: Lógica e Mecanismos de Controle. In: Brasília: MARE, Cadernos MARE, n. 1, 1997. Disponível em< http://www.scielo.br/pdf/ ln/n45/a04n45.pdf >. Acesso em: 10 agosto 2013. 27 “Na verdade, embora a gerência tenha sido inventada há milhares de anos, ela somente foi descoberta depois da Segunda Guerra Mundial” (DRUCKER, Peter. Sociedade pós capitalista. São Paulo: Pioneira Editora, 1994, p. 23). 28 É atividade que tem por objeto coordenar as necessidades e interesses interdependentes com criação e implementação de políticas e projetos de desenvolvimento de interesse público, exercida sob regime de parâmetros legais e legítimos e vinculada a resolver problemas sociais e a gerar oportunidade de um desenvolvimento futuro sustentável. 29 MOZZICAFFREDO, J. Modernização da Administração Pública e Poder Político. In: Administração e Política, Perspectivas de Reforma da Administração Pública na Europa e nos Estados Unidos. C. Editores Oeiras, 2001.

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existe um objetivo comum: a busca pela boa administração30 em seus comportamentos, como um processo de implementação de métodos e técnicas para aprimoramento dos sistemas administrativos31. A boa administração nasce, então, como um projeto racional na atuação administrativa, impondo deveres no exercício das competências administrativas, e limitando a arbitrariedade estatal. A sua criação surge, ainda, como uma forma de orientação o poder relativamente à tomada de decisões. Nesta busca, fala-se na necessidade do reconhecimento de uma proposta de gestão pública que responda aos desafios da pós-modernidade32. Isto significa que no discurso pós-moderno, as referências paramétricas na atuação da Administração Pública passam a serem compreendidas com novas premissas jus-políticas extraídas da vida social contemporânea no sentido de arejar a burocracia num cenário contingente, instável e imprevisível, solidificado pela globalização, e caracterizado pela invasão da tecnologia eletrônica, automação e informação33. A proposta finalística de transformação da Administração Pública, levada a efeito nas reformas administrativas, propondo a adoção de uma boa administração é a necessidade de uma Administração Pública Aberta, com visão mais ampla do papel emancipatório da cidadania, de forma a propiciar a interferência e o controle da sociedade sobre as decisões administrativas fundamentais. Na consecução desta “capacidade coletiva” da Administração Pública para atingir resultados públicos e ser responsivo aos anseios dos cidadãos, é preciso 30 Embora nascido no âmbito doméstico dos Estados-Membros da União Europeia, com aspiração programática, em forma de princípio, foi no ambiente do direito comunitário europeu que a ideia da “boa administração pública” ganha o status de direito fundamental (GIL, J.L.M. 2013. Una construcción jurídica de la buena administración. Revista de Direito Administrativo & Constitucional,13 (54):13-44). 31 FORJAZ, Maria Cecília Spina. Globalização e Crise do Estado Nacional. In Revista de Administração de Empresas, FGV, São Paulo, Brasil, v.40 n.2, abril/junho de 2000. 32 “A pós-modernidade é um conceito ainda em construção. Existem, portanto, várias interpretações dadas à expressão, desde que os que entendem que ela representa uma elevação de ideais modernos de desempenho, calculabilidade e valorização do indivíduo autônomo, até o que enxergam nela uma significativa ruptura com a modernidade” (NOHARA, Irene Patrícia. Fundamentos do Direito Público. São Paulo: Editora Atlas, 2016). 33 ROCHA, J.A. Oliveira. O Modelo Pós-Burocrático: A Reforma da Administração Pública à Luz da Experiência Internacional Recente. In: Forum 2000: Reforma do Estado e Administração Gestionária. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 3-4 Julho de 2000, p. 1-6; ARAÚJO, J. Improving public service delivery: the crossroads between NPM and traditional bureaucracy. In: Public Administration, 2001, 79, 4, 915-932; FREDERICKSON, H. Comparing the reinventing government management with the new public administration. In: Public Administration Review, 1996, 56, 3, 263-270; HOOD, C. Emerging Issues in Public Administration. In: Public administration, 1995, 73, Spring, 165-183.

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desenvolver um modo aberto de condução da gestão pública. Para tal desiderato, é que a transparência, como qualidade do agir administrativo pode melhorar o diálogo e a interação da Administração Pública e sociedade.

3. Conteúdo Jurídico da Transparência Administrativa O regime jurídico-administrativo34 precisa acompanhar as profundas transformações pelas quais passam o modelo de Estado, e na mesma esteira, a função administrativa35, pois ao representar a ordenação sistemática dos princípios jurídicos disciplinadores na condução da atividade administrativa deve buscar melhor servir aos fins do Estado e aos interesses da sociedade. Com efeito, a partir das últimas décadas do século XX36, registram-se novas incursões orientadas à legitimidade da administração pública, centrada em modelos de gestão pública que enfatizem a noção de transparência administrativa, possibilitando a previsibilidade das condutas estatais, e por consequência promover a confiança dos cidadãos no Estado, e contribuir no combate da corrupção e aperfeiçoamento da governança democrática. A transparência administrativa é exigida em diversos países, inclusive por organismos internacionais, como o Banco Mundial, porque no contexto das reformas administrativas inspiradas na Nova Gestão Pública, ela funciona como instrumento de controle da Administração Pública, elemento da nova relação entre Estado e sociedade com o reforço da confiança dos cidadãos nas instituições públicas, e uma das características fundamentais do bom governo. Mais que um objetivo ou parâmetro de atuação estatal, a transparência administrativa é verdadeira obrigação estatal geradora da confiança do cidadão 34 A expressão regime jurídico-administrativo consiste no conjunto de normas jurídicas que instituem prerrogativas públicas e sujeições para a Administração Pública, vinculadas à satisfação de determinados fins e que não se encontram nas relações entre particulares. Só se pode, portanto, falar em direito administrativo, no pressuposto de que existam princípios que lhe são peculiares e que guardam entre si uma relação lógica de coerência e unidade (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo do Regime Jurídico-Administrativo e seu Valor Metodológico. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/30088. Acesso em 16/11/2013). 35 ORTIZ DIAS, José. El horizonte de las administraciones públicas en el cambio de siglo: algunas consideraciones de cara al año 2000. In: SOSA WAGNER, Francisco (Coord.) El derecho administrativo en el umbral del siglo XXI: homenage al Profesor Dr. D.Ramón Martín Mateo, Valencia: Tirant lo Blanch, 2000. t. 1, p. 63-117; VILLORIA MENDIETA, Manuel. La modernización de la administración como instrumento al servicio de la democracia. Madrid: Inap, 1996, p. 17; MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: RT, 2003, p. 133-134; AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2001. v. 1, p. 199. 36 CASSESE, Sabino. A crise do Estado. Campinas: Saberes Editora, 2010; FERRAJOLI, Luigi. Los Funcdamentos de los derechos fundamentales – debate com Luca Bacelli, Michelangelo Bovero, Riccardo Guastini, Mario Jori, Anna Pintore, Ermanno Vitale y Danilo Zolo. Edición de Antonio de Cabo y Gerardo Pisarello - 3ªedición. Madrid: Editorial Trotta, 2007.

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no Estado, um instrumento de condução dos negócios públicos e concretização dos direitos fundamentais, além de resultado que demonstra eficiência administrativa, fortalecimento da participação popular e viabilização do controle social sobre a administração pública. A transparência administrativa é o esclarecimento compartilhado da ação administrativa. Na busca da sua essência, e com base nos diversos ordenamentos jurídicos, a transparência administrativa assume natureza complexa, já que se manifesta através de uma série de atos, medidas e procedimentos que possibilitem a visibilidade da atuação do Estado diante da coletividade. Neste perfil complexo, pode-se afirmar que quando os cidadãos recebem da Administração Pública a visibilidade de suas ações que lhes afetam é um dos conteúdos essenciais do respeito aos seus direitos fundamentais. Do ponto de vista operacional, o conteúdo mínimo da transparência administrativa significa que toda a ação administrativa de interesse público deverá ser esclarecida e compartilhada, e esse esclarecimento compartilhado deverá apresentar, necessariamente, três características específicas: a) pela visibilidade, concretiza-se o acesso físico e intelectual às atividades da Administração Pública; b) pela confiabilidade, concretiza-se o maior envolvimento dos cidadãos na tomada das decisões administrativas. A observação do Estado Democrático de Direito em funcionamento mostrou-se um importante elemento no desenvolvimento do cânone democrático, passando pela análise da relação entre Administração Pública e sociedade. Abandonando a feição autoritária com adoção de medidas administrativas sem prévia possibilidade de discussão pública passou a encarnar um papel democrático, permitindo uma maior participação dos cidadãos na esfera administrativa; c) pela responsabilidade, enfim, concretiza-se o dever da Administração Pública de prestar contas, cujo atributo fundamental seja um poder administrativo justificado e responsivo às demandas da sociedade.

4. Defesa da Transparência Administrativa Em um Estado Democrático de Direito, a defesa da transparência é legítima quando seu exercício é estruturado em um ambiente propício à visibilidade da atividade administrativa e promove a legitimidade material de suas ações, construindo uma Administração Pública mais aberta, próxima, racional e responsável37. Neste sentido, a necessidade de uma Administração Pública aberta depende da transparência administrativa. Esta é um atributo do agir administra37 MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa: publicidade, motivação e participação popular. São Paulo: Saraiva, 2004, p.3.

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tivo que depende da estruturação de uma Administração Pública Democrática. Esta democracia administrativa há de ser alcançada por movimentos organizados para tornar a ação administrativa aberta na construção conjunta e plural das decisões administrativas fundamentais da sociedade. Os movimentos podem ser analisados em duas perspectivas: a) geral, na qual são identificados traços comuns de caráter geral entre os distintos ordenamentos, a ponto de se cogitar da formação de um “Direito Administrativo Global”38; b) específica, na qual é analisada a realidade concreta de um determinado Estado Administrativo. No caso do presente artigo optamos pela perspectiva específica do Direito Administrativo Brasileiro. Neste cenário, são três movimentos de defesa da transparência administrativa direcionados a uma democratização da função administrativa (abertura da ação administrativa): a) movimento da governança; b) movimento da anticorrupção; c) movimento digital. O primeiro movimento é o da governança, com sinais de remodelação na capacidade dos governos de administrar os recursos econômicos e sociais de um país por uma rede de atores que interagem entre si para atuação responsiva conciliatória do bem comum com os valores democráticos. O próprio ambiente da governança propicia a transparência, pois concebe na relação entre Administração Pública e sociedade dimensão da cidadania, aumentando a confiança do povo na construção e monitoramento das políticas públicas sobre os direitos fundamentais. Frequentemente as reformas administrativas restritas a aspectos instrumentais e técnicos com vistas à eficiência em um sentido estrito não são suficientes para produzir um desenvolvimento mais inclusivo e sustentável, pois se trata de um propósito focado na redução de custos com a incorporação de princípios e mecanismos de mercado na organização e funcionamento do Estado. Por isso, reconhece-se na governança pública, além da necessidade da dimensão técnica, a dimensão sociopolítica pautada em um projeto democratizante39. A convergência dos atores, grupos sociais e instituições envolvidas na ação pública com a finalidade de definir objetivos comuns, afastando a sociedade dos efeitos negativos da tradição top-down que se desenvolveu no bojo das democracias representativas resulta de um aprofundamento democrático estruturado a partir de premissas comprometidas com as conquistas para além do voto.

38 HACHEM, Daniel Wunder. Administração Pública Inclusiva, Igualdade e Desenvolvimento: O Direito Administrativo Brasileiro Rumo à Atuação Estatal para Além do Mínimo Existencial. In: MARRARA, Thiago. Direito Administrativo: transformações e tendências. São Paulo: Almedina, 2014, p. 391-392. 39 PRATAS, Sérgio. Transparência do Estado, Administração Aberta e Internet. Coimbra: INA Editora, 2011.

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Nesse quadro, sendo necessário conduzir uma vida democrática para além de fixação de meios do exercício do jogo democrático, incluindo a implementação de fins e resultados, é preciso uma efetiva participação dos cidadãos na conformação e consecução do interesse público. Logo, a viabilização desta legitimidade democrática serve-se de duas estratégias determinantes para a gestão das tarefas públicas: a) a cooperação do cidadão na consecução do interesse público com a observância da participação popular na Administração Pública difundida pelas crises da democracia representativa e pela insuficiência dos controles vinculados às estruturas institucionais do Estado, e que caminha para que haja influência pública e debate sobre políticas públicas; b) sob o mote da responsividade, a formação de uma vontade administrativa de “baixo para cima” num processo de redefinição da relação com a sociedade, mediante a criação de canais de negociação. O segundo movimento da anticorrupção é desenvolvido no contexto brasileiro, de forma a realizar a defesa da transparência, a partir da década de 80/90, por um sistema normativo de combate dos atos de corrupção estruturado em três eixos: prevenção, detecção e repressão, e por uma atuação da sociedade e das instituições oficiais brasileiras, com destaque à operação Lava-Jato. E por vim o terceiro movimento é o digital, inserido num processo de desenvolvimento tecnológico da sociedade com reflexo imediato nas estruturas da Administração Pública. A tecnologia40 é parte integrante da vida do homem e da sociedade41, funcionando como ferramenta para o desenvolvimento da civilização42. Na verdade, as sociedades são construídas a partir da engenharia tecno-

40 “conjunto de atividades humanas, associadas a sistemas de símbolos, instrumentos e máquinas, visando à construção de obras e à fabricação de produtos por meio de conhecimento sistematizado” (VARGAS, M. Para uma filosofia da tecnologia . São Paulo: Alfa Omega, 1994).; “é a aplicação do conhecimento científico para obter um resultado prático”( BRITO, Glaucia da Silva. Educação e Novas Tecnologias: um re-pensar. Curitiba: Ibpex, 2008). 41 “A tecnologia costumava avançar em estágios mais lentos, mais diferenciados. O livro reinou como meio de Comunicação preferido por vários séculos; os jornais tiveram cerca de 200 anos para inovar; até o cinema deu as cartas durante 30 anos antes de ser rapidamente sucedido pelo rádio, depois pela televisão, depois pelo computador pessoal” (JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001). 42 “o valor da tecnologia não está nela em si mesma, mas depende do uso que fazemos dela.” (CÔRREA, Juliana. Novas tecnologias de informação e da comunicação: novas tecnologias de ensino e aprendizagem. In: COSCARELLI, Carla Viana (org). Novas tecnologias, novos textos, novas formas de pensar. Belo Horizonte: Autentica, 2002); CARDOSO, T. F. L. Sociedade e Desenvolvimento Tecnológico: Uma Abordagem Histórica. In: Grinspun, M.P.S.Z. (org.). Educação Tecnológica : Desafios e Pespectivas. São Paulo. Cortez. 2001; VERASZTO, E. V. Projeto Teckids: Educação Tecnológica no Ensino Fundamental. Dissertação de Mestrado. Campinas. Faculdade de Educação. UNICAMP. 2004.

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lógica43. A cada dia deparamo-nos com inovações tecnológicas que influenciam de forma decisiva nas relações sociais. Com isso, se o desenvolvimento tecnológico44 faz parte das dinâmicas sociais, bastante peculiar à perspectiva do progresso técnico, é possível afirmar, com a chegada dos computadores, e principalmente com a internet, que estamos vivendo numa realidade em que o fluxo de mensagens e imagens entre as redes passou a ser o ingrediente básico nas relações sociais, revelando a configuração de uma sociedade tecnológica marcada pelo avanço da tecnologia de informação, uma verdadeira sociedade de informação45. No contexto da sociedade de informação46, os avanços da microeletrônica permitiram o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, e o surgimento da era eletrônica, fatores que condicionam a exigência de um momento histórico-cultural mais aberto e potencializado pela difusão, disseminação e transmissão de informações para todos e por todos47.

43 SILVA, Antonio de Pádua Dias. O ensino de língua portuguesa frente às tecnologias da informática. In: ALMEIDA, M. L. L. ARANHA, S. D. G. CAMPINA, T. N. F. (Orgs.) Ensino de língua: do impresso ao virtual. Campina Grande: EDUEPB, 2006 44 “O desenvolvimento tecnológico da humanidade pode ser classificado em quatro eras: industrial, elétrica, eletrônica e da informação” (MOODLE/UFBA-EDC/20072. EDC - Educação a Distância 2007.2. Curso: Módulo I - Eras da Tecnologia. 2007.2. Disponível em: <www.moodle.ufba.br/ mod/book/view.php?id=13138>. Acesso em: maio de 2015). 45 “um estágio de desenvolvimento social caracterizado pela capacidade de seus membros (cidadãos, empresas e administração pública) de obter e compartilhar qualquer informação, instantaneamente, de qualquer lugar e da maneira mais adequada” (GASPARETTO JÙNIOR, Renato. Et all. A sociedade da informação no Brasil: presente e perspectivas. Rede Telefônica de Comunicação. Takano editora Gráfica, 2002); “A convergência e interação entre um novo paradigma tecnológico e uma nova lógica organizativa é que constitui o cimento histórico da economia informacional.” (MARCONDES, Valéria. Sociedade da Informação”. In: Enciclopédia INTERCOM de Comunicação. São Paulo:Intercom, 2010). 46 A sociedade de informação pode ser vista como uma revolução da informação ocorrida na história da humanidade após a invenção da escrita, livro escrito e impressão, ou como paradigma construído em função da dependência da tecnologia e da ciência, como sequência conceitual ao longo do eixo da produção e dos tipos de conhecimento utilizados (BELL, D. O advento da Sociedade Pós-Industrial: uma tentativa de previsão social. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Editora Cultrix, 1973, p. 25; KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: Novas Teorias sobre o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 21). 47 “A capacidade criar, difundir e usar conhecimento e informação é cada vez mais o principal fator para o crescimento econômico e a melhoria da qualidade de vida” (OCDE, OCDE SCIENCE. Technology and Industry Scoreboard 1999. Benchmarking Know ledge – based Economies, OCDE, 1999); HOBSBAWM, E O Novo Século (Entrevista a Antônio Polito). São Paulo, Companhia das Letras, 2000

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5. Administração Pública na Era Digital O processo evolutivo das tecnologias da informação encontra abertura da Administração Pública para integrá-las na condução da gestão pública, pela inovação e adaptação como componentes necessários no funcionamento da máquina pública. Inovação significa atualização dos métodos e ferramentas da evolução tecnológica na formulação e gestão das políticas públicas e na prestação dos serviços públicos. No aspecto da inovação assume especial relevância a criação e manutenção da infraestrutura necessária de plataformas web, bem como o tipo e a forma de colocação dos dados nestas plataformas. Adaptação significa adequar a forma de relacionamento com a sociedade ao contexto da sociedade de informação. Neste aspecto, merece destaque as mudanças nas condições de uso de tecnologias, como parte estratégica de modernização dos governos, para criar e aumentar a geração do valor público da participação, transparência e colaboração48. Neste cenário, Administração Eletrônica é um processo evolutivo no uso das tecnologias de informação e comunicação pela Administração Pública49 para promover não apenas a eficiência administrativa, mas também a efetividade no sentido de permitir o controle social e participação popular, com estruturas e medidas de facilitação de acesso à informação pública e para melhoria da prestação dos serviços públicos aos cidadãos50.

48 RAMÍREZ-ALUJAS, Álvaro V. Gobierno abierto es la respuesta: cuál era la pregunta?. Revista Más Poder Local, v. 12, p. 14-22, 2012; NICO, C. The concept of participation. If they have access and interact, do they really participate? Revista Fronteiras–estudos midiáticos , v.14, n.2, p.164177, 2012. 49 “É uma aplicação de tecnologias de informação e comunicação (TIC) para o desenvolvimento nacional objetivando a modernização da gestão pública, políticas públicas de universalização e políticas de caráter industrial de TIC” (POLIZELLI, Demerval L; OZAKI, Adalton M. Sociedade da Informação: os desafios na era da colaboração e da gestão do conhecimento. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 177); NAÇÕES UNIDAS. Benchmarking E-Government: a global perspective. New York: United Nations, American Society for Public Administration, 2002, p.1; OKOT-UMA, R. Electronic Governance: Re-inventing Good Governace. London: Commonwealth Secretariat London, 2001, p. 9. 50 PACIFIC COUNCIL ON INTERNATIONAL POLICY. Roadmap for e-government in the developing world. Los Angeles: Pacific Council on Internation Policy, 2002, 31 p.6; SEIFERT, Jeffrey. A primer on e-Government: sectors, stages, opportunities, and challenger of online governance. In: Report for Congress, New York, jan. 2003, p. 4; ZWEERS, K.; PLANQUE, K. Electronic government: from a organizational based perspective towards a client oriented approach. In: PRINS, J. E. J. (Ed.). Designing E-government. [S.l.]: Kluwer Law International, 2001, p. 92; MEDEIROS, P. H. R; GUIMARÃES, T. A. A relação entre governo eletrônico e governança eletrônica no governo federal brasileiro. In: Cadernos EBAPE.BR, v. 3, n. 4, p. 1-18, 2005.

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Esse processo evolutivo no âmbito da Administração Pública Brasileira pode ser analisado em três períodos distintos: a) a informatização da Administração Pública iniciado na década de 50, marcado pela modernização da máquina pública, com a instalação de equipamentos e melhoria da gestão interna, com nítido esforço de eficiência nos processos administrativos financeiros. Este período é caracterizado pela criação das plataformas proprietárias e equipamentos de grande porte, com uma gestão industrial caracterizada pela capacidade de produzir grandes volumes, além de um processamento de dados e informações de natureza fiscal e depois amplia para outras áreas como educação, no sentido de modernizar a máquina pública para melhorar gestão interna, especialmente a capacidade de arrecadar tributos51. b) a partir dos anos 90, o surgimento do governo eletrônico ligado aos aspectos gerenciais e ideias consumeristas. Neste período há uma ênfase na melhoria da prestação serviços eletrônica ao cidadão, e fomentada com as iniciativas do governo federal, desenvolvidas no escopo do projeto chamado “Governo Eletrônico - e-gov” (http://www.governoeletronico.gov.br), que concentrou os esforços em conformidade com ação do programa “Sociedade da Informação” do Ministério da Ciência e Tecnologia, em três fundamentos básicos: Universalização do acesso à Internet; Governo ao alcance de todos e Infraestrutura avançada52. A partir dos anos 90, a ideia da Administração Pública Eletrônica no Brasil foi associada ao movimento de reforma gerencial do Estado e à expansão da oferta de serviços públicos ao cidadão pela Internet, visando maior eficiência e agilidade face uma Administração Pública estruturada consoante os pressupostos da burocracia weberiana, transmutando o cidadão em consumidor. Ao mesmo tempo, a ideia buscou criar sistemas de informação que conferisse um melhor desempenho na provisão de serviços públicos à população pela internet. Apesar de a Administração Eletrônica surgir associada ao movimento gerencial de reforma do Estado, com incremento de temas como accountability e transparência, visando maior interação com os cidadãos, a sua implementação

51 VIAMONTE, Luiz Bernardo Marques. Informação e Informática na área pública: O DATASUS como objeto de estudo. 2009. 68 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Gestão da Informação e Comunicação em Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Ministério da Saúde, Rio de Janeiro. 2009. 52 CUNHA, M. A.; REINHARD, N. Portal de Serviços Públicos e de Informação ao Cidadão: estudos de caso no Brasil. In: XXV Encontro Anual Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração. Anais em CD. Campinas: Anpad. Setembro 2001; SOCINFO. Sociedade da Informação no Brasil: Livro Verde. TAKAHASHI, Tadao (org.). Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, 2000.

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funcionou como fator de simplificação e facilitação de atos administrativos, com foco maior na gestão interna do que no atendimento do cidadão. O uso das tecnologias da informação e comunicação, especialmente as que envolvem atividades em rede pelo governo em todo o espectro de suas atividades, serviu para aumentar o acesso e melhorar o fornecimento de serviços do governo para cidadãos, fornecedores e servidores53. Neste contexto são tomadas iniciativas, como por exemplo: 1) a criação do Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (decreto 1094/94); 2) a colocação de informações pública em um website. A primeira norma a tratar da obrigatoriedade de divulgação de informações financeiras da Administração à população em geral, por meio da rede mundial de computadores, foi a Lei nº 9.755/1998, que determinou que o TCU criasse home page intitulada “contas públicas”, para a divulgação de dados relativos ao montante de cada tributo arrecadado, transferência de recursos, relatórios resumidos de execução orçamentária, balanços consolidados, dentre outros54; 3) a criação do programa da Sociedade de Informação no Brasil, integrante do Plano Plurianual 2000-2003 do Governo Federal e que estabelece a Sociedade da Informação como um modo de desenvolvimento social e econômico, com redes físicas, sistemas lógicos de comunicação digital e uma miríade de novos serviços e aplicações, bem como modelos e regras de uso55. c) sob o mote da Administração Pública digital, um complexo processo de iniciativas da Administração Pública, a partir do início da década de 2000, visando ampliar a interação com o cidadão, com aprimoramento da qualidade e efetividade dos serviços e informações, como, por exemplo, 1) a criação do Portal da Transparência com o objetivo de aumentar a transparência da gestão pública, possibilitando que cidadãos acessem a acompanhem onde são gastos os recursos públicos federais; 2) a criação do Programa Brasil Transparente, lançado em janeiro de 2013 e, instituído em 07 de fevereiro de 2013 abrange, por um lado, o uso das tecnologias de informação para o desenvolvimento de sistemas de apoio à gestão e ao controle do Estado e, por outro, envolve a difusão 53 VAZ, José Carlos. Artigo: Perspectivas e Desafios para Ampliação do Governo Eletrônico nos Municípios Brasileiros. Publicado em 2003, no Seminário Internacional Governo Eletrônico e Governo Locais, realizado em novembro de 2003 em Brasília/DF; PRADO, Otávio; LOUREIRO, Maria Rita Garcia. Artigo: Governo Eletrônico, transparência e democracia: a publicação das contas públicas das capitais brasileiras. 17º Congresso Brasileiro de Contabilidade, CFC, 2004. 54 BRASIL. Tribunal de Contas da União. AC – 2379-34/10-P. TC 015.186/2010-5. Órgão Julgador: Plenário do TCU. Data da Sessão: 15/09/2010. 55 MINISTÉRIO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA – MCT. Ciência e Tecnologia para a Construção da Sociedade da Informação - Projeto de Política Pública. Ministro: Ronaldo Mota Sardenberg et all, 1999. Disponível em: <http://alphalinux.redp.edu.co/redacad/export/REDACADEMICA/ crecursos/ documentacion/politicas/archivos_politicas/cytensI_d.pdf>. Acesso: 04/02/2015, página 5.

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de informações para modernização da gestão administrativa e fiscal, integrando Administração Pública e sociedade56. São as recomendações da OCDE aprovadas em julho de 2014 que inaugura um novo paradigma de atuação não meramente eletrônica, mas também digital fundamentada em três estratégias: a) informação (transparência, abertura e inclusão de processos e operações governamentais com criação de cultura orientadas a dados no setor público); b) participação (incentivo ao envolvimento de partes interessadas públicas, privadas e da sociedade civil na elaboração de políticas pública e no desempenho e implementação de serviços públicos); c) segurança (gerenciamento de risco para lidar com questões de privacidade digital, incluindo adoção de medidas eficazes e adequadas de segurança para aumentar a confiança nos serviços governamentais)57. A partir da criação destas recomendações, reconhece-se a existência do uso das tecnologias digitais para criar valor público, com o objetivo de melhorar a informação e a prestação de serviços, incentivando a participação cívica. Contudo, o principal promotor do modelo digital, com base nas recomendações da OCDE, foi política de Governança Digital (decreto nº 8638/16 e Portaria 68/16) efetivada por três eixos fundamentais: a) informação (assegurar à obtenção de informações pela sociedade, observadas as restrições legalmente previstas); b) participação (estimular a participação da sociedade na formulação, na implementação, no monitoramento e na avaliação das políticas públicas e dos serviços públicos disponibilizados em meio digital); c) prestação de serviços (gerar benefícios para a sociedade mediante o uso da informação e dos recursos de tecnologia da informação e comunicação na prestação de serviços públicos)58. Abriu-se, portanto, caminho para a formação a utilização pelo setor público de recursos de tecnologia da informação e comunicação com o objetivo de melhorar a disponibilização de informação e a prestação de serviços públicos, incentivar a participação da sociedade no processo de tomada de decisão e aprimorar os níveis de responsabilidade, transparência e efetividade do governo59. Nesse contexto, a transparência como elemento de ligação na interação entre cidadão e a Administração Pública consubstanciada no poder do cidadão 56 PERSEGONA, Marcelo Felipe Moreira & ALVES, Isabel Tersa Gama. História da Internet: origens do e-gov. no Brasil. In: Anais da Conferência Sulamericana em Ciência e Tecnologia aplicada ao Governo Eletrônico – CONeGOV, 2004. Disponível em: http:\\www.i3g.org.br/editora/livros/ conecov2004anais.pdf. 57 ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIENTO ECONÔMICO – OCDE. Recommendation of the Council on Digital Government Strategies. 2014. Disponível em: http:// www.oecd.org/gov/digital-government/Recommendation-digital-government-strategies.pdf. Acesso em 10 de agosto de 2015. 58 Artigo 1º, inciso I a III do Decreto nº 8638 de 15 de janeiro de 2016. 59 Artigo 2º, inciso III do Decreto nº 8638 de 15 de janeiro de 2016.

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de aceder, processar e extrair informação necessária para interagir on-line com a Administração Pública, é revelado em três principais aspectos: a) informações de mais qualidade (atualizada e compreensível) e conteúdo referentes a processos, sem cadastros redundantes e inconsistentes entre si, com publicação de dados abertos; b) simplificação e ampliação no compartilhamento e integração de serviços eletrônicos de utilidade pública; c) atuação do suporte digital para a interação do cidadão na elaboração de políticas públicas60. Nesta fase digital, podemos destacara como fator colaborador a Parceria para Governo Aberto. Desde 2011, é possível constatar a adesão de mais de 70 países na parceria para Governo Aberto consistente em soluções e desafios na melhoria da governança dos signatários em relação ao fortalecimento da transparência em relação à disponibilidade de informações governamentais para o público em geral e ampliação e incentivo da participação cívica na tomada de decisões e para melhoria da qualidade dos serviços públicos.

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A REFORMA ADMINISTRATIVA: ORGANIZAÇÃO SOCIAL E GOVERNANÇA PÚBLICA

Antonio Cecilio Moreira Pires1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo examinar as Organizações Sociais, reguladas pela Lei 9.637, de 15 de maio de 1998, fruto da Reforma Administrativa implementada pela Emenda Constitucional nº 19/98, no contexto do Estado Democrático de Direito. Para tanto, serão ainda considerados a questão do Poder, a que nos referimos como função administrativa, bem como a competência discricionária existe na qualificação das Organizações Sociais. Palavras-chave: Reforma; Organização Social; Discricionariedade; Governança. Abstract: The purpose of this article is to examine the Social Organizations, regulated by Law 9.637, of May 15, 1998, as a result of the Administrative Reform implemented by Constitutional Amendment No. 19/98, in the context of the Democratic State of Law. 1 Advogado, doutor e mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, professor de direito administrativo, chefe do núcleo temático de direito público e coordenador adjunto de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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A Reforma Administrativa: Organização Social e Governança Pública Antonio Cecilio Moreira Pires

To this end, we will also consider the question of Power, which we refer to as an administrative function, as well as the discretionary competence exists in the qualification of Social Organizations. Keywords: Reform; Social Organization; Discretionary; Governance. Sumário: Introdução 1. A instituição do Estado Democrático de Direito 2. O exercício do poder no Estado Democrático de Direito 3. O exercício da competência discricionária 4. A reforma administrativa 5. As Organizações Sociais – Lei 9.637/98 Conclusão

Introdução Para que possamos examinar as Organizações Sociais e a Governança Pública faz-se imprescindível nos debruçarmos sobre a instituição do Estado Democrático de Direito, o exercício do Poder e a Reforma Administrativa implementada pela Emenda Constitucional nº 19/98. No contexto desse panorama, o diploma legal que rege as Organizações Sociais – Lei 9.637/98 - será dissecado, obviamente nos limites do presente artigo, com vistas a tecer algumas críticas ao instituto em questão, bem como serão examinadas as decisões do Tribunal de Contas da União de forma a estabelecer em que medida a governança pública encontra-se atendendo aos seus objetivos.

1. A instituição do Estado Democrático de Direito Em meados do século XIX, o Constitucionalismo liberal veio a consagrar o Estado de Direito, haja vista a necessidade de que o Estado tivesse como elemento diretivo as normas jurídicas.2 Em outro dizer o Estado de Direito, em última análise, submete a todos aos desígnios da Lei. Posteriormente, sucedeu-se a Declaração de Direitos da Constituição Francesa, o manifesto comunista de Karl Marx e, a partir da Constituição de Weimar que, diga-se de passagem, serviu como modelo para inúmeras constituições, consolidou o Estado Social de Direito com a constitucionalização não só dos direito sociais, como também dos direitos econômicos.

2 Constituição de Cádis, de 19 de março de 1812, a 1ª Constituição Portuguesa, de 23 de setembro de 1822, a 1ª Constituição Brasileira, de 25 de março de 1824 e a Constituição Belga, de 07 de fevereiro de 1831.

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Disso deflui que será considerado Estado de Direito onde se constatar a primazia da Lei, não sendo difícil concluir que mesmo em um Estado de Direito é possível verificar a existência do autoritarismo fruto da concentração de Poder.3 Nesse sentido, surge a democracia que propicia a escolha dos governantes pelos governados, mediante eleições livres. Melhor dizendo, é no Estado Democrático de Direito que encontramos, além do contrato social, representado pela Constituição, a soberania e a lei que deve ser constituir na vontade do povo, onde o poder é exercido pelos legitimamente eleitos, como aliás preceitua a Lei Fundamental Brasileira, ao dispor, em seu art. 1º, parágrafo único, que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente. Disso tudo, deflui que a participação do povo, na vontade administrativa deve ser considerada como uma das exigências do Estado Democrático de Direito.

2. O exercício do poder no Estado Democrático de Direito Note-se que o exercício do poder é uma das pedras de toque do Estado Democrático de Direito, na medida em que devem existir limites para o seu exercício. Entretanto, não é o caso aqui de centrar nossos esforços no exercício do poder político, pelo que vamos nos voltar para os denominados poderes administrativos. Com efeito, a Administração Pública, em razão do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado deve manejar os poderes que se encontram à sua disposição, objetivando a consecução do interesse público, sem, por óbvio amesquinhar os interesses privados. Lembramos, aqui, que o interesse público, como muito bem anota Celso Antonio Bandeira de Mello, é de natureza indisponível.4 Destarte, se os interesses públicos não estão à livre disposição do administrador e, por isso devem ser concretizados, certo é dizer que inexistem poderes administrativos, pelo que o mais correto é falar em função administrativa, que se constitui em dever, como já afirmamos em outra oportunidade.5 Dito isso, em nosso entender, é muito mais acertado falar em função administrativa, ao invés de poderes administrativos, devendo a Administração 3 VERGOTTINI, Giuseppe de, Diritto constituzionale comparato,. Pádua, Cedam, 1981, p.589. 4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de direito administrativo,27ª ed., rev., e atual. até a Emenda Constitucional 64, de 04.02.2010, São Paulo, Malheiros, p.55. 5 PIRES, Antonio Cecilio Moreira, A desconsideração da personalidade jurídica nas contratações públicas, São Paulo,Atlas, 2014, p. 19.

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Pública concretizar o interesse público no contexto do princípio da legalidade e eficiência. Releva salientar que as organizações sociais foram instituídas como instrumental da eficiência, mas desde logo, advertimos o leitor: não há eficiência fora dos trilhos da legalidade.

3. O exercício da competência discricionária Em se falando da função administrativa, não podemos deixar de trazer a pelo algumas considerações sobre a questão da discricionariedade, tendo em vista que tal prerrogativa é exercida diuturnamente no exercício da atividade administrativa e, muitas vezes confundida com mera liberdade de opção, culminando o seu exercício com decisões arbitrárias. Ainda que o nomem iuris adotado pela doutrina seja poder discricionário, entendemos ser mais correto falar em discricionariedade ou competência discricionária. De todo modo, já é sabido e consabido que a discricionariedade não significa que o administrador tenha livre liberdade de escolha para a consecução do interesse público. Em verdade, o que se concede ao administrador é apenas uma margem de liberdade para que se escolha o comportamento mais adequado para o caso em concreto. Juan Carlos Cassagne ao discorrer sobre a questão da discricionariedade muito bem afirma: “(...) a própria norma que concede ao órgãos administrativo uma margem de apreciação discricionária admite a eleição entre duas ou mais soluções justas ou estabelecidas no ordenamento jurídico (...) Em ambos os casos, a eleição sobre o conteúdo do ato e da oportunidade para ditá-lo – embora não seja totalmente livre, por ser limitado pelo sistema legal – confere uma certa margem de liberdade ao órgão administrativo para e escolher a solução do caso. A isto denominamos ‘faculdade discricionária’, sem que isso implique no reconhecimento de um âmbito isento de revisão judicial já que se está em um Estado de Direito(...)”.6

Deveras, a discricionariedade somente poderá ser exercida no contexto do princípio da legalidade, obedecidos os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Admitida a observância dos três vetores principiológicos sobreditos, é possível afirmar que a possibilidade de escolha de comportamento perante 6 CASSAGNE, Juan Carlos, Derecho administrativo, 9ª edição, Buenos Aires, AbeledoPerrot, 2008, v. II, p. 230.

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dado caso em concreto deve encontrar expresso arrimo em lei, devendo a escolha ser razoável e, ainda, proporcional, de sorte que as decisões administrativas atinjam a sua real e efetiva finalidade. Outra questão que não podemos deixar de abordar, ainda que rapidamente, diz respeito à discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados. Embora seja possível identificar uma zona de certeza quanto ao significado de um conceito fluido, sempre existirá uma zona nebulosa de onde se denota múltiplas possibilidades. Por obvio, não se diz que isso – zona nebulosa – não seja passível de ser trazida a uma zona de certeza, em razão do exame do caso em concreto, como muito bem afirmou Stassinopoulos ao dizer que o” domínio da discricionariedade começa onde termina a interpretação”.7 Observe-se, portanto, que a discricionariedade e seus limites somente poderão ser aferidos perante o caso em concreto, notadamente em se tratando dos conceitos indeterminados, que mesmo após a interpretação, poderá trazer ainda, uma margem de liberdade de escolha. Enfim, é possível afirmar, sem medo de errar, que os limites da discricionariedade são bastante estreitos, notadamente em se tratando da instituição das organizações sociais que, além de suas peculiaridades inerentes ao instituto em questão, é decisão que deve ser adotada tendo por sustentáculo informações gerenciais, que mais á frente serão examinadas.

4. A reforma administrativa A reforma administrativa brasileira há muito encontra-se sendo implementada, iniciando-se em meados de 1930, com a criação do Conselho Federal de Serviço Público8, posteriormente transformado no Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP9. Dentre os diversos objetivos da reforma, vale salientar a significativa contribuição para que o ingresso no serviço público fosse de caráter impessoal, mediante a instituição de concursos públicos, isso sem falar de planos gerais e uniformes de classificação de cargos e salários. Ainda que a reforma administrativa da década de 30 não fosse suficiente para atender as necessidades de industrialização do Estado, percebe-se um saldo positivo, como aponta Beatriz M. de Souza Wahrlich:

7 STASSINOPOULOS, Michel, D Traité des actos administratifs. Paris, Libraire Generalés de Droit et de Jurisprudence, 1973, p. 151. 8 Conselho Federal de Serviço Público Civil, artigos 168 a 173 da Constituição de 1924 e Lei 284, de 08 de outubro de 1936. 9 Departamento Administrativo do Serviço Público, art. 67 da Constituição de 1937 e do Decreto-lei nº 579, de 30 de julho de 1938.

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A Reforma Administrativa: Organização Social e Governança Pública Antonio Cecilio Moreira Pires

“Difusão de ideias modernizadoras da administração, entre as quais cabe destacar a introdução da noção de eficiência, a preocupação com o sistema do mérito para ingresso no serviço público, e a concepção do orçamento como plano de trabalho; institucionalização do treinamento e aperfeiçoamento dos funcionários públicos; divulgação da teoria administrativa originada dos países mais adiantados do mundo ocidental (especialmente dos Estados Unidos, Inglaterra e França); contribuição decisiva ao reconhecimento da existência das ciências administrativas, até então mero apêndice do direito administrativo; criação de um pequeno grupo de especialistas em administração, que se espalharam por uma série de órgãos da administração pública, inclusive internacional, nelas se tornando elementos de relevo; (...)” 10

A gestão patrimonialista, caracterizada pela troca de favores entre o público e o privado, era completamente incompatível com o panorama que se delineava na sociedade brasileira, em especial no que diz respeito à industrialização, formação da classe média com poder de reivindicar os seus direitos.11 No entanto, é preciso reconhecer que após a criação do DASP, o único marco expressivo da Reforma Administrativa aconteceu com a edição do Decreto-Lei 200/67, sob a égide do regime militar, onde ser percebe que a tônica da aludida reforma se caracterizava pela descentralização administrativa, marcada pela criação de empresas estatais destinadas ao desenvolvimento da economia em setores, à época, considerados de interesse nacional. Após mais de 20 anos do regime militar, em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal, também conhecida como Constituição Cidadã, com especial ênfase dos direitos fundamentais. Os objetivos da Constituição Cidadã encontram-se expressos em seu art. 3º: (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Após 10 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, tivemos a Emenda Constitucional 19/98, que teve por objetivo, a instituição do modelo gerencial, em razão do antigo e esgotado modelo burocrático. Vale dizer que, com a instituição do modelo gerencial objetivou-se a eficiência na prestação de serviço públicos, a avaliação de desempenho e o controle

10 WAHRLICH, Beatriz M. de Souza. Reforma administrativa federal brasileira: passado e presente. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/5965/4625 - 15.02.18 às 13h00. 11 NOHARA, Irene Patrícia, Reforma administrativa e burocracia: impacto da eficiência na configuração do direito administrativo brasileiro, São Paulo, Atlas, 2012, p. 19.

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de resultados, posto que o Estado Burocrático não mais seria capaz de atender as exigências de um Estado Democrático moderno. Claro está que esse modelo gerencial exigia a implementação de novas formas de governança. Em nosso entender, a governança pública exige que a administração de recursos fosse conjugada com a capacidade de planejar e programar políticas públicas mediante uma atividade administrativa eficiente. Impende considerar, portanto, que foi em razão da Emenda Constitucional de 1988 que foi possível a criação das Agencias Reguladoras e Agencias Executivas, passando o país por um processo de agencificação, isso sem falar das Organizações Sociais – OS – e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPS, da proliferação das concessões e permissões de serviços públicos, e, finalmente, das privatizações. Sem desprestígio de nenhuma das figuras decorrente da EC/98, o enfoque do presente trabalho funda-se nas Organizações Sociais, dada a sua complexidade e problemáticas encontradas em sua implementação.

5. As Organizações Sociais – Lei 9.637/98 A Lei 9.637/98 veio a dispor sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação de Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que mencione a absorção de suas atividades pelas ditas organizações sociais. Da análise do diploma legal em comento, conclui-se, desde logo, que as organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado, criada por particulares, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam voltadas para o ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde, que mediante a celebração de contrato de gestão recebem uma delegação de prestação dos serviços públicos sobreditos, mediante incentivo e controle do Poder Público. Vale dizer que a instituição das Organizações Sociais faz parte da estratégia adotada pelo Plano Diretor da Reforma do Estado que, objetivava transferir para a iniciativa privada a produção de serviços – saúde, educação, cultura, dentre outros – promovendo, assim, uma maior eficiência e qualidade dos serviços. A primeira crítica que se faz à Lei que regula as organizações sociais é quanto ao seu objetivo de publicizar os serviços contemplados no seu bojo. A nosso ver, trata-se, em verdade, de uma privatização do serviço público. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, examinando a legislação em comento afirma: Aparentemente, a organização social vai exercer atividade de natureza privada, com incentivo do Poder Público, dentro da atividade de fomento. Mas na realida-

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de, o real objetivo parece ser o de privatizar a forma de gestão de serviço público delegado pelo Estado (...). A própria lei, em pelo menos um caso, está prevendo a prestação de serviço público pela organização social; quando a entidade absorver atividades de entidade federal extinta no âmbito da área se saúde, deverá o contrato de gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7º da Lei 8.080 de 19-9-90. Vale dizer que prestará por serviço público e não atividade privada; em consequência estará sujeitas as normas constitucionais e legais que regem o serviço, até porque não poderia lei ordinária derrogar dispositivos constitucionais.12

É de se ver que sobejam razões para se concluir que a entidade em questão, ao absorver atividades que, em princípio, são exercias pelo Poder Público, em verdade estão sendo alvo de uma “privatização temporária”, muito próxima da concessão de serviços públicos, na sua modalidade administrativa. Note-se que a pessoa jurídica sem fins lucrativos, criada por particulares, deverá habilitar-se perante a Administração Pública para obter a qualificação de organização social que, na forma do que dispõe o art. 11, da Lei 9.637/98, serão declaradas como entidade de interesse social e utilidade pública. Aspecto que não pode ser deixado de lado, são as disposições do art. 2º da Lei 9.637/98 que, embora estabeleça requisitos para a habilitação da entidade, em seu inciso II, determina que a qualificação como organização social será avaliada em razão de sua oportunidade e conveniência. Em outro dizer, a qualificação, enquanto organização social, é de regramento discricionário; embora a doutrina e jurisprudência tenha escrito rios de tinta sobre os limites dessa discricionariedade, ainda, nos dias de hoje, o Administrador Público encara tal prerrogativa como mera liberalidade, alargando, indevidamente, o exercício da competência discricionária, por nós traçado neste trabalho, ainda que em rápidas pinceladas. Lucia Valle Figueiredo, a seu tempo, muito bem observava que “O entendimento alargado da competência discricionária leva a situação absolutamente insustentáveis na prática e de grande ameaça ao Estado Democrático de Direito em sua faceta substancial”.13 Veja-se, assim, que o legislador ordinário, ao estabelecer uma competência discricionária para se definir aqueles que poderão ser qualificados como organização social, deixou ao alvedrio do administrador tão relevante decisão. 12 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, 24ª edição, São Paulo, Atlas, 2012, p. 566. 13 FIGUEIREDO, Lúcia Valle, Curso de direito administrativo. 9ª ed. rev., ampl. e atualizada até a Emenda Constitucional 56/2007, São Paulo, Malheiros, 2008, p. 235.

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Ora, se para a escolha de um mero fornecedor de bens para a Administração é necessário a instauração de procedimento licitatório, onde se deve verificar a qualificação técnica e a saúde financeira do proponente, dentre outras exigências, é inconcebível deixar que a escolha de entidade privada que venha a prestar serviços públicos se faça mediante o exercício de uma competência discricionária. De outra parte, ainda que a modelagem em exame permita uma maior participação social, na medida em que seu estatuto deverá contemplar cláusula de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral, nos termos do art. 2º inciso I, “alínea “d” do diploma social das organizações sociais e, também por força do Estado Democrático de Direito, não podemos deixar de registrar que isso tudo nos parece insuficiente ao lembrarmos que a entidade será gerida com dinheiro público, e ainda poderá se utilizar de bens públicos mediante a celebração de termo de permissão de uso. A nossa crítica recai exatamente sobre a possibilidade de se fazer as contratações necessárias à consecução do serviço público sem a instauração de licitação, ainda que o art. 7º da Lei deixe cristalino que os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e economicidade devam ser observados. Para nós, é de cristalina clareza que embora a legislação das Organizações Sociais não tenha previsto expressamente a exigência de licitação para as suas contratações, o só fato de se exigir a observância dos princípios da impessoalidade e moralidade são suficientes para se concluir pela necessidade de instauração de procedimento formal para a escolha dos eventuais contratados, ainda que sem as amarras da lei de licitações. Quanto ao contrato de gestão este servirá como instrumento consolidador do vínculo jurídico a ser estabelecido entre a entidade e o Poder Público, formalizando a parceria entre as partes contratantes, objetivando o fomento e execução da atividade delegada. Não podemos deixar de tecer severas críticas quanto as possibilidades da legislação, consolidadas pelo contrato de gestão, na medida em que será possível que os servidores integrantes dos quadros permanentes de órgãos e das entidades que venham a ser extintos em razão da Organização Social poderão ser absorvidos por esta última, garantidos todos os direitos e vantagens decorrentes do respectivo cargo ou emprego, com ônus para origem. É nítida a incongruência de se permitir que a atividade será exercida pelos mesmos servidores públicos e com a utilização do mesmo patrimônio público. Por esse prisma, é de se concluir que a formatação em exame busca, na realidade, livrar-se das peias do direito administrativo. Em sua obra “Parcerias

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na Administração Pública”, Maria Sylvia Zanella Di Pietro não poupa críticas às organizações sociais: “Pela forma como a matéria esta disciplinada na esfera federal, são inegáveis o conteúdo de imoralidade contido na lei, os riscos para o patrimônio público e para os direitos do cidadão. Em primeiro lugar, fica muito nítida a intenção do legislador de instituir um mecanismo de fugir ao regime jurídico de direito público a que se submete a Administração Pública. O fato de a organização social absorver atividade exercida por ente estatal e utilizar o patrimônio público e os servidores públicos antes a serviço deste mesmo ente, que resulta extinto, não deixa dúvidas de que, sob a roupagem de entidade privada, o real objetivo é o de mascarar uma situação que, sob todos os aspectos, estaria sujeita ao direito público. É a mesma atividade que vai ser exercida pelos mesmos servidores públicos e com utilização do mesmo patrimônio. Por outras palavras, a ideia é que os próprios servidores da entidade extinta constituam uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, e se habilitem como organizações sociais, para exercerem a mesma atividade que antes exerciam e utilizem o mesmo patrimônio, porém sem a submissão àquilo que costuma chamar de ‘amarras’ da Administração Pública. (...) Trata-se de entidades constituídas ad hoc, ou seja, com o objetivo de se habilitarem como organizações sociais e continuarem a fazer o que faziam antes, porém com nova roupagem. São entidades fantasmas, porque não possuem patrimônio próprio, sede própria, vida própria. Elas viverão exclusivamente por conta do contrato de gestão com o poder público.”14

Ainda que a Organização Social seja passível de severas críticas, é fato inarredável que esta formatação jurídica é largamente utilizada no direito brasileiro. Nesse sentido, também é fato que suas peculiaridades exigem um rígido sistema de governança, sob pena de cometimento de arbitrariedades em franco prejuízo ao erário público. Admitida a necessidade de um rígido sistema de governança, há que se perquirir, em caráter preliminar: o que é governança? A esse questionamento afirmamos que a governança não pode ser encarada tão somente do ponto de vista da mera execução de dado negócio jurídico.

14 Di PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquias, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2005, p. 269.

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Dentre os diversos conceitos possíveis de governança, vamos nos ater, tão somente, àquele que diz respeito ao setor público. Com efeito, o Tribunal de Contas da União fez publicar a revista Governança Pública: referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública indutoras de melhoria, trazendo o seguinte conceito: “Governança no setor público refere-se, portanto, aos mecanismos de avaliação, direção e monitoramento; e às interações entre estruturas, processos e tradições, as quais determinam como cidadãos e outras partes interessadas são ouvidos, como as decisões são tomadas e como o poder e as responsabilidades são exercidos”.15

Múltiplos são os aspectos que envolvem a governança pública. De toda maneira, temos para nós que a governança deve se cingir a uma direção global, supervisionando e controlando as ações nos aspectos econômico financeiros, bem como administrativos, visando satisfazer os objetivos desejados e provados mediante uma adequada prestação de contas. Em outro dizer, entendemos que a governança pública deve vir sustentada nos controles econômico financeiro, administrativo e de prestação de contas. Em última análise a governança implica nos modus operandi de como as entidades serão dirigidas e controladas. Para tanto, os dirigentes da Organização Social devem ter uma visão administrativa, definindo e determinando os objetivos almejados, com a necessária qualidade e eficiência, dentro dos normativos vigentes, demonstrando assim uma administração responsável e transparente. Destarte, os dirigentes da Organização Social, ainda que pessoa jurídica de direito privado devem conhecer os meandros da Lei de |Licitações, a Lei Orçamentaria e a Lei de Responsabilidade Fiscal, dentre outros normativos A aplicação dos normativos sobrefalados, naquilo que couber, como muito bem pontua Rosania Nascimento Pereira geram “uma cultura de transparência nos negócios e de gestão de sociedades, cujos resultados se traduzem na captação de novos e melhores recurso humanos e financeiros.”16 15 Governança Pública: referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública indutoras de melhoria. Tribunal de Contas da União, Brasilia, TCU, Secretaira de Planejamento, Governança e Gestão, 2014, p. 22 www.fazenda.gov.br/pmimf/institucional/download-de-arquivos/governanca-publica-tcu.pdf - 16.02.18 às 14:45. 16 PEREIRA, Rosana Nascimento, Governança Pública no modelo da organização social de saúde do Estado de São Paulo, Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de mestre em Administração. 2014, p. 45 https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/1115/1/Rosania%20Nascimento%20Pereira.pdf – 16.02.18 às 14h35.

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O Tribunal de Contas da União já se pronunciou acerca de consulta formulada pelo Congresso Nacional, encaminhada pelo Presidente do Senado Federal, sobre a instituição das Organizações Sociais na área da saúde. Ainda que a consulta tenha sido específica para o serviço de saúde, os condicionantes estabelecidos pela Corte de Contas podem e devem ser utilizados para as Organizações Sociais em geral. Vejamos: “VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Solicitação do Congresso Nacional encaminhada pelo Presidente do Senado Federal, em razão do Requerimento 26/2016 da Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal (CAS), no qual é solicitado que este Tribunal se manifeste acerca da possibilidade de celebração de contratos de gestão com organizações sociais por entes públicos na área de saúde, especialmente, sobre a forma de contabilização dos pagamentos a título de fomento nos limites de gastos de pessoal previstos na Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal); ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão do Plenário, em: 9.1. conhecer da presente solicitação, por preencher os requisitos de admissibilidade previstos no art. 38, inciso II, da Lei 8.443/1992, c/c o art. 232, incisos I e III, do Regimento Interno/TCU; 9.2. informar à Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, em referência ao Requerimento 26/2016, objeto do Ofício 1.016 (SF), de 3/8/2016, que: 9.2.1. o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 1.923, ratificou a constitucionalidade da contratação pelo Poder Público, por meio de contrato de gestão, de organizações sociais para a prestação de serviços públicos de saúde; (...) 9.2.3. a jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas da União (e.g. Acórdãos 3.239/2013 e 352/2016, ambos do Plenário deste Tribunal) é no sentido de reconhecer a possibilidade de realização de contratos de gestão com organizações sociais, com as seguintes orientações sobre a matéria: 9.2.3.1. apesar de abrir mão da execução direta dos serviços de saúde objeto de contratos de gestão, o Poder Público mantém responsabilidade de garantir que sejam prestados na quantidade e qualidade apropriados; 9.2.3.2. do processo de transferência do gerenciamento dos serviços de saúde para organizações sociais deve constar estudo detalhado que contemple a fundamentação da conclusão de que a transferência do gerenciamento para organizações

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sociais mostra-se a melhor opção, avaliação precisa dos custos do serviço e dos ganhos de eficiência esperados, bem assim planilha detalhada com a estimativa de custos a serem incorridos na execução dos contratos de gestão; 9.2.3.3. a escolha da organização social para celebração de contrato de gestão deve, sempre que possível, ser realizada a partir de chamamento público, devendo constar dos autos do processo administrativo correspondente as razões para sua não realização, se for esse o caso, e os critérios objetivos previamente estabelecidos utilizados na escolha de determinada entidade, a teor do disposto no art. 7º da Lei 9.637/1998 e no art. 3º combinado com o art. 116 da Lei 8.666/1993; 9.2.3.4. as organizações sociais submetem-se a regulamento próprio sobre compras e contratação de obras e serviços com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observados os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo necessário, no mínimo, cotação prévia de preços no mercado; 9.2.3.5. não é necessário concurso público para organizações sociais selecionarem empregados que irão atuar nos serviços objeto de contrato de gestão, entretanto, durante o tempo em que mantiverem contrato de gestão com o Poder Público Federal, devem realizar processos seletivos com observância aos princípios constitucionais da impessoalidade, publicidade e moralidade; 9.2.3.6. os Conselhos de Saúde devem participar das decisões relativas à terceirização dos serviços de saúde e da fiscalização da prestação de contas das organizações sociais, a teor do disposto no art. 1º, §2º, da Lei Federal 8.142/1990; 9.2.3.7. os contratos de gestão devem prever metas, com seus respectivos prazos de execução, bem assim indicadores de qualidade e produtividade, em consonância com o art. 7º, I, da Lei 9.637/1998; 9.2.3.8. os indicadores previstos nos contratos de gestão devem possuir os atributos necessários para garantir a efetividade da avaliação dos resultados alcançados, abrangendo as dimensões necessárias à visão ampla acerca do desempenho da organização social; 9.2.3.9. a comissão a quem cabe avaliar os resultados atingidos no contrato de gestão, referida no art. 8º, §2º, da Lei 9.637/1998, deve ser formada por especialistas da área correspondente; 9.2.3.10. devem ser realizados estudos que indiquem qual sistema de remuneração dos serviços prestados é mais adequado para o caso específico do objeto do ajuste a ser celebrado, levando em consideração que a escolha da forma de 47


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pagamento por tempo, por procedimentos, por caso, por capitação ou a combinação de diferentes métodos de remuneração possui impacto direto no volume e na qualidade dos serviços prestados à população; 9.2.3.11. os processos de pagamento das entidades contratadas devem estar suportados por documentos que comprovem que os serviços foram efetivamente prestados – demonstrando o controle da frequência dos profissionais, os procedimentos realizados, os pacientes atendidos – e que garantam que os impostos, taxas e encargos trabalhistas aplicáveis ao caso foram devidamente recolhidos; 9.2.3.12. não há amparo legal na contratação de mão de obra por entidade interposta mediante a celebração de termos de compromisso com organizações da sociedade civil de interesse público ou de instrumentos congêneres, tais como convênios, termos de cooperação ou termos de fomento, firmados com entidades sem fins lucrativos; 9.2.3.13. deve ser promovido, no âmbito das unidades federativas, o fortalecimento dos órgãos de controle e de gestão de modo a se permitir o acompanhamento efetivo dos contratos de gestão”17

É fato que Corte de Contas, mediante o acordão em questão, buscou suprir algumas questões que, se não observadas podem levar a qualificação de dada entidade, enquanto Organização Social, ao irremediável fracasso. É fato que o Poder Público, ainda que tenha aberto mão da execução direta do serviço tem a função administrativa, e portanto, o dever de fiscalizar a prestação de serviços que deve ser realizada na quantidade e qualidade apropriada. Por sua vez, a transferência da execução não pode ser aleatória, eis que do processo administrativo deve conter estudo detalhado, demonstrando que a delegação mostra-se como melhor opção, contemplando avaliação de custos dos serviços e eficiência esperada, em obediência ao princípio da motivação. Ainda que a Lei 9.637/98 seja silente quanto ao procedimento que dever ser adotado para a escolha da entidade, o Tribunal de Contas recomenda que isso se faça mediante chamamento público, com a instauração de critérios objetivos, previamente estabelecidos, visando assim, diminuir ao máximo a discricionariedade permitida pelo diploma legal das Organizações Sociais. Salutar também é a exigência de um regulamento de compras e contração de obras e serviços, prestigiando, assim, o erário público, bem como os princípios da moralidade e impessoalidade, estabelecendo, de outra parte, que os

17 TCU, Acordão 2057/2016,TC 023.410/2016-7, Pleno.

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Conselhos da Organização Social participem da decisão relativas à terceirização de serviços e da fiscalização da prestação de contas, dentre outros questões. Dessume-se que o acordão em exame traz, em seu bojo, alguns dos parâmetros a que a Organização Social deverá obedecer à guisa de estabelecer uma adequada Governança. Em que pese as reiteradas decisões do Tribunal de Contas da União o Poder Público continua a qualificar as mais diversas entidades sem o necessário zelo. O Acordão 3239/2013, ao julgar as contas de Estados e Municípios que qualificaram entidades enquanto Organizações Sociais, subsidiados mediante verba dos cofres públicos da União, tiveram apontamentos que demonstram a má gestão das referidas entidades.18 Em suma, a Organização Social, que nasceu como uma das alternativas para o atendimento do princípio da eficiência, revela-se como uma entidade que ainda esta longe de atender ao tal almejado interesse público.

Conclusão As exigências do Estado Democrático de Direito nos dias de hoje determinam, cada vez mais, a participação do cidadão na formação da vontade administrativa. Foi-se o tempo que a Administração, imbuída de seus privilégios, colocava-se no ápice da relação jurídica com o cidadão, em razão dos ditos poderes administrativos de caráter instrumental. Hodiernamente, só podemos conceber esses poderes, enquanto deveres da Administração Pública, pelo que muito mais certo é falar em função administrativa. Claro está que essa função administrativa, por vezes, é comprometida pelo exercício de uma “discricionariedade deformada”, onde se vislumbra, de plano, o cometimento de arbitrariedades pautados por escolhas errôneas ou desviadas da verdadeira finalidade pública. Por sua vez, a reforma administrativa, preconizada pela Emenda Constitucional nº 19/98, veio a instituir o modelo gerencial, impondo um controle de finalidade, com o prestigio da qualidade e eficiência. Foi nesse contexto que surgiram as organizações sociais, enquanto entidades delegadas do Poder Público. Contudo, ainda hoje, após quase 20 anos da edição de seu diploma legal, as organizações sociais ainda padecem de problemas de toda ordem, trilhando, por vezes, caminhos tortuosos e em total descompasso com a desejada governança pública. 18 A integra do Acordão 3239/2013 TCU, Plenário, TC 018.739/2012-1 encontra-se em www.tcu.gov.br/consultas/juris/docs/judoc/acord/20131129/ac_3239_47_13_p.doc

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Deveras, os parâmetros da governança pública não são respeitados, ainda que o Tribunal de Contas da União já tenha se pronunciado no sentido de determinar o cumprimento de exigências que devem levar essas entidades a uma administração eficiente e de qualidade. Ainda assim, as entidades federadas – União, Estados, Municípios – deixam de exercitar a função fiscalizadora em desprestigio da necessária governança pública.

Referências bibliográficas BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de direito administrativo, 27ª ed. rev., e atual. até a Emenda Constitucional 64, de 04.02.2010, São Paulo, Malheiros. CASSAGNE, Juan Carlos, Derecho administrativo, 9ª edição, Buenos Aires, AbeledoPerrot, 2008, v. II. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, 24ª edição, São Paulo, Atlas, 2012. __________. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquias, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2005. FIGUEIREDO, Lúcia Valle, Curso de direito administrativo. 9ª ed. rev., ampl. e atualizada até a Emenda Constitucional 56/2007, São Paulo, Malheiros, 2008. NOHARA, Irene Patrícia, Reforma administrativa e burocracia: impacto da eficiência na configuração do direito administrativo brasileiro, São Paulo, Atlas, 2012. PEREIRA, Rosana Nascimento, Governança Pública no modelo da organização social de saúde do Estado de São Paulo, Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de mestre em Administração. 2014, https://sapientia.pucsp.br/ bitstream/handle/1115/1/Rosania%20Nascimento%20Pereira.pdf PIRES, Antonio Cecilio Moreira, A desconsideração da personalidade jurídica nas contratações públicas, São Paulo, Atlas, 2014. STASSINOPOULOS, Michel, D Traité des actos administratifs. Paris, Libraire Generalés de Droit et de Jurisprudence, 1973.

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O MERCADO ÚNICO DIGITAL COMO CATALISADOR DE UMA METAMORFOSE DIGITAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA UNIÃO EUROPEIA

Sophie Perez Fernandes1

Resumo: O presente trabalho procura enquadrar a realização do Mercado Único Digital à luz da teoria da metamorfose do mundo formulada por Ulrich Beck. Para o efeito, é considerada a implementação do Mercado Único Digital no setor público através de serviços públicos digitais transfronteiriços, interoperáveis e de alta qualidade. O objetivo é traçar as principais características emergentes da configuração de uma administração pública do Mercado Único Digital. Palavras-chave: Metamorfose do mundo – Mercado Único Digital – interoperabilidade – boa administração

1 Professora Auxiliar Convidada da Escola de Direito da Universidade do Minho (EDUM). Referendária no Tribunal de Justiça da União Europeia. As opiniões expressas nesta contribuição são da exclusiva responsabilidade da Autora e não da instituição à qual pertence.

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O Mercado Único Digital como catalisador de uma metamorfose digital da administração pública na União Europeia Sophie Perez Fernandes

Abstract: This paper seeks to frame the implementation of the Digital Single Market in the light of the theory of the metamorphosis of the world formulated by Ulrich Beck. For that purpose, the implementation of the Digital Single Market in the public sector through digital, interoperable, and high quality cross-border public administration is discussed. The purpose is to identify the main characteristics emerging from the configuration of a public administration of the Digital Single Market. Keywords: Metamorphosis of the world – Single Digital Market – interoperability – good administration Sumário 1. Enquadramento – a metamorfose digital do mundo 2. Mercado Único Digital: pilar de uma União que abraça e promove a metamorfose digital do mundo 3. O modelo de administração pública do Mercado Único Digital 4. Considerações finais

1. Enquadramento – a metamorfose digital do mundo Em 2015, faleceu Ulrich Beck, um dos mais influentes sociólogos da atualidade. Conhecido pela elaboração do conceito de sociedade do risco (1986)2, a obra de Ulrich Beck caracteriza-se pela transversalidade dos temas abordados. Ao longo da sua obra, ofereceu uma reflexão crítica profunda sobre as consequências dos avanços e progressos técnicos e tecnológicos e dos riscos globais como as alterações climáticas, a ameaça terrorista e as crises financeiras enquanto efeitos secundários de um processo de modernização bem-sucedido que, pela primeira vez, confrontam as sociedades industriais com o desconforto existencial de a ação humana comportar o potencial de aniquilar a vida no planeta e com a responsabilidade ética daí resultante. O seu pensamento sobre o impacto nas sociedades contemporâneas do despertar da consciência ecológica, da emergência da era digital, dos colapsos do sistema financeiro e do projeto de integração europeia, é e continuará a ser uma referência para quem procura compreender a realidade que nos rodeia e os desafios que nos coloca.

2 Cfr. BECK, Ulrich, Risk Society: Towards a New Modernity, Sage, Londres, 1992; e, depois, A sociedade de risco mundial: em busca da segurança perdida, Edições 70, Lisboa, 2015.

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No seu último trabalho, A metamorfose do mundo: como as alterações climáticas estão a transformar a sociedade3, Ulrich Beck explica que o mundo está a passar por um processo de transição para um paradigma diferente quanto aos modos de existência no mundo, um processo de metamorfose que «[desafia] a nossa maneira de estar no mundo, de pensar sobre o mundo e de imaginar e praticar a política»4, os quais devem ser reequacionados à luz de novos quadros de referência a ditarem novas coordenadas de ação. Se bem que o trabalho se concentre sobretudo no risco climático global como agente deste processo de metamorfose, nele também os desafios colocados pela sociedade de risco digital são equacionados como agentes de um processo de metamorfose digital da sociedade: Ulrich Beck explora o modo como «[o] estar digital no mundo, o ver digital do mundo e a imaginação digital e o fazer política» na era digital estão a «substituir um quadro de referência por outro quadro de referência, que, até agora, é bastante desconhecido ou vago.»5 Em 1986, o eminente sociólogo utilizou a categoria da sociedade de risco e, em 2007, a da sociedade de risco mundial, para resumir «uma época da sociedade moderna que não só se livra das formas de vida tradicionais, como também questiona os efeitos secundários de uma modernização bem sucedida»6. A teoria da sociedade do risco confronta o processo de modernização das sociedades industrializadas, não com os seus fracassos, mas com os seus sucessos: «a sociedade moderna não padece das suas derrotas, mas sim das suas vitórias»7, pois a produção e a distribuição dos “bens” trazidos pelos avanços da ciência e da técnica ignoraram os efeitos negativos ou “males” correspetivos. Agora, em 2015, Ulrich Beck apresenta a sociedade de risco como agente da metamorfose do mundo: «[a] teoria da metamorfose vai para além da teoria da sociedade de risco mundial» pois «não se trata dos efeitos secundários negativos dos bens, mas dos efeitos secundários positivos dos males.»8 A tese defendida é a de que os riscos globais, em particular as alterações climáticas (risco climático), mas também a digitalização da sociedade (risco digital), proporcionam novas oportunidades para a ação política. É o que Ulrich Beck designa de catastrofismo emancipatório 3 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo: como as alterações climáticas estão a transformar a sociedade, Edições 70, Lisboa, 2017. Livro deixado inacabado em 2015, ficou concluído após um trabalho de colaboração que enredou várias pessoas pelos escritos deixados pelo Autor – cfr. BECK-GERNSHEIM, Elisabeth, “Prólogo”, in Ulrich Beck, A metamorfose do mundo…, cit., pp. 7-10. 4 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 35. 5 BECK, Ulrich, A sociedade de risco mundial..., cit., p. 187; cfr. pp. 179-188. 6 BECK, Ulrich, A sociedade de risco mundial..., cit., p. 29. 7 BECK, Ulrich, A sociedade de risco mundial..., cit., p. 56. 8 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 16 (itálico nosso).

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pois os choques antropológicos ocorridos9 trazem em si um potencial de catarse social quando deles «emergem novos horizontes normativos como um quadro de ação social e política e campo de atividades cosmopolitizado.»10 A teoria da metamorfose formulada por Ulrich Beck procura, pois, explorar o potencial emancipatório (socialmente transformativo) do risco, concebido enquanto antecipação da catástrofe, em razão dos seus efeitos secundários positivos escondidos. E metamorfose não equivale a (simples) mudança, ou revolução, reforma, ou crise, mas sim a um modo diferente de estar no mundo. Neste contexto, o conceito de mudança implica que «algumas coisas mudam, mas outras ficam iguais»: a mudança equivale a «transformação permanente» mantendo constantes os conceitos básicos e as certezas que sustentam a sociedade moderna, como sejam as formas da política e do direito do Estado-Nação. Já o conceito de metamorfose é elaborado por Ulrich Beck enquanto «conceito de diagnóstico teorético de transição» para explicar que o mundo atravessa um processo de «transformação muito mais radical, na qual as velhas certezas da sociedade moderna desaparecem, e algo de novo emerge». Tal como Gregor Samsa que acorda transformado em inseto gigantesco11, a metamorfose equivale a transfiguração para algo de diferente pois implica «uma transformação completa num tipo diferente, numa realidade diferente, num modo diferente de estar no mundo, de ver o mundo e de fazer política.» Assim, a metamorfose do mundo em curso desafia o modo de estar no mundo, o modo de pensar sobre o mundo e de imaginar e praticar a política e o direito a que o Estado-Nação, produto da (primeira) modernidade, nos habituou, ainda que esta remodelação da compreensão do mundo e da vida humana no mundo esteja a ocorrer «na sombra do silêncio», ou seja, «de forma invisível e não intencional, por baixo da superfície dos conceitos eternos imaginados do ser humano»12. No plano político, a metamorfose do mundo equivale a uma Viragem Coperniciana 2.0 que atinge o Estado-Nação pois convoca quadros de referência a ditarem coordenadas de ação centrados, não na Nação, mas nas «novas estrelas 9 O catastrofismo emancipatório, explica, é causado por choques antropológicos ocorridos quando «muitas populações sentem que estiveram sujeitas a acontecimentos terríveis que deixam marcas indeléveis nas suas consciências, que marcarão para sempre as suas memórias e mudarão o seu futuro de maneiras fundamentais e irrevogáveis.» Assim sucedeu, e continua a suceder, no respaldo da Segunda Guerra Mundial: esta causou um «choque antropológico graças ao qual respostas institucionais se torna[ra]m possíveis e [foram] institucionalizadas globalmente, não de forma automática, mas através de esforços culturais e políticos significativos», instituições como a ONU, o FMI e a UE nascidas, pois, do «potencial emancipatório do risco da guerra global» – cfr. BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., pp. 156 e 147. 10 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 150. 11 KAFKA, Franz, Metamorfose, 3ª edição, Publicações Europa-América, Sintra, 2009. 12 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., pp. 11-12, 15-16, 19 (nota) e 44-45.

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fixas» do século XXI que são o próprio mundo e a humanidade – um cosmopolitismo metodológico em alternativa ao nacionalismo metodológico próprio do Estado-Nação: «a Viragem Coperniciana 2.0 significa que o imperativo de conceber e de afirmar a nação como a estrela fixa em torno da qual o mundo gira está a ser suplantado pelo imperativo de pensar o “mundo” e a “humanidade” como estrelas fixas em torno das quais giram as nações»13. Isto não implica a morte do Estado-Nação, mas apenas uma reconfiguração da mundivisão do nacional: o Estado-Nação é, em virtude dos riscos globais, em particular das alterações climáticas, mas também da digitalização da sociedade, impelido ou convocado a «encontrar o seu lugar no mundo digital em risco, no qual as fronteiras se tornaram líquidas e flexíveis, [tem] de se (re)inventar, contornando as novas estrelas fixas do “mundo” e da “humanidade”.»14 Esta consciencialização da humanidade convoca, assim, formas de mobilização até agora desconhecidos pois os riscos globais demandam respostas, especialmente no plano institucional, capazes de enfrentar os desafios de um mundo cada vez mais interdependente. É por isso que, no quadro de um cosmopolitismo metodológico, traduzido em ações comuns e em rede pautadas por políticas de cooperação entre os múltiplos atores do cenário global, desde logo os Estados, mas também as cidades, unidas e chamadas a recuperar o seu papel pioneiro da democracia15, «[os] obstáculos (no âmbito nacional) metamorfoseiam-se em oportunidades (no âmbito cosmopolita)»16. No que se refere especificamente à metamorfose digital da sociedade, Ulrich Beck explica que a construção digital do mundo, grandemente alicerçada pela Internet, nas suas potencialidades no plano da comunicação e do consumo até à participação democrática17, provocam uma Viragem Coperniciana 2.0: a Internet criou o «mundo como unidade de comunicação» ao oferecer o «potencial de interligar literalmente toda a gente» num espaço onde «as fronteiras nacionais e outras são renegociadas, desaparecem e são reconstruídas – ou seja, são metamorfoseadas.»18 Em especial, exemplifica um choque antropológico com as revelações de Edward Snowden sobre a vigilância em grande escala, percecionadas «não como escândalo que passará em breve, mas como um efeito secundário do sucesso da criação de uma modernidade digital». Se aquelas revelações tornaram visível o invisível, que «as democracias se estão a metamorfosear de forma insidiosa e impercetível em regimes totalitários», as suas repercussões no plano 13 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 31. 14 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 19. 15 Cfr. BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., pp. 205-228. 16 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 26. 17 Cfr. BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., pp. 170-174. 18 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 18.

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político e jurídico também proporcionaram um novo «horizonte normativo que desafia as práticas existentes de vigilância totalizadora através de uma poderosa coligação entre Estados e empresas» pautada pelo «dogma da boa governação»19. Em termos gerais, o efeito secundário emancipatório ou catártico do risco digital global traduz-se, nas palavras do Autor, na «expectativa do humanismo digital» que eleva o direito à proteção dos dados pessoais e a liberdade digital a «direito humano global»20. A mudança de paradigma já encontra ressonância no tecido normativo: se os textos constitucionais nacionais da (primeira) modernidade zelaram pela inviolabilidade do sigilo da correspondência, a prioridade hodiernamente está cada vez mais na proteção dos dados transmitidos num espaço de livre circulação através, por isso, de instrumentos que operam para além das estruturas do Estado-Nação21.

2. Mercado Único Digital: pilar de uma União que abraça e promove a metamorfose digital do mundo No plano institucional, o desafio está, pois, em internalizar o «efeito secundário da modernidade digitalizada tornada em ADN social»22. É o que a estratégia apresentada pela Comissão Europeia em 2015 para a criação de um Mercado Único Digital se propõe, em última análise, fazer23. Assumido como

19 Cfr. BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., pp. 185-188. 20 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 185. 21 Disso sendo recente exemplo o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados aprovado pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE, JO L 119, 04.05.2016, pp. 1-88. 22 Cfr. BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 232. 23 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa», Bruxelas, 06.05.2015, COM(2015) 192 final; acompanhado pelo Documento de Trabalho (Commission Staff Working Document) «A Digital Single Market Strategy for Europe – Analysis and Evidence», Bruxelas, 06.05.2015, SWD(2015) 100 final. Os antecedentes imediatos da referida estratégia encontram-se na Estratégia Europa 2020, que tem por objetivo desenvolver uma economia baseada no conhecimento e na inovação, capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com níveis elevados de emprego e maior coesão social e territorial, e, em particular, numa das suas sete iniciativas emblemáticas, a Agenda Digital Europeia, iniciativa que tem por objetivo retirar benefícios económicos e sociais sustentáveis do mercado único digital – cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «EUROPA 2020 - Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo», Bruxelas, 03.03.2010, COM(2010) 2020 final, p. 16-17; e Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Uma Agenda Digital para a Europa», Bruxelas, 19.05.2010, COM(2010) 245 final.

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prioridade-chave da agenda política europeia24, o Mercado Único Digital é definido como «um mercado em que é assegurada a livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais25 e em que os cidadãos e as empresas podem beneficiar de um acesso sem descontinuidades a atividades em linha e desenvolver essas atividades em condições de concorrência leal e com um elevado nível de proteção dos consumidores e dos seus dados pessoais, independentemente da sua nacionalidade ou local de residência.»26 O referido documento identifica os seguintes três pilares para a realização do Mercado Único Digital: (i) melhorar o acesso a bens e serviços digitais a fim de derrubar os obstáculos à atividade transfronteiriça em linha; (ii) criar as condições adequadas ao desenvolvimento de redes e serviços digitais com o fim de promover a inovação, o investimento e a concorrência leal; e (iii) otimizar o potencial da digitalização da economia e da sociedade como motor de crescimento a fim de dinamizar a competitividade e melhorar os serviços públicos, a inclusão e as competências27. A realização do Mercado Único Digital assenta em ações-chave interdependentes em diversos domínios, tomadas e coordenadas a nível da União, especialmente no exercício das suas competências partilhadas com os Estados-Membros no âmbito do mercado interno28. Reforçar o quadro regulamentar em matéria de comércio eletrónico transfronteiras, de defesa do consumidor, de proteção dos dados, das telecomunicações e dos meios de comunicação social, promover soluções digitais nos domínios dos transportes, da energia, da saúde e da justiça, melhorar o acesso à administração em linha, desenvolver as competências digitais dos cidadãos, compõem o roteiro para a plena realização do Mercado Único Digital. A abordagem seguida é, pois, a de abraçar o recurso às tecnologias da informação e da comunicação (TIC), não como política setorial, mas como política a implementar horizontalmente, cobrindo todos os setores da economia e do setor público. No global, o objetivo estratégico prosseguido pela realização do Mercado Único Digital é o de permitir aos cidadãos e às empresas, assim como aos serviços públicos, aproveitar as oportunidades que a digitali24 A ideia foi reiterada pelo compromisso assumido pelo triunvirato legislativo da União em ultimar a regulamentação necessária à concretização do Mercado Único Digital até ao final de 2017 – cfr. Declaração Comum dos Presidentes do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão Europeia sobre as prioridades legislativas da UE para 2017, «Realizar uma Europa que protege, capacita e defende», 13 de dezembro de 2016 [disponível em https://ec.europa.eu/commission/sites/betapolitical/files/joint-declaration-legislative-priorities-2017-jan2017_pt.pdf]. 25 Cfr. art. 26.º TFUE. 26 COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa», cit., p. 3. 27 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa», cit., p. 4-20. 28 Cfr. art. 4.º, n.º 2, a), TFUE.

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zação da economia e da sociedade tem para oferecer, mas também enfrentar os desafios que coloca29, tendo em vista, em última análise, a criação de uma sociedade digital inclusiva que beneficie da era digital. Como conclui o documento da Comissão em referência, a realização do Mercado Único Digital «visa transformar a sociedade europeia e assegurar que esta esteja em condições de enfrentar o futuro com confiança.»30 A realização do Mercado Único Digital assenta, pois, na incontornável realidade da era digital e, por isso, é assumida como uma necessidade31. Como referiu o Presidente Jean-Claude Juncker no seu Discurso do Estado da União 2016, «tanto os cidadãos como a própria economia entraram já na era digital.»32 Regressando ao trabalho de Ulrich Beck, releva mais do dado adquirido que do facto a demonstrar que as gerações atuais encaram o digital a priori – «não no fim, mas no princípio da sua socialização» – enquanto parte do seu «equipamento genético», com isso invertendo a ordem “natural” ou metamorfoseando a socialização: então que os mais jovens já nascem «seres digitais», as gerações mais velhas, nascidas «seres humanos», acordaram qual Gregor Samsa metamorfoseados em «insetos chamados iliteratos digitais», de modo que «a geração mais nova torna-se professora da mais velha, mostrando aos idosos o caminho para a frente». Por isso, as gerações mais velhas e as mais novas, se bem que contemporâneas, não vivem «no mesmo tempo» pois enquanto aquelas têm esta metamorfose como sua «segunda natureza», estas a experienciam como «ameaça à sua existência»33. É a razão pela qual a digitalização da sociedade e da eco29 Um estudo do Eurobarómetro de 2017 revela que dois terços dos europeus consideram que as tecnologias digitais mais recentes têm um impacto positivo na sociedade, na economia e nas suas vidas pessoais, para além de a maioria dos inquiridos considerar que a União, as autoridades dos Estados-Membros e as empresas devem tomar medidas para resolver os problemas suscitados pela digitalização – cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões sobre a revisão intercalar relativa à aplicação da Estratégia para o Mercado Único Digital, «Um Mercado Único Digital conectado para todos», Bruxelas, 10.05.2017, COM(2017) 228 final, p. 2, em referência ao inquérito do Eurobarómetro «Atitudes dos cidadãos relativamente ao impacto da digitalização e da automatização na vida quotidiana», março de 2017, não publicado. A referida revisão intercalar traça o rumo a seguir em três domínios fundamentais: (i) potenciar a economia europeia dos dados, (ii) resolver os desafios em matéria de cibersegurança, e (iii) promover as plataformas em linha como elementos responsáveis de um ecossistema justo da Internet. 30 COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa», cit., p. 22. 31 Na sua Comunicação «Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa», cit., p. 3, a Comissão Europeia começa por explicar «por que razão precisamos de um mercado único digital». 32 JUNCKER, Jean-Claude, «Discurso sobre o Estado da União 2016: Por uma Europa melhor: uma Europa que proteja, defenda e dê maior intervenção», Estrasburgo, 14.09.2016, p. 5 [disponível em http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-16-3043_pt.htm (23.08.2017)]. 33 Cfr. BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., pp. 232-234.

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nomia, mesmo assumida como dado adquirido e dinâmico, pois as tecnologias da informação e das comunicações que a suportam encontram-se em constante evolução, não é, nem deve ser apreendida como fenómeno intangível34. O rumo encetado pela digitalização da economia e da sociedade em curso depende da forma como os cidadãos, as empresas e o setor público recorrem às tecnologias da informação e das comunicações. Em consequência, e uma vez que o Direito participa (se bem que não em regime de monopólio) da estruturação e manutenção de um sentido de ordem social, o rumo encetado pela digitalização da economia e da sociedade em curso depende também do enquadramento normativo que é dado ao recurso àquelas tecnologias, tanto para tirar proveito das múltiplas e diversas vantagens que proporcionam, como para dar resposta aos riscos que geram. É assim que, com a realização do Mercado Único Digital, através de todo o enquadramento normativo que a sustenta, a União simultaneamente abraça e promove a era digital, afirmando-se como agente da metamorfose digital, se não do mundo, pelo menos da sociedade europeia. Se bem que a via escolhida aparente indicar uma viragem de paradigma para o digital circunscrita ao mercado interno – que, para além de revestir os contornos programáticos inscritos na norma que mapeia o processo de integração europeia35, o art. 3.º TUE, em especial o seu n.º 336, adota agora também uma roupagem digital – nele se adivinha um propósito mais ambicioso e profundo – o da formatação digital da vida socioeconómica, mas também política-democrática dos organismos públicos e dos agentes privados enredados no processo de integração. Não é um método estranho ao processo de integração europeia, geneticamente formatado para a instrumentalização da integração económica para fins de integração emi-

34 É esta a abordagem que transparece dos documentos institucionais que sustentam a realização do Mercado Único Digital e, no mais recente, no da sua revisão intercalar – cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação sobre a revisão intercalar relativa à aplicação da Estratégia para o Mercado Único Digital, «Um Mercado Único Digital conectado para todos», cit., p. 24. 35 Neste sentido, cfr. MADEIRA FROUFE, Pedro, e CARAMELO GOMES, José, «Mercado Interno e Concorrência», in Direito da União Europeia – Elementos de Direito e Políticas da União, SILVEIRA, Alessandra, Canotilho, MARIANA, e MADEIRA FROUFE, Pedro (coord.), Almedina, Coimbra, 2016, p. 451. 36 Assim dispõe o 1º parágrafo do n.º 3 do art. 3.º TUE: «A União estabelece um mercado interno. Empenha-se no desenvolvimento sustentável da Europa, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social, e num elevado nível de proteção e de melhoramento da qualidade do ambiente. A União fomenta o progresso científico e tecnológico.»

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nentemente política37. Esta agenda político-constitucional ínsita à realização do Mercado Único Digital38 torna-se autoevidente considerando o quanto as tecnologias de informação e comunicação facilitam o acesso e a troca de informações além-fronteiras e, assim, considerado o seu potencial para um «processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa» no sentido do art. 1.º TUE39.

3. O modelo de administração pública do Mercado Único Digital Um dos pilares fundamentais sobre os quais assenta a plena realização do Mercado Único Digital é o desenvolvimento da administração pública em linha / digital ou e-administration. Como recentemente sublinhou a Comissão Europeia, «[o] setor público, que representa mais de um quarto do emprego total e contribui para aproximadamente um quinto do PIB da UE através dos contratos públicos, desempenha um papel crucial no mercado único digital enquanto regulador, prestador de serviços e empregador.»40 Com o objetivo geral de maximizar os benefícios socioeconómicos sustentáveis de um mercado único digital, a Agenda Digital Europeia, uma das iniciativas emblemáticas da Estratégia

37 A construção do mercado comum como instrumento da integração política almejada é a ideia motora patente na Declaração Schuman de 9 de maio de 1951, desde o seu primeiro esboço – cfr. MONNET, Jean, Mémoires, Fayard, Paris, 1976, pp. 349-350. 38 Para mais desenvolvimentos, ABREU, Joana, «O Mercado Único Digital e o seu desígnio político-constitucional: o impacto da Agenda Eletrónica Europeia nas soluções de interoperabilidade» / «Digital Single Market under EU political and constitutional calling: European electronic agenda’s impact on interoperability solutions», in UNIO - EU Law Journal, vol. 3, n.º 1, 2017, pp. 130-150 e 123-140 (respetivamente) [disponíveis em http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt (02/03/2018)]. 39 Considerando os resultados de uma consulta pública sobre a cidadania da União realizada em 2015, na qual os inquiridos consideraram problemática a falta de acesso e de cobertura transnacional de questões de natureza política, a Comissão Europeia assumiu o compromisso de refletir sobre o contributo que a utilização dos instrumentos da sociedade digital pode trazer para o debate e a participação democráticas, especialmente tendo em perspetiva as eleições para o Parlamento Europeu de 2019. Para além do acesso transnacional a informações políticas, está igualmente em cogitação a utilização de ferramentas de democracia eletrónica e modalidades de votação à distância (voto eletrónico) para contrariar a tendencial baixa afluência às urnas – cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Relatório de 2017 sobre a Cidadania da EU, «Reforçar os direitos dos cidadãos numa União da mudança democrática», Serviço das Publicações da União Europeia, Luxemburgo, 2017, pp. 17-21 [disponível em file:///C:/Users/sophi/Downloads/CitizenshipReport-Summary-PT.pdf (02/03/2018)]. 40 COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Quadro Europeu de Interoperabilidade – Estratégia de execução», Bruxelas, 23.03.2017, COM(2017) 134 final, p. 1.

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Europa 202041, inscreveu o apoio à criação de serviços de administração pública em linha transfronteiras e sem descontinuidades no mercado único de entre as suas ações-chave com o fito de explorar os benefícios das tecnologias da informação e das comunicações no setor público e para além das fronteiras nacionais42. Foram, até o momento, sucessivamente adotados três planos de ação para a administração pública em linha, o primeiro cobrindo o período 2006-201043, o segundo adotado na sequência da Agenda Digital Europeia para o período 2011201544, estando correntemente em execução o terceiro plano de ação referente ao período 2016-2020, o qual acompanha a Estratégia para o Mercado Único Digital45. O balanço feito neste terceiro plano de ação aos seus dois antecessores no apoio à coordenação e colaboração entre os Estados-Membros e a Comissão na condução de ações conjuntas em matéria de administração pública em linha é globalmente positivo, se bem que não plenamente conseguido, sendo reconhecido no plano institucional que cidadãos e empresas «ainda não beneficiam plenamente dos serviços digitais que devem estar uniformemente disponíveis na UE.»46 O terceiro plano de ação para a administração pública em linha tem por finalidade e título «Acelerar a transformação digital da administração pública». O documento confirma a asserção conclusiva feita supra: através da realização do Mercado Único Digital, a União não só abraça, como também promove a era digital. Se a realização do Mercado Único Digital é assumida como uma necessidade em razão da incontornável realidade da era digital, nem por isso a União assume para com esta uma atitude passiva. Antes procura tirar proveito das suas múltiplas e diversas vantagens para o processo de integração europeia e participar ativamente nas respostas aos riscos que lhe são associados, por vezes 41 Cfr., supra, nota 22. 42 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, «Uma Agenda Digital para a Europa», cit., pp. 36-38. 43 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Plano de acção “Administração em linha i2010”: Acelerar a Administração em linha na Europa para benefício de todos», Bruxelas, 25.04.2006, COM (2006) 173 final. 44 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Plano de acção europeu (2011-2015) para a administração pública em linha. Tirar partido das TIC para promover uma administração pública inteligente, sustentável e inovadora», Bruxelas, 15.12.2010 COM (2010) 743 final. 45 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», Bruxelas, 19.04.2016 COM (2016) 179 final. 46 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 2.

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acrescidos em razão do processo de integração europeia. Isto passa, não só, mas também pela «transformação digital da administração pública» enquanto «elemento essencial para o sucesso do Mercado Único.»47 Se, tendo por referência a sugestiva teoria da metamorfose do mundo esboçada por Ulrich Beck no seu último trabalho, a realização do Mercado Único Digital permite afirmar a União como agente da metamorfose digital da sociedade europeia, a sua concretização no domínio do setor público permite testar a União enquanto agente da metamorfose digital da administração pública, ou seja, enquanto agente ativo de um processo de transformação digital da administração pública da qual emerge uma nova forma de estar/existir (não de ser!48) da administração pública, de pensar sobre a administração pública e de imaginar/concetualizar e praticar a função administrativa. O rumo traçado para acelerar a transformação/metamorfose digital da administração pública assenta, nos termos do terceiro plano de ação correntemente em execução, na seguinte visão partilhada a longo prazo: «Até 2020, as administrações públicas e as instituições públicas da União Europeia deverão ser abertas, eficientes e inclusivas, prestando serviços públicos em linha integrais, sem fronteiras, personalizados e de fácil utilização a todos os cidadãos e empresas na UE. São utilizadas abordagens inovadoras na conceção e prestação de serviços melhores de acordo com as necessidades e exigências dos cidadãos e das empresas. As administrações públicas utilizam as oportunidades oferecidas pelo novo ambiente digital para facilitar a sua interação entre si e com as partes interessadas.»49 Neste caminho, as prioridades estratégicas aí definidas procuram alicerçar as bases de uma administração pública capaz de proporcionar a mobilidade transfronteiriça no mercado único da União por meio de serviços públicos digitais, interoperáveis e de elevada qualidade50. É, para além disso, elencado um conjunto de princípios a serem observados em execução do plano de ação, princípios que têm por finalidade «proporcionar as vantagens significativas que a administração pública em linha pode oferecer às empresas, aos cidadãos e às próprias administrações públicas.»51 47 COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 1. 48 Pois não se trata do desenho de uma nova administração pública, pois a sua missão no contexto do processo de integração europeia continua aquela delineada pelos Tratados sobre os quais se funda a União, mas de uma nova forma de administração pública. 49 COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 3. 50 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., pp. 5-13. 51 COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 3.

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(i) Primeiramente, as iniciativas adotadas em execução do referido plano deverão observar o princípio digital por definição pelo qual «as administrações públicas devem prestar os serviços por via eletrónica (incluindo informações legíveis por meios mecânicos) como opção privilegiada (mantendo outros canais abertos para quem não utiliza esta via por preferência ou necessidade). Além disso, os serviços públicos devem ser prestados através de um único ponto de contacto ou de um balcão único e através de canais diferentes.» A Comissão propôs neste quadro a criação de um Portal Digital Único52, um instrumento que, com base nos portais, pontos de contacto e redes já existentes, proporcione aos cidadãos e às empresas um pacote conectado e coerente de serviços em linha no âmbito do mercado único, facilitando o acesso às informações, a tramitação de procedimentos e a assistência e a resolução de litígios num contexto transfronteiriço. Dentro da mesma lógica, o princípio digital por definição é complementado por dois outros princípios “por definição”: o princípio transfronteiriço por definição pelo qual «as administrações públicas devem disponibilizar os serviços públicos digitais relevantes internacionalmente e evitar o surgimento de uma maior fragmentação, facilitando assim a mobilidade no Mercado Único»; e o princípio interoperabilidade por definição, de acordo com o qual «os serviços públicos devem visar trabalhar uniformemente no Mercado Único e através de domínios organizacionais, com base na livre circulação de dados e serviços digitais na União Europeia.» Em particular, a interoperabilidade é um dos elementos-chave para a implementação e o pleno funcionamento de uma administração pública em linha operativa numa escala transfronteiriça. Contudo, mais do que o simples intercâmbio de dados entre os sistemas TIC das administrações públicas dos diversos Estados-Membros e entre estas e a própria União, a interoperabilidade é concebida em termos mais amplos, sendo neste sentido definida normativamente como «a capacidade de organizações díspares e diversas interagirem com vista à consecução de objetivos comuns com benefícios mútuos, definidos de comum acordo, implicando a partilha de informações e conhecimentos entre

52 Anunciado na Estratégia para o Mercado Único Digital (cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa», cit., pp. 18-19) e reiterado no terceiro plano de ação para a administração pública em linha [cfr. COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., pp. 8-9]. Os resultados da respetiva consulta pública, ocorrida entre novembro de 2015 e dezembro de 2016, foram publicados em 2017 – cfr. COMISSÃO EUROPEIA, «Relatório de Síntese relativo à consulta das partes interessadas sobre o Portal Digital Único que acompanha o documento ‘Proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à criação de um Portal Digital Único para a prestação de informação, procedimentos, serviços de assistência e de resolução de problemas, e que altera o Regulamento (UE) n.º 1024/2012’», Bruxelas, 02.05.2017, SWD(2017) 212 final, COM(2017) 256 final.

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si, no âmbito dos processos administrativos a que dão apoio, mediante o intercâmbio de dados entre os respetivos sistemas de TIC.»53 Remonta à década de 1990 o reconhecimento institucional da interoperabilidade entre as administrações públicas como necessidade para a criação e a operacionalidade de sistemas integrados de comunicação de dados entre as administrações no contexto do mercado interno. Foram, desde então, adotados vários programas para promover soluções de interoperabilidade transetorial e/ ou transfronteiras a fim de facilitar a cooperação entre administrações públicas, com destaque para os sucessivos Programas IDA (Interchange of Data between Administrations)54 e ISA (Interoperability Solutions for European Public Administrations)55. Para o período 2016-2020, coincidente, pois, com o período de execução do terceiro plano de ação para a administração pública em linha, é o Programa ISA2 que promove soluções de interoperabilidade e quadros comuns para as administrações públicas, as empresas e os cidadãos56. Na sequência da Agenda Digital Europeia, a Comissão apresentou em 2010 a Estratégia Europeia de Interoperabilidade (EEI) e o Quadro Europeu de Interoperabilidade (QEI) para os serviços públicos europeus, formulando uma série de orientações e recomen53 Cfr. art. 2.º, a), da Decisão n.º 922/2009/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, sobre soluções de interoperabilidade para as administrações públicas europeias (ISA), JO L 260 de 03.10.2009, pp. 20-27 (revogada); art. 2.º, n.º 1, da Decisão (UE) 2015/2240 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que cria um programa sobre soluções de interoperabilidade e quadros comuns para as administrações públicas, as empresas e os cidadãos europeus (Programa ISA2) como um meio para modernizar o setor público, JO L 318, 04.12.2015, pp. 1-16. 54 Cfr. Decisão 95/468/CE do Conselho, de 6 de novembro de 1995, relativa ao apoio ao intercâmbio telemático de dados entre Administrações na Comunidade (IDA), JO L 269 de 11.11.1995, pp. 2325; Decisão 1719/1999/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 1999, relativa a uma série de orientações, incluindo a identificação de projetos de interesse comum, respeitantes a redes transeuropeias para o intercâmbio eletrónico de dados entre administrações (IDA), JO L 203 de 03.08.1999, pp. 1-8; Decisão 1720/1999/EC do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 1999, que adota uma série de ações e medidas destinadas a garantir a interoperabilidade das redes transeuropeias para o intercâmbio eletrónico de dados entre administrações (IDA), JO L 203 de 03.08.1999, p. 9-13; e Decisão 2004/387/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, sobre a prestação interoperável de serviços pan-europeus de administração em linha (eGovernment) a administrações públicas, empresas e cidadãos (IDABC), JO L 181 de 18.05.2004, p. 25-35. Cfr., ainda, COMISSÃO EUROPEIA, Relatório ao Parlamento Europeu e ao Conselho, «Avaliação do programa IDA II», Bruxelas, 07.03.2003 COM(2003)100 final. 55 Cfr. Decisão 922/2009/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, sobre soluções de interoperabilidade para as administrações públicas europeias (ISA), JO L 260 de 03.10.2009, pp. 20-27. 56 Cfr. Decisão (UE) 2015/2240 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que cria um programa sobre soluções de interoperabilidade e quadros comuns para as administrações públicas, as empresas e os cidadãos europeus (Programa ISA2) como um meio para modernizar o setor público, JO L 318, 04.12.2015, pp. 1-16.

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dações para a melhoria da interação, do intercâmbio e da cooperação entre as administrações públicas57, inscrevendo a interoperabilidade entre as administrações públicas de entre os «objectivos essenciais da União Europeia» e, como tal, tida como «crucial para a integração europeia»58. Na estratégia de execução do QEI apresentada em 2017, a interoperabilidade é reconhecida como o elemento-chave para a transformação digital da administração pública em curso e, assim, para a realização do Mercado Único Digital no setor público59, pois assegura, numa abordagem intersectorial, ligações além fronteiras, não só entre as administrações públicas, mas também entre estas e os cidadãos e as empresas, mais eficientes. (ii) Para além destes princípios “por definição”, as iniciativas adotadas em execução do terceiro plano de ação para a administração pública em linha deverão igualmente observar o princípio da declaração única, também conhecido como princípio uma única vez, pelo qual «as administrações públicas devem garantir que os cidadãos e as empresas fornecem as mesmas informações uma única vez às administrações públicas. As repartições públicas envidam esforços, se permitido, para reutilizar estes dados internamente, no devido respeito pelas regras de proteção de dados, para que não se verifiquem encargos desnecessários para os cidadãos e as empresas.» O escopo deste princípio não se limita em permitir que um único contacto seja suficiente para a transmissão de informações, a formulação de pedidos ou a apresentação de documentos junto da administração pública de um certo Estado-Membro, onerando esta à sua reutilização e eventual retransmissão entre as autoridades competentes, no respeito pelas regras aplicáveis à proteção dos dados. Na medida em que a administração pública do Mercado Único Digital é, como se viu, transfronteiriça e interoperável por definição, a Estratégia para o Mercado Único Digital prevê o alargamento do escopo deste princípio para além das fronteiras dos Estados-Membros60, tendo a Comissão Europeia, entretanto, assumido o compromisso de avaliar a possibilidade da aplicação do princípio declaração única num contexto transfronteiriço até 201961. 57 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, «Para a interoperabilidade dos serviços públicos europeus», Bruxelas, 16.12.2010, COM(2010) 744 final, Anexos I e II, respetivamente. 58 COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Para a interoperabilidade dos serviços públicos europeus», cit., p. 9. 59 Neste sentido, cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Quadro Europeu de Interoperabilidade – Estratégia de execução», cit., p. 2. 60 COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Estratégia para o Mercado Único Digital na Europa», cit., p. 19. 61 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 13.

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(iii) Por último, mas longe de ser o menos importante, a este elenco principiológico o documento em análise acresce os princípios da inclusividade e acessibilidade, da abertura e transparência e da credibilidade e segurança, os quais têm em comum o intuito de criar um clima de confiança na adoção e utilização de serviços públicos digitais62. Como referido, as prioridades estratégicas deste terceiro plano de ação para a administração pública em linha procuram facilitar e promover a mobilidade transfronteiriça dos cidadãos e das empresas, o que passa pelo exercício dos direitos que o direito da União lhes reconhece, por meio de serviços públicos não só digitais e interoperáveis, mas também de elevada qualidade com o fim de «contribuir para integrar os cidadãos, as empresas e a sociedade civil no processo colaborativo de conceção, produção e prestação de serviços públicos e para facilitar a interação entre as administrações públicas e as empresas e os cidadãos.»63 Ora, só é possível alcançar o pleno potencial de uma administração pública em linha se cidadãos e empresas confiarem nos serviços públicos digitais oferecidos. A concretização do Mercado Único Digital no domínio do setor público está, por isso, orientada para potenciar (e não comprometer) o exercício de direitos através de ferramentas digitais e promover a confiança e a credibilidade num poder público exercido através dessas ferramentas, assumindo o mercado único da União também como espaço de democracia. Sendo o Mercado Único Digital também um espaço de exercício de poder público na União, a sua concretização por via de serviços públicos digitais e interoperáveis numa escala operativa transfronteiriça não podia alhear-se de um compromisso de «qualidade do exercício do poder a nível europeu» previamente assumido64 assente, entre outros, em padrões de boa administração tendentes a criar/inspirar um clima de confiança no exercício do poder público na União65. E se, no entretanto, tais padrões de boa administração ganharam especial visibilidade na ordem jurídica

62 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 4. 63 COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 13. 64 Cfr. COMISSÃO EUROPEIA, Comunicação «Governança Europeia - Um Livro Branco», 25.07.2001, COM(2001) 428 final, JO C 287 de 12.10.2001, p. 5. 65 Neste sentido, contemplando o princípio da boa administração, juntamente com os princípios da transparência, da igualdade de armas e da precaução, de entre os «trust-enhancing principles» decorrentes da jurisprudência do TJUE em ordem a «strenghten the accountability of the Union and the Member States to the citizens», LENAERTS, Koen, «‘In the Union we trust’: trust-enhancing principles of Community law», in Common Market Law Review, n.º 41, 2004, pp. 336340.

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da União enquanto tutela de direitos subjetivos públicos66, impera agora a sua formatação à era digital, muito particularmente por via da sua articulação com o direito (fundamental) à proteção dos dados pessoais67, quiçá na «expectativa do humanismo digital» de que nos fala Ulrich Beck68. É o que explica que perpasse pelo documento ora em análise uma abordagem centrada no cidadão-administrado da era digital – o cidadão-utilizador –, não só verdadeiro titular do poder público num sistema democrático, mas em especial titular dos dados pessoais transmitidos para e partilhados entre administrações públicas. Considerando o paradigma administrativo que marcou a génese do processo de integração europeia, progressivamente constitucionalizado69, não surpreende que o ónus digital impacta, em primeira linha, sobre as administrações

66 Visibilidade impulsionada pela inscrição de um «direito a uma boa administração» na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE). Sobre o art. 41.º CDFUE, cfr., entre outros, KAŃSKA, Klara, «Towards Administrative Human Rights in the EU. Impact of the Charter of Fundamental Rights», in European Law Journal, vol. 10, n.º 3, 2004, pp. 296-326; MARTÍN DELGADO, Isaac, «La Carta ante las Administraciones Nacionales: Hacia la europeización de los derechos fundamentales», in NIETO GARRIDO, Eva, e MARTÍN DELGADO, Isaac, Derecho Administrativo Europeo en el Tratado de Lisboa, Marcial Pons, Madrid/Barcelona/Buenos Aires, 2010, pp. 89-148; BOUSTA, Rhita, «Who Said There is a ‘Right to Good Administration’? A Critical Analysis of Article 41 of the Charter of Fundamental Rights of the European Union», in European Public Law, vol. 19, n.º 3, 2013, pp. 481-488; CRAIG, Paul, «Article 41», in The EU Charter of Fundamental Rights. A Commentary, PEERS, Steve, et al. (ed.), Hart Publishing, Oxford, 2014, pp. 1069-1098; AZOULAI, Loïc, e CLEMENT-WILZ, Laure, «Le principe de bonne administration», in Traité de droit administratif européen, AUBY, Jean-Bernard, e DUTHEIL DE LA ROCHÈRE, Jacqueline (dir.), 2.ª edição, Bruylant, Bruxelas, 2015, pp. 671-697; e, entre nós, VIANA, Cláudia, «Artigo 41.º - Direito a uma boa administração», in Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, SILVEIRA, Alessandra, e CANOTILHO, Mariana, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 483-489; e PEREZ FERNANDES, Sophie, «A boa administração nas ‘calhas de roda’ dos discursos jurídico-constitucionais português e da União – ‘Gira, a entreter a razão’…?» / «Good administration “around the track” of the Portuguese and the EU constitutional discourses – “Winds, to entertain our minds”…?», in UNIO - EU Law Journal. vol. 3, n.º 1, 2017, pp. 95-113 e 90-108 [disponíveis em http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt (02/03/2018)]. 67 Sobre a proteção dos dados pessoais na ordem jurídica da União e, em especial, a sua consagração como direito fundamental no art. 8.º CDFUE, cfr., entre outros, SARMENTO E CASTRO, Catarina, «Artigo 8.º - Proteção de dados pessoais», in Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, SILVEIRA, Alessandra, e CANOTILHO, Mariana, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 120-128. 68 BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo…, cit., p. 185. 69 A propósito, cfr. o nosso «Administração Pública», in Direito da União Europeia – Elementos de Direito e Políticas da União, SILVEIRA, Alessandra, CANOTILHO, Mariana, e MADEIRA FROUFE, Pedro (coord.), Almedina, Coimbra, 2016, pp. 74-77.

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públicas70, especialmente sobre as administrações públicas dos Estados-Membros. A Comissão Europeia não fica, evidentemente, silente em relação à «sua própria transformação digital»71, de modo que é a «Administração europeia em sentido amplo»72 ou a «autoridade administrativa da União Europeia» no seu todo73 que é convocada para, digitalmente transformada/ metamorfoseada, assegurar a realização do Mercado Único Digital enquanto prioridade-chave do atual momento do processo de integração europeia. Atento, contudo, o seu protagonismo enquanto administração da União de direito comum74, sendo-lhes confiada, em primeira linha, a execução do direito da União enquanto missão «essencial para o bom funcionamento da União» e «matéria de interesse comum»75, são as administrações públicas dos Estados-Membros as primeiras visadas por esta «transformação digital» que se almeja «acelerar». Assim, o bom funcionamento e o sucesso do Mercado Único Digital dependerão, em primeira linha, do empenho das administrações públicas dos Estados-Membros na consecução desta matéria de interesse comum.

70 Esta foi uma das conclusões do #Digital4EU Stakeholder Forum organizado pela Comissão Europeia com o objetivo de analisar os progressos realizados na criação do Mercado Único Digital – cfr. COMISSÃO EUROPEIA, #Digital4EU 2016 Report, Bruxelas, 25.02.2016, p. 14 [disponível em https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/news/digital4eu-2016-report]. 71 COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 7. 72 MARTÍN DELGADO, Isaac, «La Carta ante las Administraciones Nacionales: Hacia la europeización de los derechos fundamentales», cit., p. 90 (tradução livre). 73 Tal como definida por ZILLER, Jacques, «L’autorité administrative dans l’Union européenne», in L’autorité de l’Union européenne, AZOULAI, Loïc, e BURGORGUE-LARSEN, Laurence (dir.), Bruylant, Bruxelas, 2006, p. 122: «La notion d’autorité administrative de l’Union peut être définie à mon sens comme l’exercice d’une fonction d’application de la législation et des politiques de l’Union européenne, par les institutions pertinentes de l’Union et de ses Etats membres, dans le respect de principes communs, dont l’application est garantie par les mécanismes de contrôles prévus tant pour les institutions de l’Union que pour celles de ses Etats membres.» 74 Aproveitando a expressão utilizada pelo (então) Tribunal de Primeira Instância (TPI) referindo-se, contudo, ao juiz nacional – cfr. acórdão TG/TPI Tetra Pak, 10 de julho de 1990, Proc. T-51/89, EU:T:1990:41, considerando 42. Também qualificando as administrações públicas nacionais como «administrations communes du système européen» ou «sujets européens communs», cfr. CHITI, Mario, «Les droits administratifs nationaux entre harmonisation et pluralisme eurocompatible», in Traité de droit administratif européen, AUBY, Jean-Bernard, e DUTHEIL DE LA ROCHÈRE, Jacqueline, 2ª edição, Bruylant, Bruxelas, 2015, pp. 870 e 871. 75 Cfr. arts. 291.º e 197.º TFUE, respetivamente. Sobre a importância destas disposições, na sua redação pós-Tratado de Lisboa, para a estruturação no sistema administrativo da União, compósito ou multinível, mas integrado – cfr. SCHWARZE, Jürgen, «European Administrative Law in the Light of the Treaty of Lisbon», in European Public Law, vol. 18, n.º 2, 2012, pp. 285-304; e CHITI, Mario, «Les droits administratifs nationaux entre harmonisation et pluralisme eurocompatible», cit., pp. 874-875.

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4. Considerações finais A amostragem principiológica selecionada permite desenhar alguns dos atributos essenciais do que se poderia designar por administração pública do Mercado Único Digital. A administração pública do Mercado Único Digital não se perfila simplesmente como uma administração pública digital, mas como uma administração pública digital capaz de responder aos desafios de um espaço socioeconómico interdependente como o da União Europeia. Por isso, à administração pública do Mercado Único corresponde um paradigma de administração pública eletrónica, ancorada no recurso às tecnologias de informação e comunicação (digital), aberta para além das fronteiras dos respetivos Estados-Membros (transfronteiriça) e interligada com as administrações públicas dos demais Estados-Membros (interoperável), capacitada para esgotar num único contacto as necessidades de interação com os particulares (cidadãos e empresas), sem descuido dos padrões de boa administração revisitados pelas demandas da era digital (uma boa administração digital)76. Se bem que a construção do Mercado Único Digital mobilize a autoridade administrativa da União no seu todo, ou seja, tanto as instituições, os órgãos e os organismos da União, como as autoridades administrativas dos Estados-Membros, enquanto organismos codependentes77 da estrutura administrativa compósita da União78, a verdade é que, como referido, são as administrações públicas dos Estados-Membros aquelas que terão um papel protagonista enquanto «executivos naturais»79 das políticas e do direito da União. Registe-se, por último, a seguinte renovação, ou mesmo metamorfose, de paradigma. É já assente que a modernização das administrações públicas no mundo contemporâneo se tem essencialmente materializado através da digitali76 Chamando especialmente a atenção para a necessária filtragem das soluções digitais impulsionadoras dos fenómenos de e-administration e de e-government pela lente dos princípios da proporcionalidade, da igualdade e da não discriminação, cfr. ABREU, Joana, «O Mercado Único Digital e o seu desígnio político-constitucional: o impacto da Agenda Eletrónica Europeia nas soluções de interoperabilidade», cit., pp. 144-149. 77 SCHWARZE, Jürgen, Droit Administratif Européen, 2ª edição, Bruylant, Bruxelas, 2009, p. I-67. 78 Assim, FRANCHINI, Claudio, «Les notions d’administration indirecte et de coadministration», in Droit Administratif Européen, AUBY, Jean-Bernard, e DUTHEIL DE LA ROCHERE, Jacqueline (dir.), Bruylant, Bruxelas, 2007, p. 261 : «Dans l’ensemble, on voit se dessiner clairement le projet d’une organisation administrative composite à plusieurs niveaux, parce qu’articulée sur plusieurs organes, se différenciant par leur nature et leur position, nationale et supranationale, dans une optique de déconcentration et d’intégration», organização inspirada «non pas du critère de la hiérarchie, mais du critère de l’interdépendance structurelle et fonctionnelle.» 79 Por oposição à Comissão, «instituição executiva natural» da União – cfr. FUENTETAJA PASTOR, Jesús Ángel, «El poder ejecutivo europeo», in Revista de Derecho de la Unión Europea, n.º 18, 2010, p. 124 (tradução livre). No mesmo sentido, cfr. CRAIG, Paul, EU Administrative Law, 2ª edição, Oxford University Press, Oxford, 2012, p. 4.

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zação da administração pública. O terceiro plano de ação para a administração pública em linha aqui analisado assim o assume de forma mais ou menos expressa: «Os planos de ação para a administração pública em linha constituíram instrumentos políticos para o progresso da modernização das administrações públicas da União Europeia.»80 Sucede que, para os Estados-Membros da União Europeia, esta transição para um modelo de administração pública digital resulta (se bem que não exclusivamente) enquadrada por instrumentos da União, não só institucionais (como os sucessivos planos de ação referidos), mas também, e principalmente, normativos. Assim, da mesma forma que modernização está para digitalização, também parece que a europeização das administrações públicas dos Estados-Membros, entendida (em sentido descendente81) enquanto contaminação ou modificação dos sistemas administrativos nacionais por influência do processo de integração europeia82, poderá também ser aferida em função da sua digitalização (não só, mas também) por meio de soluções de interoperabilidade em razão da sua projeção operativa transfronteiriça. Neste sentido, o “e” que, nas versões em língua inglesa dos documentos analisados, exprime a digitalização de vários e variados serviços que sustentam a vida socioeconómica no espaço da União – e-commerce, e-energy, e-transport, e-health, e-justice, e-procurement, e-administration, e-government, aos quais se podiam acrescer outros domínios como e-environment, e-customs, e-taxation – não significa apenas 80 COMISSÃO EUROPEIA, «Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha. Acelerar a transformação digital da administração pública», cit., p. 7. 81 Sobre os três sentidos, descendente, ascendente e horizontal, da europeização do Direito Administrativo enquanto «processo de contaminação recíproca» entre o direito da União Europeia e os direitos nacionais dos Estados-Membros em matérias administrativas, cfr. DUARTE, Maria Luísa, Direito Administrativo da União Europeia, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 23-24. 82 Sobre o processo de europeização do Direito Administrativo, cfr. ainda AA.VV., Les mutations du droit de l’administration en Europe. Pluralisme et convergences, MARCOU, Gerard (dir.), L’Harmattan, Paris, 1995; AA.VV., Le droit administratif sous l’influence de l’Europe. Une étude sur la convergence des ordres juridiques nationaux dans l’Union européenne, SCHWARZE, Jürgen (ed.), Bruylant, Bruxelas, 1996; KNILL, Christoph, The Europeanisation of National Administrations: Patterns of Institutional Change and Persistence, Cambridge University Press, 2001; AA.VV., The Europeanisation of Administrative Law: Transforming National Decision-Making Procedures, LADEUR, Karl-Heinz (ed.), Ashgate, Dartmouth, 2002; AA.VV., Europeanisation of Public Law, JANS, J. H., et. al. (ed.), 2ª edição, Europa Law Publishing, 2015; entre nós, cfr. D’OLIVEIRA MARTINS, Afonso, «A Europeização do Direito Administrativo Português», in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 9991024; OTERO, Paulo, Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 457-487 e 743-748; DUARTE, Maria Luísa, Direito Administrativo da União Europeia, cit., pp. 23-27; VILHENA DE FREITAS, Lourenço, Os Contratos de Direito Público da União Europeia no Quadro do Direito Administrativo Europeu. Volume I – Direito Administrativo da União Europeia, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 3453; QUADROS, Fausto de, Direito da União Europeia: Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 662-667; e o nosso «Administração Pública», cit., pp. 85-92.

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“electronic” (digital) mas também “european” (europeu) dada a regulamentação da União que enquadra a sua implementação83.

Referências bibiográficas AA.VV., Europeanisation of Public Law, JANS, J. H., et. al. (ed.), 2ª edição, Europa Law Publishing, 2015. AA.VV., Le droit administratif sous l’influence de l’Europe. Une étude sur la convergence des ordres juridiques nationaux dans l’Union européenne, SCHWARZE, Jürgen (ed.), Bruylant, Bruxelas, 1996. AA.VV., The Europeanisation of Administrative Law: Transforming National Decision-Making Procedures, LADEUR, Karl-Heinz (ed.), Ashgate, Dartmouth, 2002. AA.VV., Les mutations du droit de l’administration en Europe. Pluralisme et convergences, MARCOU, Gerard (dir.), L’Harmattan, Paris, 1995. ABREU, Joana Covelo de, «O Mercado Único Digital e o seu desígnio político-constitucional: o impacto da Agenda Eletrónica Europeia nas soluções de interoperabilidade» / «Digital Single Market under EU political and constitutional calling: European electronic agenda’s impact on interoperability solutions», in UNIO - EU Law Journal, vol. 3, n.º 1, 2017, pp. 130-150 e 123-140 (respetivamente). [disponíveis em http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt. (02/03/2018)]. AZOULAI, Loïc, e CLEMENT-WILZ, Laure, «Le principe de bonne administration», in Traité de droit administratif européen, AUBY, Jean-Bernard, e DUTHEIL DE LA ROCHÈRE, Jacqueline (dir.), 2.ª edição, Bruylant, Bruxelas, 2015, pp. 671- 697. BECK, Ulrich, A metamorfose do mundo: como as alterações climáticas estão a transformar a sociedade, Edições 70, Lisboa, 2017. BECK, Ulrich, A sociedade de risco mundial: em busca da segurança perdida, Edições 70, Lisboa, 2015. BECK, Ulrich, Risk Society: Towards a New Modernity, Sage, Londres, 1992.

83 Para um levantamento de alguns instrumentos normativos que suportam estas dimensões, cfr. os considerandos 5-18 da Decisão 2015/2240 (Programa ISA2).

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O Mercado Único Digital como catalisador de uma metamorfose digital da administração pública na União Europeia Sophie Perez Fernandes

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CIBERDEMOCRACIA E NOVOS DESAFIOS DE PARTICIPAÇÃO POLÍTÍCA NOS MEIOS DIGITAIS

Irene Patrícia Nohara1

Resumo: O presente escrito objetiva analisar os potenciais da ciberdemocracia para o aumento da participação política pelos meios digitais. Toma por base as transformações tecnológicas que revolucionaram as comunicações, sobretudo a partir do surgimento da internet. Analisa a dimensão sociopolítica da governança, enfatizando que existem desafios de reflexividade que burocracia deve enfrentar. São analisadas as potencialidades da ciberdemocracia, tendo como referencial teórico a obra de Pierre Lévy. Na sequência, é problematizada a proposta de Levy de “libertação da palavra”, sendo esta tida como uma utopia de ciberdemocracia enquanto instância apta a promover a construção de uma inteligência coletiva. Contrasta-se esta última possibilidade com o potencial de emergir, por outro lado, uma distopia, dada possibilidade de haver também manipulação e distorções das informações veiculadas em rede, tendo em vista o fenômeno da pós-verdade.

1 Livre-Docente em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo (USP), Doutora e Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, por onde se graduou. Professora-Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Email: irene. nohara@uol.com.br

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Ciberdemocracia e Novos Desafios de Participação Polítíca nos meios digitais Irene Patrícia Nohara

Palavras-Chave: Ciberdemocracia, Burocracia Reflexiva, Transparência, Sociedade Tecnológica, Libertação da Palavra Abstract: The present paper aims to analyze the potential of cyberdemocracy in political participation through digital media. It is based on technological changes that have revolutionized communications, especially since the rise of the internet. It analyzes the sociopolitical dimension of governance, emphasizing that there are challenges of reflexivity that are proposed to bureaucracy. The potentialities of cyberdemocracy are also analyzed, with theoretical reference on Pierre Lévy. His proposal of “liberation of the word” is then problematized, so that his utopia of cyberdemocracy is being contrasted, from an instance able to promote the construction of a collective intelligence to the equally potential possibility of having, in postmodernity, a dystopia, due to control, manipulation and distortions that are related to post-truth. Keywords: Cyber democracy, Reflective Bureaucracy, Transparency, Technological Society, Word Liberation Sumário: Considerações Introdutórias. 1. Dimensão sociopolítica da Governança Pública e maior reflexividade da burocracia; 2. Potencialidades da ciberdemocracia. 3. Desafios à informação e à produção de consensos nos meios digitais. Conclusões.

Considerações Introdutórias A presente análise objetiva promover reflexões sobre a Ciberdemocracia, seus desafios e as novas possibilidades de participação política. O escrito foi elaborado para compor coletânea estruturada a partir das discussões ocorridas no evento sobre democracia econômica e a responsabilidade social nas sociedades tecnológicas, que aconteceu em 16 de janeiro de 2018 na Faculdade de Direito da Universidade do Minho, com participação de pesquisadores das Faculdades de Direito da Universidade do Porto, da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Estadual de Londrina. Antes de iniciar o tratamento da matéria, quero registrar meus agradecimentos à Maria Miguel Carvalho e à Ana Flávia Messa, que são as idealizadoras do workshop em que pudemos discutir temas relevantes e atuais, inclusive com a rica possibilidade de colaboração e aumento do impacto do trabalho por meio

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da organização conjunta da atual obra, que acredito que será fundamental para aumentar o espectro de alcance dos assuntos abordados no evento. Falar na expressão ciberdemocracia implica tomar por base o referencial teórico da obra de Pierre Lévy. Este é professor francês radicado no Canadá que credita nas revoluções tecnológicas, sobretudo a ocorrida a partir do advento da internet, isto é, da década de noventa em diante, uma transformação estrutural nas comunicações humanas. Objetiva-se, portanto, expor os argumentos principais que refletem o otimismo que Pierre Lévy enfoca nas transformações proporcionadas pela comunicação digital, no tocante à ampliação de uma suposta inteligência coletiva, a partir da qual ocorrem condições para a realização da ciberdemocracia. Assim, inicialmente serão expostas as mudanças ocorridas que incentivam as práticas democráticas na burocracia, com ênfase no caso do Brasil, o que se deu pelo estímulo mais recente à dimensão sociopolítica da governança pública. São aspectos que intensificam a realização do princípio democrático: as mais recentes exigências de transparência e o incremento legislativo de formas de participação direta da população na discussão dos assuntos coletivos. Outrossim, serão expostos os alicerces que sustentam a argumentação de Pierre Lévy acerca das potencialidades de emergência da ciberdemocracia, com foco nas transformações ocorridas nas comunicações. O mencionado otimismo será, na sequência, contrastado com algumas dificuldades que a democracia enfrenta na comunicação que se dá nos meios digitais, tendo em vista o emergir do debate da pós-verdade, o questionamento sobre se haveria mesmo a formação de uma inteligência coletiva digital e, por fim, os desafios que a rede deve enfrentar para que efetivamente promova a possibilidade de um debate equilibrado, visto como condição para o exercício da democracia. Espera-se, portanto, contribuir para a reflexão da questão da ciberdemocracia não apenas com ênfase nos novos potenciais, que efetivamente existem e podem ser, dependendo das circunstâncias regulatórias, revolucionários, mas principalmente com o cotejo dos gargalos que a comunicação em rede deve enfrentar para que haja um debate capaz de produzir consensos, o que pressupõe um embate produtivo e a síntese de visões de mundo.

1. Dimensão sociopolítica da Governança Pública e maior reflexividade da burocracia Houve na década de noventa um debate sobre governança que foi estimulado pelas Reformas nas Administrações Públicas. No Brasil, focou-se muito nas dimensões econômico-financeira, isto é, nos cortes e ajustes fiscais, e administrativo-institucional, com a previsão de novos modelos de gestão. No entanto, res-

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sentem-se os analistas2 da ausência de um aprofundamento, naquele momento de reforma, da necessidade do debate da dimensão sociopolítica da governança pública. Contudo, mais recentemente, houve a ênfase também em diversos diplomas legislativos na questão da dimensão sociopolítica da gestão. Um exemplo foi o incremento das formas de interlocução democrática com exigências maiores de participação popular na discussão de assuntos de interesse coletivo, como ocorre nas audiências públicas e consultas populares. Estas foram disciplinadas genericamente pela Lei nº 9.784/99 (Lei federal de Processo Administrativo). A Lei de Processo Administrativo trabalha com a facultatividade na realização da audiência ou da consulta pública, mas no Brasil existem leis de agências reguladoras que exigem que elas sejam obrigatórias. A lei geral também deixa aberta a possibilidade de outras formas de participação, o que pode ser feito com uma consulta ou enquete eletrônica. Um avanço significativo em prol da realização da dimensão sociopolítica da governança se deu a partir da Lei de Acesso à Informação. A Lei nº 12.527/2011 trabalha com a noção de transparência do Poder Público. A transparência tanto pode ser ativa, quando a Administração Pública fornece os dados da gestão no seu site, como passiva, que ocorre diante da necessidade de fornecimento de informações toda vez que a Administração Pública é provocada pela sociedade civil. A dimensão sociopolítica significa ampliar os canais de diálogo da Administração Pública, que deve buscar maior consenso nas suas práticas. Implica, portanto, deixar de lado a ideia da burocracia encastelada em suas certezas e ampliar o diálogo, no contexto da democracia informacional, com a população para o alcance de uma ação mais legítima por parte do Poder Público. Ela busca realizar a democracia a partir da abertura dos canais de comunicação direta com a sociedade civil. Com esse novo instrumental aumentam as condições de controle social da Administração Pública. Ressalte-se que não se trata só da questão de controle, mas a noção de cidadania se ampara no fato de que o cidadão deve ser tratado com dignidade, o que implica ser considerado sujeito, ou seja, pessoa que é envolvida no debate acerca dos rumos das decisões que irão futuramente alcançar seus interesses. Trata-se de situação distinta da condição de objeto de decisões que são tomadas por outras pessoas. Logo, como desdobramento da necessidade de ampliar a participação cidadã houve, mais recentemente no Brasil, a edição da Lei 2 A exemplo de: RONCONI, Luciana, Governança Pública: Um Desafio à Democracia, Emancipação, Ponta Grossa, v. 11, n.º 1, pp. 21-24. p. 23.

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de Proteção ao Usuário de Serviços Públicos (Lei nº 13.460/2017), que prevê os conselhos de usuários na avaliação dos serviços, além de listar diversas formas de manifestação dos usuários, exigindo a estruturação de ouvidorias como canais para o recebimento de reclamações. Para além dos novos instrumentos que permitem viabilizar o princípio democrático do Estado, há a necessidade, urgente nas sociedades tecnológicas, que são sociedades de risco, que haja maior reflexividade também por parte da burocracia. Ulrich Beck, amparado nas análises de Giddens, sobre a modernidade reflexiva,3 defende que o atual estágio da contemporaneidade exige alto grau de reflexividade, advinda do processo de crise e das consequências dela. Há o aumento do individualismo, característico das análises pós-modernas, mas também a derrota da crença de que a modernização seria sinônimo de progresso. Dados os possíveis efeitos e ameaças da própria sociedade industrial e da aceleração das tecnologias, Beck enfatiza que há a emergência da sociedade de risco e as instituições modernas já não são mais capazes de resolver os novos problemas. Assim, a burocracia deve ser adaptada aos novos desafios, o que não implica, a nosso ver, que se devam descartar aspectos positivos herdados das análises de Weber, no sentido de imprimir às práticas administrativas previsibilidade, calculabidade e desempenho.4 Por conseguinte, deve haver uma reflexividade da burocracia, arejando as instâncias organizacionais da Administração Pública com uma proposta que responda aos desafios da pós-modernidade. Conforme o atual estágio do progresso científico vivenciado pela sociedade contemporânea, as questões de interesse geral dificilmente se desvinculam da necessidade de intermediação por meio de um conhecimento técnico. Assim, é necessário o esclarecimento científico, para que não haja assimetria nas informações. Todavia, neste ponto, cabe a advertência de Ulrich Beck5 no sentido de que mesmo diante da intermediação técnica, ainda é uma questão afeita à cidadania, ou seja, que deve ser compartilhada com a sociedade: qual o grau de risco que a sociedade concorda em correr em nome do “progresso”. Sempre que tecnocratas, gestores e cientistas procurarem esconder do povo as razões de suas decisões, fingindo não haver escolha possível ante a tecni3 BECK, Ulrich, A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In. GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott, Modernização Reflexiva, Unesp, São Paulo, 1997, p. 21. 4 WEBER, Max, Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Universidade de Brasília, Brasília, 1999, p. 530. 5 BECK, Ulrich, Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade, Editora 34, São Paulo, 2010, p. 248.

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cidade da questão envolvida, haverá uma ação estatal autoritária e, portanto, não reflexiva. A necessidade de reflexão advém do fato de que a sociedade em rápida transformação também tem de tomar medidas eficazes e céleres para evitar o alastramento de mazelas, práticas e perigos das atividades econômicas. Com as transformações dos riscos, submergem debates que devem ser permanentemente fomentados, com foco nos princípios da precaução e da prevenção, que já não mais povoam exclusivamente as preocupações do Direito Ambiental, mas têm aplicação intensiva no âmbito do Direito Administrativo. Por exemplo, numa liberação de produto pela Anvisa ou numa medida para a segurança dos frequentadores de estabelecimentos de entretenimento. A burocracia reflexiva6 pressupõe romper o engessamento das rotinas padronizadas diante da demanda de celeridade da sociedade pós-moderna, empoderando os agentes públicos a tomarem decisões aptas a resolverem questões de maior urgência, desde haja adequada motivação, sendo este um ingrediente imprescindível ao consenso. Ela considera o cidadão como um sujeito que deve participar, ou seja, ter voz ativa, e não como simples “cliente”, que deve ter satisfeitas suas necessidades de “consumo” pelo Estado, como se este fosse apenas uma empresa prestadora de serviços ou uma organização que tem por objetivo tão-somente articular em torno de si os setores de regulação, para conduzir um consumo regrado. Não é o fato de a burocracia não ter conseguido efetivamente se voltar a uma ação funcional e que promova, com eficiência, o bem-estar coletivo que deve conduzir as pessoas à defesa da implosão do modelo burocrático e sua substituição por um modelo flexível, sem as amarras e controles do regime jurídico público, voltado à satisfação hedonista do cidadão-cliente, e despido da responsabilidade de refletir e/ou participar dos rumos da sociedade. A reflexividade da burocracia implica, portanto, aprofundar o contato com a sociedade civil por meio de uma noção bem compreendida de consensualidade. A consensualidade defendida significa que a Administração Pública deve ampliar os mecanismos de interlocução comunitária existentes para que haja uma ação mais legítima. Significações emancipatórias são as que estimulam o diálogo, que alguns autores chamam de burocracia dialógica,7 abrindo as instâncias organizacionais à maior e melhor participação pública, mediante a realização de audiências, consultas populares ou qualquer outro meio de influência da cidadania “desinteres6 A mencionada proposta é mais bem explicada no artigo: NOHARA, Irene Patrícia, Burocracia reflexiva. In. MARRARA, Thiago (Org.), Direito Administrativo: tendências e transformações, Almedina, São Paulo, 2014, pp. 349-372. 7 FREITAS, Juarez, O controle dos atos administrativos. 3. ed, Malheiros, São Paulo, 2004, p. 34.

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sada” (na verdade: interessada tão-somente na discussão acerca do bem-estar comum, como, por exemplo, a saúde pública ou a preservação do meio ambiente, e não apenas em interesses particulares mais imediatos) em assuntos de relevância pública.

2. Potencialidades da Ciberdemocracia Diante da necessidade de reflexão como condição para uma ação política eficaz no cenário das sociedades tecnológicas, imprescindível então considerar as contribuições de Pierre Lévy para a estruturação da noção de ciberdemocracia. Ciberdemocracia foi uma obra escrita no começo dos anos 2000, como desdobramento político de outra obra clássica, denominada Cibercultura.8 O autor considera a ciberdemocracia9 como dimensão política de suas reflexões sobre a Cibercultura. São temas enfrentados na reflexão sobre a ciberdemocracia por Lévy: a governança mundial, o Estado transparente, a cultura da diversidade e a ética da inteligência coletiva. Como historiador e estudioso da comunicação, Lévy observou os saltos de desenvolvimento que a sociedade mundial deu na Revolução das Comunicações: da oralidade até o surgimento da escrita, o que ocorreu na Mesopotâmia, há 5 mil anos, sendo que a escrita possibilitou o arquivamento de conhecimentos que antes se transmitiam de forma verbal.10 Posteriormente, outra mudança disruptiva foi a disseminação do papel impresso, com o surgimento da imprensa, o que se deu a partir do século XV (Guttemberg, 1440). A mídia impressa permitiu com que houvesse a intensificação da alfabetização de pessoas, com a disseminação massiva de informações. No entanto, somente no século XVIII houve sua adaptação aos jornais. Ainda, na segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX, houve o surgimento e a disseminação da fotografia, do cinema, do telefone e do rádio. Para ilustrar como o rádio revolucionou as comunicações de forma rápida, enfatiza Lévy que em 1921 eram quatro emissoras nos Estados Unidos, mas, no final de 1922, os norte-americanos contavam com 382 emissoras. Por fim, a internet provocou uma das mais recentes revoluções, sendo responsável pela mudança estrutural nas comunicações da humanidade. Acrescida às redes sociais, que permitiram a interconexão de pessoas, a partir dessas 8 LÉVY, Pierre, Cibercultura, Editora 34, São Paulo, 2010, p. 189. 9 LÉVY, Pierre, Ciberdemocracia, Instituto Piaget, Lisboa, 2002, Passim. 10 LÉVY, Pierre, Ciberdemocracia, Instituto Piaget, Lisboa, 2002, p. 33.

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transformações digitais: cada um passou a ser jornalista de si mesmo, isto é, o próprio relações públicas. No começo da internet, no ano de 1994, 1% do mundo se conectou; já em 2014, 35% do mundo estava conectado. Segundo o relatório situação da conectividade de 2015, realizado pelo Facebook: havia 3,2 bilhões de pessoas online, mas ainda 4,1 bilhões de pessoas não eram usuárias da internet em 2015 (logo, 43% do mundo).11 De 2002 a 2003, houve o início dos grandes blogs e, em 2005, ocorreu o desenvolvimento das grandes redes. Pierre Lévy chama as redes de “novas ágoras”. O modelo de democracia direta desenvolveu-se em Atenas, Grécia, em que os cidadãos participavam de assembleias na ekklesia para deliberar, pelo sorteio, assuntos relevantes em termos coletivos. Tal modelo acabou sendo substituído posteriormente pela democracia representativa, justamente pela impossibilidade física de se reunir todo o povo em um espaço de deliberação.12 Ocorre que há novas ágoras no encontro em rede, que permitem superar um empecilho que era físico, diante do fenômeno da desterritorialização próprio da ciberdemocracia. Desterritorialização não significa apenas a oportunidade de um encontro em um espaço que não é físico, mas sobretudo, na abordagem de Lévy, que não é adstrito a um Estado nacional. Segundo a visão otimista de Pierre Lévy, onde não há censura formal do governo, a internet é vista como fator que provoca a queda das ditaduras.13 A internet potencializa o debate do chamado egov, sendo tal realidade acrescida de amplo potencial quando há portais de transparência, que permitem ao cidadão visualizar e discutir as medidas do governo. 11 Situação da conectividade em 2015: sobre o acesso global à internet de 22 de fevereiro de 2016. Disponível em: <https://info.internet.org/pt/blog/2016/02/22/state-of-connectivity-2015-a-report-on-global-internet-access/>. Acesso em: 12 fev. 2017. 12 Cf. NOHARA, Irene Patrícia. Democracia e participação direta. In. MESSA, Ana Flávia; SIQUEIRA NETO, José Francisco; BARBOSA, Susana. Mesquita (Coord.), Transparência eleitoral, Saraiva, São Paulo, 2015, p. 192. 13 Um dos fenômenos sociais que se utilizaram da rede para promover a queda de ditaduras foi a Primavera Árabe, caracterizada por protestos sociais ocorridos no norte da África e no Oriente Médio de questionamento de governos autoritários. Ocorre que, ainda que inicialmente ela tenha promovido um potencial positivo de conexão, para questionamentos, os desdobramentos da Primavera Árabe revelam contraditoriedades e complexidades que geraram a emergência de conflitos étnicos de proporções bélicas que anuviaram o sonho de democracia, em meio à fumaça da guerra civil, espalhando-se na região a barbárie e a intolerância. Hoje os mesmos países que apoiaram a Primavera Árabe são aqueles que se preocupam com o número de refugiados que chegam às suas fronteiras, provenientes da debandada da região conflituosa, sendo que, em muitos casos, houve a troca de ditadores, sem que houvesse sido alcançado o sonho de equilíbrio nas relações sociais. Cf. NOHARA, Irene Patrícia, Fundamentos de direito público, Atlas, São Paulo, 2016, p. 233.

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Outro ponto que é levantado por Lévy como potencial efeito das novas mídias é a libertação da palavra. Antes da internet e das redes sociais, a opinião pública era mais facilmente controlada por meio das mídias fechadas. Assim, para falar algo oficial e que tivesse grande permeabilidade era necessário que um editor intermediasse tal fala, delimitando pautas e conduzindo, portanto, os discursos. Atualmente, qualquer um pode ser um canal de divulgação de informações. Lévy é novamente otimista, pois entende que a libertação da palavra, com o oferecimento gratuito e espontâneo de informações, possibilitará a construção de uma suposta inteligência coletiva, dada a cooperação competitiva das comunidades virtuais. Tal movimento provocaria o emergir de um diálogo livre de indiferença, irritação e desprezo, em que as pessoas seriam cada vez mais apreciadoras da diversidade, segundo a visão do autor.

3. Desafios à informação e à produção de consensos nos meios digitais Não obstante se concordar com Lévy que a revolução proporcionada pelas comunicações, com o advento da internet e das redes, que conectaram grande parte das pessoas do mundo, seja algo potencialmente muito positivo, inclusive para o amadurecimento da democracia, não se compartilha, todavia, do mesmo otimismo quanto aos rumos que essas transformações irão conduzir a humanidade. Ora, primeiro, percebe-se, na atualidade, que as redes sociais nem sempre unem e permitem o diálogo entre pessoas. Muito pelo contrário, elas acabam estabelecendo a conexão “entre bolhas” de pessoas que pensam da mesma forma e se encontram em rede com o intuito de confirmarem aquilo que já acreditam, não obstante haver informações na internet em sentido contrário. É exageradamente otimista supor que haverá nas redes um diálogo livre de indiferença, irritação e desprezo, ainda mais diante do aumento dos chamados haters (pessoas que destilam em rede todo ódio que acumulam em relação a certas pautas de assuntos socialmente includentes) e das pessoas que se utilizam da rede para disseminar discurso de ódio, segregação e opressão de grupos minoritários. É, portanto, um desafio permanente pensar na qualidade do diálogo que se estabelece em rede e na internet. Aliás, muitas vezes não há uma propensão às pessoas que se comunicam em rede de procurarem discutir de forma equilibrada, isto é, ponderada, nem mesmo os assuntos que não dominam, que supostamente seriam aqueles que deveriam estar mais abertos ao diálogo.

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A propensão a achar que é verdade aquilo que se crê é associada com o fenômeno da pós-verdade. Trata-se de palavra que despontou a partir do momento em que, em 2016, o Dicionário Oxford a elegeu como o termo de destaque do ano. Na pós-verdade as pessoas creem obstinadamente em suas visões de mundo e apenas procuram aceitar aquelas informações que confirmam suas crenças, que não são postas em questionamento. Assim, perde a força de persuasão o contraste de argumentos e as pessoas sucumbem aos boatos, sem propensão a analisar os fatos. Até mesmo a verdade empírica dos fatos é posta em questionamento, caso seja uma verdade incômoda aos pontos de partida adotados pelos que se alinham com as práticas da pós-verdade. Ademais, as pessoas parecem não se interessar mais por esclarecimentos. Muitas delas estão obstinadamente convencidas do que determinaram para si ou para seu grupo fechado. Elas partem, portanto, de um ponto de partida inflexível, sendo a verdade dos fatos algo secundário em relação à afirmação narcisista de sua visão de mundo em rede. É muito comum que o comportamento das pessoas em rede seja muito mais para afirmar suas verdades, num gesto narcisista de autoafirmação,14 sendo, por conseguinte, difícil que as pessoas arredem o pé dos seus pressupostos, ainda que fundados em crenças absolutamente subjetivas, quando contrastados por contradiscursos ou com fatos. É cada vez menos comum, ainda, que as pessoas tenham humildade ou disposição para investigar a fundo a questão da verossimilhança, pois, uma vez que se afirma, não se deseja mais descobrir que as conclusões foram precipitadas, ainda mais se isso envolver um contradiscurso em sua timeline, o que provoca um sentimento automático de desprestígio, em vez de ser simplesmente uma discussão com contrários e sínteses consensuais. Logo, essa postura de uma humanidade embrutecida, cheia de razão e fechada em pré-compreensões do mundo, pouco empenhada em analisar com maior detença as informações existentes, sendo focada muito mais em argumentos que ratificam os pontos de vista iniciais, é avessa à postura dialógica. Trata-se muito mais de um monólogo ou de uma simples autoafirmação.

14 Como aqueles que usam da rede para postar sua rotina diária, como se fossem celebridades, ou mesmo como se o prato que comeu ou o treino que fez fossem assuntos relevantes a serem compartilhados em rede. Da mesma forma como narcisisticamente exibem sua rotina, ainda são estimulados pelo facebook a escancararem o que estão sentindo ou quais suas opiniões sobre um sem número de assuntos dos quais não são especialistas, daí o ressentimento de Umberto Eco sobre o sentimento de grandeza que emerge, mesmo sem dados objetivos que o justificam, a ponto de se sentirem mais do que um especialista ou mesmo que um nobel, dado número de likes que conseguem alcançar através de opiniões muitas vezes infundadas, mas que encontram na rede uma legião de adeptos igualmente mal instruídos.

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Assim, é muito comum que haja as “fogueiras virulentas” em ambientes virtuais em que a conexão digital e a falta de uma intermediação do discurso são capazes de promover ações lesivas de grupos, a partir da disseminação irrefletida de informações falsas viralizadas na web, sendo, ainda, o ambiente das redes virtuais pouco comprometido com a busca da verdade, ainda mais quando isso implicar em questionamentos. Pode-se, sem dúvida, contestar a emergência da pós-verdade enquanto fenômeno novo, tendo em vista que as categorias mentira e verdade são tão antigas quanto o é a humanidade, que nelas se apoia para expor as suas versões distorcidas e/ou interessadas dos fatos. Entretanto, o que efetivamente pode ser reputado como novo é o efeito da disseminação das mentiras, que, na atualidade, alcançam um número infinito de pessoas conectadas em rede numa velocidade quase que instantânea e, ainda, sem limites territoriais. Assim, entende-se muito otimista a crença de Lévy no sentido de supor que a conexão irá efetivamente colaborar para a construção de uma suposta inteligência coletiva, sendo muito provável que os efeitos sejam ambivalentes, isto é, que também possa ocorrer exatamente o oposto: isto é, que a alta conexão e a “libertação da palavra” sejam justamente um caldo fértil para o emergir de uma espécie de burrice coletiva, conectando rapidamente em bolhas maiores pessoas que pensam da mesma forma preconceituosa e irrefletida, sendo inclusive esse um meio propício para a ascensão de antigas intolerâncias sociais expressadas livremente. Segundo conhecidas preocupações de Umberto Eco, filósofo, escritor de literatura e estudioso da semiótica e da linguagem, as redes sociais empoderaram uma legião de imbecis, elevando o idiota da aldeia a portador da verdade. Por idiota da aldeia Eco se refere àquele que esbravejava sua raiva após tomar um vinho no boteco da esquina, mas que hoje vocifera em rede suas opiniões, encontrando em ambiente virtual inúmeros adeptos. Nas suas palavras15: “as redes sociais dão o direito à fala para uma legião de imbecis que antes falavam sós no bar depois de um copo de vinho, sem causar danos à sociedade. Então, eram rapidamente silenciados. Mas agora eles têm o mesmo direito de falar do que um prêmio nobel. É a invasão dos imbecis”.16 Há também a possibilidade do uso da rede e da internet para a manipulação social, assunto que se discute inclusive em campanhas de políticos influentes. Com a psicometria eleitoral, que se utiliza de tecnologias analytics, é possível 15 COSTA PINTO, Manuel da, Umberto Eco ataca comunicação virtual em livro póstumo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/07/1899351-umberto-eco-faz-critica-feroz-da-comunicacao-virtual-em-livro.shtml>. Acesso em: 5 jan. 2018. 16 10 frases para recordar a mordaz lucidez de Umberto Eco. Disponível em: <http://www.bbc.com/ mundo/noticias/2016/02/160219_cultura_umberto_eco_frases_ap>. Acesso em 5 jan. 2018.

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entender a cabeça do eleitor e enviar mensagens customizadas em função de sua forma de pensar. Assim, políticos que desejam lograr-se vencedores em eleições em vez de defenderem de forma coerente suas plataformas políticas, acabam se rendendo a reproduzir à la carte os anseios de seus futuros eleitores, preparando, com auxílio dos meios digitais, campanhas com inúmeros coloridos, nem sempre efetivamente compatíveis com aquilo que ele irá fazer no futuro governo, mas que são direcionados para os variados públicos-alvo. Deixa-se de lado a ética, algo que, desde as análises de Maquiavel,17 não anda exatamente de mãos dadas com a ação política eficaz, para que as tecnologias promovam em vez do debate, da produção da verdade, no fundo, o controle e o enviesamento das campanhas, o que lamentavelmente não visa melhorar a democracia. Ainda, muitos dos portais que no início do surgimento da internet ofereciam informação de qualidade gratuitamente, nos dias atuais cobram para que as pessoas tenham acesso ao seu conteúdo mais relevante. Também é possível pagar tanto ao google como ao facebook para que as informações sejam acessíveis a um número maior de pessoas. Ora, se estamos na Era da Informação, também a informação acaba sendo um produto valorizado pelo mercado, pois ela repercute em decisões mais estratégicas. Muitas pessoas só divulgam informações gratuitamente como uma forma de chamariz para vender produtos e mais informações na web, sendo, portanto, identificável também um movimento de retração do fornecimento de informação gratuita e de qualidade, que são fechadas em portais de acesso restrito mediante assinatura periódica. Por fim, um dos grandes desafios de manter as condições para que haja reflexões mais equitativas a partir do acesso à informação seria a manutenção da neutralidade de rede. Os canais disponíveis na rede não devem ser reservados para os que pagam mais, para que todo o tráfego se dê de forma igual, dado que a noção de democracia também pressupõe igualdade. No Brasil esse foi um ponto incorporado ao Marco Civil da Internet, sendo que o projeto que se transformou na lei foi alvo de ampla consulta e participação popular nos meios digitais. Contudo, como houve, em dezembro de 2017, retrocessos nos Estados Unidos quanto à neutralidade de rede, é muito provável que, apesar do avanço, o setor interessado passe a fazer pressão também nos parlamentares brasileiros para que haja o fim da neutralidade recém-conquistada.

17 Maquiavel foi um dos primeiros autores clássicos a divulgar o fato de que o horizonte da eficácia da ação política não deve ser desprezado. Logo, fazer profissão de bondade na política pode ser fatal ao projeto político do governante, que deve agir “segundo a necessidade”. MAQUIAVEL, O príncipe, Edipro, Bauru, 2007, p. 77.

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Assim, apesar de a informação colaborar e, no geral, estar mais acessível que outrora à população, ainda há problemas que são próprios da democracia nos dias atuais, como, por exemplo, a apatia política e a falta de vontade de se buscar, no geral, informações mais profundas sobre as questões de interesse público. Esse é um sintoma característico da pós-modernidade. Diante do descrédito que caíram os grandes esquemas explicativos, expõe François Lyotard,18 que o pós-moderno se guia exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso filosófico e de suas noções atemporais e universalizantes. Surgem, no momento presente, novos valores, menos categorizados e, portanto, mais fragmentados pela recusa à referência única. A solidez dessas concepções foi desfeita, ao ponto de Zygmunt Bauman denominar esse momento de “modernidade líquida”. A questão social, equacionada pela razão humana, foi fragmentada e transferida à administração dos indivíduos e de seus recursos. Expõe Bauman que “se a modernidade original era pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado de seus deveres emancipatórios (...). Não existe mais essa coisa de sociedade – declarou Margaret Thatcher”.19 Os problemas devem ser enfrentados individualmente. Contudo, a libertação do indivíduo desse racionalismo alienante, próprio da modernidade, torna as pessoas, por outro lado, bastante indiferentes ao destino da humanidade e essa indiferença anuncia problemas para a cidadania. Assim, além da diminuição do apetite geral por reformas ou pela vontade de se buscar pela discussão uma concepção de interesse comum, dada a mentalidade do “eu primeiro”, as causas da mudança são identificadas por Bauman com uma “profunda transformação do espaço público”. Conforme se verifica das novas tecnologias analytics, que denunciam, pelo número de cliques, qual o maior número de acesso de conteúdo,20 percebe-se que os usuários da internet se interessam por entretenimento, a vida privada de celebridades, competições esportivas, lamentavelmente muito mais do que por discussões de assuntos complexos que irão repercutir no futuro da vida em sociedade. 18   LYOTARD, Jean-François, O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa. 3. Ed, José Olympio, Rio de Janeiro, 1988, p. VIII. 19   BAUMAN, Zygmunt, Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien, Zahar, Rio de Janeiro, 2001, p. 38. O mesmo excerto é exposto na obra de Bauman denominada The individualized society. Polity, Oxford, 2001, p. 105. Acrescenta o sociólogo polonês que o ser humano é agora compelido a buscar soluções biográficas para problemas sistêmicos. 20 Em 2016, foram assuntos mais buscados no google no Brasil: o Pokémon Go, os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, o reality show do Big Brother e a tragédia da queda do voo com o time da Chapecoense. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2016/12/14/ google-divulga-ranking-de-assuntos-mais-buscados-em-2016.htm>. Acesso em 9 jan. 2017.

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Como os portais de informação são também movidos por publicidade, sendo a escolha de investimento em dado local muito mais pautada no fluxo de pessoas-alvo que entram e navegam, do que propriamente da qualidade objetiva da informação que é veiculada, então, acaba que o conteúdo dos portais é ditado, na atualidade, pelo interesse dos usuários, que determinam o proliferar de inúmeras superficialidades que pouco contribuem para a reflexividade da sociedade, mas que, no marco da sociedade capitalista, acabam por garantir a sobrevivência da atividade econômica na web. A solução para esse “estado de coisas” da ciberdemocracia, que se desenvolve em um cenário pós-moderno, é muito parecida com a resposta para o problema da democracia e da falta de apetite da população pelas discussões das questões coletivas: ampliar e melhorar qualitativamente a educação, para que seja realizada sua dimensão de preparo para uma cidadania consciente. Se a rede pode ser usada para emancipar as pessoas, ela também pode, por outro lado, ter o uso voltado para disseminar notícias enviesadas. O que irá fazer com que as pessoas tenham a aptidão para filtrar a qualidade do material veiculado não é, evidentemente, uma ação no sentido de censurar conteúdo, sendo essa alternativa vetada em ambientes democráticos, mas será justamente o acesso ao maior número de pessoas a uma formação crítica e reflexiva, o que lamentavelmente não parece ser o rumo que atualmente tomam grande parte dos países que sofrem pressões financeiras, as quais redundam no sucateamento do ensino público, por exemplo.

Conclusões São maiores as possibilidades de implementação da democracia com os meios digitais. Há, conforme visto, legislações que ampliam as exigências de transparência do governo, que preveem a necessidade de conselhos para o exercício da cidadania e de medidas que se preocupam com a viabilização da dimensão sociopolítica da governança pública, o que se dá com ampliação, no geral, dos canais de interlocução do governo com a sociedade. A burocracia deve se abrir ao diálogo reflexivo das novas questões, que, com a avanço das sociedades tecnológicas, vão ganhando maior complexidade. Por enquanto, é possível verificar uma plêiade crescente de informações na internet, ao passo que a sociedade mundial se vê cada vez mais conectada. É provável, ainda, que haja o florescimento das tecnologias colaborativas e que o oferecimento de informação gratuita e espontânea seja um ingrediente capaz de promover a reflexão sobre inúmeros problemas sociais. Contudo, é uma questão crucial à democracia enfrentar os desafios de melhoria do apetite geral (ou da falta dele) para reflexão dos problemas coletivos. Assim, no contexto pós-moderno, em que predominam o narcisismo, o indivi90


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dualismo e as meta-narrativas não mais encontram tantos adeptos, fica mais distante a utopia da construção de uma inteligência coletiva. Isso se intensifica ainda mais quando se observa que o comportamento das pessoas em rede colabora para requentar, a partir de informações enviesadas, o que elas acreditam sobre as questões de interesse público, postura que é frequentemente identificada nos usuários dos meios digitais. Assim, em vez da utopia de Lévy, da inteligência coletiva, que seria desejável, pode ser que infelizmente se consolide nas sociedades tecnológicas a distopia relatada por Umberto Eco, isto é, que a internet tenha empoderado uma legião de imbecis, que levam muito mais em consideração a opinião do “idiota da aldeia” do que aquela de um prêmio nobel, ainda mais porque compreendem melhor aquele que se apresenta como porta-voz de seus argumentos irrefletidos. Diante disso, a internet, a rede e os blogs também podem colaborar para disseminar mentiras, versões enviesadas dos fatos ou mesmo em construir uma situação de burrice coletiva. Em suma, a revolução das comunicações e da tecnologia de informação apenas começou nesse início de século XXI. Ainda haverá robôs cada vez mais habilidosos para organizar a big data em prol de certos objetivos racionais. A aplicação dessa tecnologia analytics em conjunto, por exemplo, com a psicometria eleitoral pode contribuir muito mais para a manipulação do eleitorado do que para o seu esclarecimento. Como se pode observar, a conclusão do presente escrito sobre a ciberdemocracia não é tão otimista quanto as conclusões de Pierre Lévy. Diferentemente da abordagem de Lévy, defende-se que deve haver uma desconfiança e um olhar de suspeição que também leve em conta o potencial mau uso da tecnologia, não obstante haver também um potencial positivo. Cumpre, portanto, à sociedade tecnológica, por meio do Estado, procurar calibrar os impactos do uso das novas tecnologias, para usufruir do que elas propiciam de bom, evitando, contudo, seus efeitos prejudiciais. É inegável que a Revolução Tecnológica efetivamente propicia novas ferramentas e meios que contribuem com o exercício da democracia, sendo eles transformadores da forma de relacionamento social. Certamente esse é um dos maiores desafios a serem enfrentados ao longo do século XXI.

Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt, The individualized society, Polity, Oxford, 2001. ________, Modernidade Líquida, Zahar, Rio de Janeiro, 2001. BECK, Ulrich, Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade, Editora 34, São Paulo, 2010.

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A JUSTIÇA ELETRÓNICA EUROPEIA E A MODERNIZAÇÃO DO ESPAÇO DE LIBERDADE, SEGURANÇA E JUSTIÇA: A VIDEOCONFERÊNCIA NO REGULAMENTO N.º 1206/2001 AO SERVIÇO DE UMA INTEGRAÇÃO JUDICIÁRIA

Joana Covelo de Abreu1

Resumo: Tendo em conta o desenvolvimento do Mercado Único Digital, a UE tem apostado na implementação do paradigma da Justiça eletrónica, perspetivando o Portal Europeu de Justiça como um balcão único onde os cidadãos, as empresas e os operadores judiciários podem encontrar todas as informações relativas às soluções processuais europeias. Tendo em conta o método e o princípio da interoperabilidade, é necessário estabelecer aproximações técnicas e digitais para facilitar e aumentar as interações entre as autoridades judiciárias nacionais através da videoconferência, especialmente no âmbito da obtenção de provas à luz do Regulamento 1206/2001. Uma vez que as soluções em matéria de vi1 Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho. Especialista designada, pela Comissão Europeia (Direção-Geral de Justiça e Consumidores), para a Modernização da Cooperação Judiciária em Matéria Civil e Comercial.

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deoconferência se têm mostrado insuficientes, é importante adotar novos meios interoperáveis que promovam uma maior integração judiciária em matéria civil. Palavras-chave: Regulamento n.º 1206/2001; Justiça eletrónica europeia; integração judiciária; interoperabilidade; videoconferência Abstract: Taking into consideration Digital Single Market development, the EU is betting on implementing an e-Justice paradigm looking at the e-Justice portal as a one-stop shop where citizens, companies and judicial operators can find all necessary data concerning European procedural solutions. Taking into consideration interoperability method and principle, it is necessary to establish technical and digital approaches to facilitate and increase interactions between national judicial authorities through videoconference, especially on taking of evidence under Regulation 1206/2001. Since videoconferencing solutions has proven so far insufficient, it is important to establish new interoperable means which will allow greater judicial integration in civil matters. Keywords: Regulation No. 1206/2001; European e-Justice; judicial integration; interoperability; videoconference Sumário: 1. O Regulamento n.º 1206/2001 relativo à obtenção de provas em matéria civil e comercial no âmbito do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça 2. O estabelecimento do Mercado Único Digital e o paradigma da Justiça eletrónica europeia 3. A justiça eletrónica europeia – a interoperabilidade judiciária e a videoconferência 4.Reflexões conclusivas sobre a modernização da cooperação judiciária em matéria civil – a interoperabilidade judiciária como método e princípio para a afirmação de uma integração judiciária

1. O Regulamento n.º 1206/2001 relativo à obtenção de provas em matéria civil e comercial no âmbito do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça A ideia de um Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça2 foi introduzida pelo Tratado de Amesterdão. Atualmente, dando cumprimento a uma das mis2 Para maiores desenvolvimentos, cfr. PIÇARRA, Nuno, Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, in BRANDÃO, Ana Paula; PEREIRA COUTINHO, Francisco; CAMISÃO, Isabel e COVELO DE ABREU, Joana (Coords.), Enciclopédia da União Europeia, Petrony, 2017, pp. 169-174.

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sões da União Europeia, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 2 do Tratado da União Europeia (TUE), estatui-se que “a União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos de fronteira externa, de asilo e imigração, bem como de prevenção de criminalidade e combate a este fenómeno”. Tal missão encontra densificação nos artigos 67.º e seguintes do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), operando como uma das matérias inerentes às competências partilhadas entre a União e os Estados-Membros, de acordo com o artigo 4.º, n.º 2, j) do TFUE – norma esta de caráter aberto e, portanto, meramente enunciativa – que determina que “[a]s competências partilhadas entre a União e os Estados-Membros aplicam-se aos principais domínios a seguir enunciados: j) Espaço de liberdade, segurança e justiça”. Para o efeito, no âmbito deste Espaço, o artigo 67.º, n.º 4 do TFUE proclama que a União facilita o acesso à justiça, nomeadamente através do princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais e extrajudiciais em matéria civil, retomando-se a sua densificação nos termos do disposto no artigo 81.º do TFUE – “[p]or isto se diz que a promoção de um estreitamento da cooperação judiciária se encontra alicerçado na proclamação dos princípios-chave do reconhecimento mútuo e da confiança recíproca na administração da justiça entre Estados-Membros”3. Na realidade, o princípio do reconhecimento mútuo permite promover uma aproximação das legislações nacionais dos diversos Estados-Membros – sobretudo quando estes não congregam ainda as condições de o fazerem a seu próprio mote – e, baseado na confiança recíproca, promove o entendimento que os agentes judiciários têm de atingir, confiando sobretudo nas soluções jurídicas adotadas pelos seus congéneres de outros Estados. Afinal, “não se consegue compaginar o reconhecimento mútuo sem confiança, para além de todos os atos normativos de direito derivado mencionarem a confiança recíproca (pelo menos, a confiança mútua) nos seus considerandos”4. Neste artigo 81.º do TFUE, incluído no capítulo relativo à cooperação judiciária em matéria civil, verificamos que a União aposta no desenvolvimento de uma cooperação judiciária “nas matérias civis com incidência transfronteiriça, assente no princípio do reconhecimento mútuo” sendo que o artigo 81.º, n.º 2 do TFUE esclarece que o procedimento legislativo ordinário servirá para adotar medidas tendentes ao bom funcionamento do Mercado Interno, nomeadamente 3 Cfr. COVELO DE ABREU, Joana, Cooperação judiciária em matéria civil e comercial, in BRANDÃO, Ana Paula; PEREIRA COUTINHO, Francisco; CAMISÃO, Isabel e COVELO DE ABREU, Joana (Coords.), Enciclopédia da União Europeia, Petrony, 2017, p. 115. 4 Cfr. COVELO DE ABREU, Joana, Cooperação judiciária em matéria civil e comercial…, p. 115.

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em sede de cooperação em matéria de obtenção de prova (vide, a propósito, artigo 81.º, n.º 2, d) do TFUE). Neste contexto, surge o ainda não revisto Regulamento n.º 1206/20015 que foi adotado “com o objetivo de oferecer um sistema eficiente de obtenção de provas pelos tribunais dos Estados-Membros em litígios transfronteiriços no âmbito do espaço de liberdade, segurança e justiça na União Europeia”6. Tal visava promover as liberdades fundamentais (considerando 1) e o melhor funcionamento do Mercado Interno, esbatendo as fronteiras entre os Estados-Membros. Este Regulamento é, assim, adotado com o objetivo fundamental de estabelecer a simplificação e a celeridade processuais. Na realidade, tal teleologia pode ler-se nos termos do considerando 8, quando nos diz que “[p]ara que os processos judiciais em matéria civil ou comercial sejam eficazes, é necessário que os pedidos de obtenção de provas sejam transmitidos e executados diretamente e pelas vias mais rápidas entre os tribunais dos Estados-Membros”, o que só será conseguido se observadas demandas de tutela jurisdicional efetiva, nomeadamente “determinadas condições em matéria de legibilidade e de fiabilidade do documento transmitido” (considerando 9). Não querendo esgotar a análise do Regulamento em questão, cabe apenas demonstrar que o mesmo é materialmente aplicável, nos termos do seu artigo 1.º, a questões relativas a matérias civil e comercial (expressão que, na senda da jurisprudência consolidada decorrente do acórdão Sonntag7, terá de ser interpretada de forma independente, tendo por referência, em primeiro lugar, os objetivos do Regulamento e, em segundo lugar, os princípios gerais de direito que decorrem dos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados-Membros, demandando uma interpretação feita à luz do direito da União, apenas tendo em conta os ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros como base interpretativa indireta8). Por sua vez, aplica-se a situações com natureza judicial, em que se vise a obtenção de provas e em que exista uma ação pendente ou cuja pendência seja previsível9. 5 Cfr. Regulamento (CE) n.º 1206/2001 do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados-Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil e comercial. 6 Cfr. VILLAMARÍN LÓPEZ, Maria Luisa, Obtaining of evidence in other member states of the European Union: Regulation 1206/2001, in ALDERÓN CUADRADO, María Pía; GASCÓN INCHAUSTI, Fernando; SENÉS MOTILLA, Carmen e VEGAS TORRES, Jaime (Coords.), European Civil Procedure, European Commission, Arazandi, Sweet & Maxwell, 2011, p. 307 (tradução livre). 7 Cfr. Acórdão TJCE Sonntag, de 21 de abril de 1993, processo n.º C-53/1993. Para uma leitura atualizada, cfr. Acórdão TJCE Batten, de 14 de novembro de 2001, processo n.º C-271/2000. 8 Cfr. VILLAMARÍN LÓPEZ, Maria Luisa, Obtaining of evidence..., p. 309. 9 Cfr. COVELO DE ABREU, Joana, Tribunais nacionais e tutela jurisdicional efetiva: da cooperação à integração judiciária no Contencioso da União Europeia, em edição, pp. 170-185.

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A obtenção de provas pode ter por base um diálogo jurisdicional direto a operacionalizar-se entre o Tribunal requerente (aquele onde o processo tramita ou será previsível que aí tramite) e o Tribunal requerido (aquele a quem o pedido é dirigido, localizado no território de outro Estado-Membro) – artigo 2.º, n.º 1 do Regulamento. Poderá ainda operacionalizar-se diretamente pelo Tribunal de origem, ou seja, nos termos do artigo 17.º do Regulamento, sendo o próprio tribunal onde tramita a ação que procederá à obtenção de provas, promovendo uma maior imediação, mediante análise prévia, no prazo de 30 dias contado da data da receção do pedido, pela autoridade central competente. Tal pedido de obtenção direta poderá ser recusado nos termos do artigo 17.º, n.º 5 do Regulamento, ou seja, a) se o pedido não cair no âmbito de aplicação do Regulamento; b) se o pedido não observar a forma e o conteúdo exigido nos termos do artigo 4.º do Regulamento; e c) se a obtenção direta de prova for contrária aos princípios gerais e fundamentais da legislação do Estado-Membro requerido. A estas causas deve aduzir-se ainda a recusa em função da língua, nos termos e para os efeitos do artigo 5.º do Regulamento. Neste contexto, e com particular interesse para a matéria em discussão, verificamos que este Regulamento já tentava promover o recurso às Tecnologias de Informação e de Comunicação (TIC), nomeadamente através de um incentivo ao uso da teleconferência e da videoconferência. Na realidade, quer no procedimento de obtenção de prova através da transmissão de pedido (artigos 4.º e seguintes), quer na obtenção direta de prova (artigo 17.º), há um claro pendor nesse sentido: - nos termos do artigo 10.º, n.º 4 do Regulamento, podemos ler que “[n]o âmbito da obtenção de provas, o tribunal requerente poderá solicitar ao tribunal requerido que recorra às tecnologias da comunicação, em particular à videoconferência e à teleconferência”; - por sua vez, nos termos do artigo 17.º, n.º 4, 3.º parágrafo do Regulamento – relativo à obtenção direta de prova – esclarece-se que o pedido de obtenção é dirigido à autoridade central do Estado-Membro onde se pretende fazer a recolha. Nesta circunstância, é indicado que “[a] entidade central ou a autoridade competente incentivará o uso das tecnologias da comunicação, como a videoconferência e a teleconferência”. Como ensina Jorg Sladič, “as […] videoconferências são a cedência do direito às novas tecnologias.”10. E estas tecnologias garantem, precisamente, um maior nível de imediação11 – na realidade, a videoconferência é uma “teleconferência que permite, além da transmissão da palavra e de documentos gráficos, a 10 Cfr. SLADIČ, Jorg, L’obtention de preuves en matière civile et commerciale: vers la construction d’un droit uniforme, in Journal de droit européen, n.º 207, 3/2014, p. 93 (tradução livre). 11 Cfr. Acórdão TJUE Lippens, de 6 de setembro de 2012, processo n.º C-170/11, considerando 32.

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de imagens animadas dos participantes”12 – promovendo um sentido de maior proximidade e uma sensação de que os agentes em videoconferência estão, na realidade, situados no mesmo local13. Neste contexto, é unânime na doutrina que a videoconferência é o meio mais adequado a promover a imediação que um processo civil demanda acarretando custos menos significativos, sobretudo quando a obtenção de prova tenha de se realizar no estrangeiro. Estas foram as primeiras pedras a serem lançadas no caminho da modernização digital no contexto da justiça europeia. Cabe assim analisar brevemente o seu percurso antevendo o impacto que o paradigma da Justiça eletrónica europeia teve no relançamento da discussão em torno da adoção de meios mais céleres, baratos e eficazes de obtenção transfronteiriça de provas.

2. O estabelecimento do Mercado Único Digital e o paradigma da Justiça eletrónica europeia O Mercado Único Digital é uma das prioridades atualmente densificadas no contexto europeu e que surge como um interesse público primário prosseguido pelos agentes políticos da União14. Na realidade, as plataformas digitais mudaram a economia nas últimas duas décadas, trazendo benefícios inegáveis à sociedade atual15 na medida em que se verifica um efetivo crescimento económico16 associado às TIC. Ora, a fim de relançar a economia europeia, a Comissão levou a efeito um conjunto alargado de estudos e verificou que a União Europeia desempenhava um papel marginal no mercado das TIC apesar de ainda congre-

12

Cfr. Dicionário online Priberam, https://www.priberam.pt/dlpo/videoconfer%C3%AAncia (acesso: 9.2.2018).

13 Para maiores desenvolvimentos, cfr. CARRILLO POZO, Luis Francisco e ELVIRA BENAYAS, Maria Jesús, Instrumentos procesales de la EU – Los reglamentos sobre notificaciones y obtención de pruebas, Granada, Editorial Comares, 2012. 14 Para maiores desenvolvimentos, cfr. COVELO DE ABREU, Joana, Digital Single Market under EU political and constitutional calling: European electronic agenda’s impact on interoperability solutions, in UNIO – EU Law Journal, Vol. 3, No. 1, January 2017, pp. 123-140, http://www.unio. cedu.direito.uminho.pt/Uploads/UNIO%203/UNIO%203%20EN/Joana%20Covelo%20de%20 Abreu%20(1).pdf (acesso: 9.2.2018). 15 Cfr. Comissão Europeia, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, As plataformas em linha e o mercado único digital: oportunidades e desafios para a Europa, Bruxelas, 25 de maio de 2016, COM(2016) 288 final, p. 2. 16 Cfr. Comissão Europeia, Documento de Trabalho da Comissão (Commission staff working document), A digital single market strategy for Europe – analysis and evidence, Bruxelas, 25 de maio de 2016, COM(2015) 192 final, p. 4.

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gar o know-how no seu território e de comparticipar em cerca de 30% das receitas globais das principais plataformas de distribuição de aplicações17. Neste pressuposto, a União Europeia chamou a si a aposta nas componentes eletrónicas e digitais e fê-lo através do adensamento do Mercado Interno (daí a coincidência semântica com Mercado Único Digital), com base nas competências partilhadas entre si e os Estados-Membros (artigos 2.º, n.º 2 e 4.º, n.º 2, a) do TFUE). Determina o artigo 2.º, n.º 2 do TFUE que “[q]uando os Tratados atribuam à União competência partilhada com os Estados-Membros em determinado domínio […]”, “[…] os Estados-Membros exercem a sua competência na medida em que a União não tenha exercido a sua […]” e quando “[…] a União tenha decidido deixar de exercer a sua”. Ora, o Mercado Único Digital, e como já tivemos oportunidade de enunciar, projetou-se “mais tardiamente porque a União Europeia confiou, por algum tempo, nas diligências encetadas pelos Estados-Membros para estabelecerem um espaço verdadeiramente concorrencial no âmbito da era digital embora se tenha tornado claro que a União Europeia deveria ter uma palavra a dizer na matéria para superar dissidências que estavam a começar a aparecer entre as legislações dos diversos Estados-Membros e a atuação das suas entidades”18. No âmbito da Agenda Digital para a Europa, a Comissão Europeia começou por equacionar a necessidade de adotar novos procedimentos e processos tendentes a flexibilizar e simplificar os serviços públicos19 – onde também se incluem os serviços judiciais – devendo apostar-se em elementos caracterizadores de uma justiça eletrónica. E reforçou tal convicção pelo facto de os cidadãos parecerem não estar cientes da importância de componentes digitais ao serviço da justiça20. Neste contexto, o paradigma da Justiça eletrónica surge designado como uma prioridade a promover, tendo a Comissão recentemente afirmado a sua importância ao lado e no âmbito da implementação de uma Administração Pública em linha (e-Government), ventilando o Portal Europeu de Justiça como um balcão único efetivamente vocacionado a aproximar as soluções processuais

17 Cfr. Comissão Europeia, Comunicação ao Parlamento Europeu…, p. 3. 18 Cfr. COVELO DE ABREU, Joana, Digital Single Market under EU political…, p. 125 (tradução livre). 19 Cfr. Comissão Europeia, Documento de Trabalho da Comissão (Commission Staff Working Document), Digital Agenda for Europe – a good start and stakeholder feedback, Bruxelas, 19 de dezembro de 2012 SWD(2012) 446 final, pp. 11 e seguintes. 20 Cfr. Comissão Europeia, Commission Staff Working Document “Digital Agenda for Europe..., p. 12.

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europeias dos seus efetivos beneficiários e destinatários21. Afinal, o Conselho reputou a “evolução futura da justiça eletrónica” como “uma das pedras angulares do eficaz funcionamento da justiça tanto nos Estados-Membros como a nível europeu”22 já que alicerça tal finalidade na necessidade de conferir ao utilizador – na perspetiva das TIC – uma maior maleabilidade e capacidade de interação. Assim, diz-nos o Plano relativo a uma Administração Pública em linha que “os utilizadores dos sistemas de justiça dos Estados-Membros são um exemplo de concessão de maior poder ao utilizador através de novas tecnologias de informação”23. E entendeu-se que as maiores lacunas correntes dizem respeito à adoção de mecanismos digitais de comunicação e interação eletrónica entre os tribunais e destes com as partes e, ainda, a falta de um sistema de gestão eletrónica dos tribunais24. Neste sentido, sedimentou-se que, no âmbito da Justiça eletrónica transfronteiriça, as necessidades são contínuas e prementes, tendo sido adotado, pelo Conselho, um plano de ação (de 2014 a 2018) relativo à Justiça eletrónica europeia. De acordo com este Plano de Ação, o Portal Europeu de Justiça “é essencial para a oferta de justiça eletrónica a nível europeu”25. O Conselho chama ainda a atenção, neste contexto, para o facto de se afirmar uma maior facilidade à tramitação processual através da “disponibilidade de comunicação eletrónica entre os tribunais e as partes, […] como as testemunhas, os peritos e outros participantes”26. Para o efeito, avança que, “para efeitos de audiências, deverá ser alargado o recurso à videoconferência, teleconferência ou outros meios apropriados de comunicação à distância […] no sentido de eliminar a necessidade de deslocação ao tribunal para participar nos trâmites judiciais, sobretudo nos casos com incidência transfronteiras”27. Tal preponderância é novamente afirmada 21 Cfr. Comissão Europeia, Documento de Trabaho da Comissão (Commission Staff Working Document), Implementation and Evaluation report; Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions – EU e-Government Action Plan 2016-2020 – Accelerating the digital transformation of government, Bruxelas, 19 de abril de 2017, SWD(2016) 108 final, p. 8. 22 Cfr. Conselho, Plano de Ação Plurianual 2014-2018 sobre justiça eletrónica europeia, 2014/C 182/02, de 14 de junho de 2014, ponto 4, p. 1. 23 Cfr. Comissão Europeia, EU e-Government Action Plan 2016-2020…, p. 40 (tradução livre). 24 Cfr. Comissão Europeia, EU e-Government Action Plan 2016-2020…, p. 40. 25 Cfr. Conselho, Plano de Ação Plurianual 2014-2018 sobre justiça eletrónica europeia…, ponto 6, p. 2. 26 Cfr. Conselho, Plano de Ação Plurianual 2014-2018 sobre justiça eletrónica europeia…, ponto 24, p. 4. 27 Cfr. Conselho, Plano de Ação Plurianual 2014-2018 sobre justiça eletrónica europeia…, ponto 25, p. 4.

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quando o Conselho considerou que “[d]everá ser prosseguido o desenvolvimento da comunicação eletrónica entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, especialmente no âmbito de instrumentos adotados no espaço judiciário europeu no domínio do direito civil […] (por ex. através de videoconferências ou do intercâmbio eletrónico e seguro de dados)”28. Para o efeito, o Portal Europeu de Justiça é apontado como o instrumento a desenvolver porque já suficientemente difundido entre profissionais da justiça e autoridades judiciárias, “potenciando uma plataforma e funcionalidades individuais para o intercâmbio efetivo e seguro de informações”29 – inerente adivinha-se claro o desígnio de dotar “as autoridades judiciárias dos diversos Estados-Membros de um mecanismo de comunicação eletrónica à distância comum”30.

3. A justiça eletrónica europeia – a interoperabilidade judiciária e a videoconferência Em Outubro de 2017, foi promovida, em Talin, a Conferência subordinada ao tema “Futur-e-Justice”, pela Presidência Estónia do Conselho. No discurso introdutório, Věra Jourová, Comissária Europeia para a Justiça, os Consumidores e a Igualdade de Género, deu conta que a assinatura da Declaração Ministerial de Talin sobre Administração Pública em linha, de 6 de outubro de 201731, “dá início a um novo compromisso político para tornar realidade uma Europa digital”32. A Comissária alertou que o impulso digital é fundamental para a área da Justiça porque promove um melhor, mais célere e simplificado acesso à justiça por parte dos cidadãos. Nesta senda, destacou a importância do Portal Europeu de Justiça, que tem, atualmente, cerca de três milhões e quinhentas mil visitas por ano. Aliás, afigura-se como um verdadeiro portal interativo, suplantando o seu desígnio inicial de ser apenas um sítio de caráter informativo. 28 Cfr. Conselho, Plano de Ação Plurianual 2014-2018 sobre justiça eletrónica europeia…, ponto 31, p. 5. 29 Cfr. Conselho, Plano de Ação Plurianual 2014-2018 sobre justiça eletrónica europeia…, ponto 32, p. 5. 30 Cfr. COVELO DE ABREU, Joana, O impacto do Regulamento (UE) n.º 2015/2421 no funcionamento das ações de pequeno montante – compreensões quanto à justiça eletrónica europeia, in FIGUEIRAS, Cláudia; FONSECA, Isabel; FREITAS DA ROCHA, Joaquim e FROUFE, Pedro (Com. Org.), Estudos em Homenagem ao Professor Doutor António Cândido de Oliveira, Almedina, 2017, p. 529. 31 Cfr. Tallinn Declaration on eGovernment at the ministerial meeting during Estonian Presidency of the Council, 6 de outubro de 2017, EU2017.EE, in https://www.eu2017.ee/sites/default/ files/2017-10/Tallinn_eGov_declaration.pdf (acesso: 10.2.2018). 32 Cfr. JOUROVÁ, Věra, Futur-e-Justice Conference, 19 e 20 de outubro de 2017, Talin, minuto 0:11, in https://www.youtube.com/watch?v=yHCUliEZBIM&feature=youtu.be (acesso: 10.2.2018) (tradução livre).

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Por sua vez, Julian King, Comissário Europeu para a Segurança da União, recorda que a União, apostando na sedimentação de um Mercado Único Digital, visa fortalecer os paradigmas da Administração Pública em linha (e-Government) e da Justiça eletrónica (e-Justice)33. Recorda que a aposta nas TIC pretende imprimir maior eficiência naqueles serviços sem obliterar maior segurança e a proteção da privacidade de todos, criando um efetivo quadro de combate aos ataques cibernéticos. Nesta senda, recorda que deverá integrar a futura agenda uma maior flexibilidade no acesso a provas em contexto transfronteiriço, promovendo o que designou de um “acesso digital a tais provas”34. Reforça o papel da interoperabilidade no domínio da justiça, nomeadamente através de componentes eletrónicas e digitais que permitam um melhor e maior diálogo entre autoridades judiciárias e entre estas e as partes e intervenientes. Esta Conferência, realizada nos dias 19 e 20 de outubro de 2017, seguiu-se à Declaração Ministerial de Talin sobre Administração Pública em linha que proclamou, mais uma vez, um conjunto de princípios-chave para o sucesso vindouro da estratégia digital para a Europa e o adensamento dos paradigmas da Administração Pública em linha e da Justiça eletrónica. Assim, destacou a seguinte principiologia, que agrega, em simultâneo, princípios que explicavam as relações e o funcionamento dos serviços públicos antes do impacto digital (como a confiança, a segurança, a abertura e a transparência), e princípios absolutamente inovadores alicerçados neste novo contexto digital: - o princípio do digital por defeito (digital-by-default) que determina que, em regra, as interações entre os cidadãos e as empresas e os serviços públicos se faça através de plataformas eletrónicas35 sem, no entanto, preterir a oferta de tais serviços a título presencial36; - o princípio da uma única vez (once-only)37 que implica que os serviços públicos assegurem aos cidadãos e empresas que terão de fornecer os seus da33 Cfr. KING, Julian, Futur-e-Justice Conference, 19 e 20 de outubro de 2017, Talin, in https:// www.youtube.com/watch?v=obw67w4ZefA&feature=youtu.be (acesso: 10.2.2018). 34 Cfr. KING, Julian, Futur-e-Justice Conference..., minuto 3:06 (tradução livre). 35 Cfr. Tallinn Declaration on eGovernment…, p. 3. 36 Cfr. SILVEIRA, Alessandra e COVELO DE ABREU, Joana, Interoperability solutions under Digital Single Market: European e-Justice rethought under e-Government paradigm, in European Journal of Law and Technology, no prelo. 37 Este princípio foi longamente tratado no Digital4EU Stakeholders Forum, onde se aventou que os Estados-Membros deveriam implementar o princípio da uma única vez que significava “uma única obrigação, reutilizar dados, fazer o melhor uso de elementos essenciais […] e pensar serviços transfronteiriços desde o início”. Para maiores desenvolvimentos, cfr. Comissão Europeia, Digital4EU Stakeholder forum 2016 Report, Bruxelas, 25 de fevereiro de 2016, 14, https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/digital4eu (acesso: 3.8.2017).

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dos, documentos e informações apenas uma única vez na medida em que serão organizados a fim de promover uma reutilização dos dados com impacto interno e transfronteiriço, observando as demandas de proteção de dados pessoais38. Este princípio tem o objetivo de “permitir que os utilizadores informem o sector público de diferentes alterações nas suas vidas uma única vez”39. Assim, quando alicerçado em sistemas interoperáveis, este princípio pressuporá que os serviços públicos não voltem a demandar a cidadãos e empresas, mais do que uma vez, não só informações essenciais (como informações sobre o domicílio/sede ou uma nova cópia do cartão de identificação) mas também outros dados e documentos já apresentados anteriormente, ainda que tenham sido fornecidos a outro serviço público nacional ou de outro Estado-Membro40; - o princípio da interoperabilidade por defeito (interoperability by default) determina que, através da dotação de componentes eletrónicos e de bases de dados digitalmente interligadas, os serviços públicos poderão aceder, em contexto transfronteiriço, a informações detidas por autoridades de outros Estados-Membros, promovendo ainda uma comunicação digital e dinâmica com as Instituições europeias. Nesta senda, a União Europeia tem vindo a implementar uma estratégia para primar pela interoperabilidade, atualmente fazendo-o através do Programa ISA2, estabelecido pela Decisão n.º 2015/224041. Nos termos do seu artigo 2.º, n.º 1, entende-se por interoperabilidade “a capacidade de organizações díspares e diversas interagirem com vista à consecução de objetivos comuns com benefícios mútuos, definidores de comum acordo, implicando a partilha de informações e conhecimentos entre si, no âmbito dos processos administrativos a que dão apoio, mediante o intercâmbio de dados entre os respetivos sistemas de TIC”. Tal determina a criação e a reconversão, em todos os Estados-Membros, de plataformas digitais e de bases de dados de modo a serem subsequentemente interligadas entre si e a uma estrutura tecnológica e eletrónica central, potenciando que todos os serviços públicos nacionais e europeus possam beneficiar de redes materialmente comuns em diferentes âmbitos de atuação. Assim, é “o método 38 Cfr. KRIMMER, Robert, Piloting Once-Only, in Futur-e-Justice Conference, 19 de outubro de 2017, Talin, p. 3, in https://www.just.ee/sites/www.just.ee/files/prof._dr._robert_krimmer.pdf (acesso: 10.2.2018). 39 Cfr. DEČMAN, Mitja, The role of government portals: an evaluation of the new Slovenian government portal, in DEČMAN, Mitja et al. (Eds.), ECEG 2016 – Proceedings of the 16th European Conference on e-Government, Reading, Academic Conferences and Publishing International Limited, 2016, p. 46. 40 Para maiores desenvolvimentos, cfr. COVELO DE ABREU, Joana, Digital Single Market under EU political…, p. 129. 41 Cfr. Decisão (UE) n.º 2015/2240, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que cria um programa sobre soluções de interoperabilidade e quadros comuns para as administrações públicas, as empresas e os cidadãos europeus (Programa ISA2) como um meio para modernizar o setor público.

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adotado para facilitar o acesso a informações e serviços num ambiente protegido, caracterizado como sendo interoperável, promovendo a livre concorrência e a proteção de dados por toda a União Europeia”42. Para o efeito, a interoperabilidade é, simultaneamente, um método e um princípio – e afigura-se como um efetivo princípio na medida em que, de acordo com o segundo considerando do Programa ISA2, “é essencial para maximizar o potencial social e económico das tecnologias da informação e comunicação (TIC) e […], por conseguinte, a agenda digital só poderá ser efetiva se a interoperabilidade estiver assegurada”. Neste sentido, e apesar de não ser referido nesta Declaração Ministerial, tem-se também adivinhado um outro princípio quando as interações extravasam o território de um Estado-Membro: na realidade, alicerçados no paradigma de Administração Pública em linha conduzido por soluções interoperáveis, um dos objetivos passa pelo aprofundamento do reconhecimento mútuo e da confiança recíproca entre Estados-Membros, devendo primar-se pelo estabelecimento de um princípio do transfronteiriço por defeito (cross-border by default)43. Tal Conferência em Talin pretendeu, noutro prisma, discutir o futuro da justiça eletrónica porque os Ministros da Justiça dos diversos Estados-Membros terão de aprovar, até junho de 2018, o relatório relativo ao Plano de Ação sobre Justiça eletrónica de 2014-2018. Acresce que “os Estados-Membros terão de acordar, durante o último trimestre de 2018, quais serão as prioridades e os objetivos (estratégia) a prosseguir no domínio da justiça eletrónica europeia para o período de 2019-2023 e quais as ações concretas para a executar”44, pelo que tal Conferência tentou alicerçar as traves mestras para a futura estratégia plurianual relativa à Justiça eletrónica europeia de 2019 a 2023. E tal é evidente e tem de ser sempre tido em consideração porque “[o]s serviços da Justiça prestados pelos Estados-Membros não estão imunes ao fenómeno da globalização e da transformação digital da sociedade e são, assim, constantemente desafiados a adaptar-se, não só para otimizar a relação custo-eficácia, mas também para promover, através de ferramentas digitais em linha, o acesso à justiça e a eficiência do Judiciário”45.

42 Cfr. SILVEIRA, Alessandra e COVELO DE ABREU, Joana, Interoperability solutions under Digital…, no prelo. 43 Para maiores desenvolvimentos, cfr. SILVEIRA, Alessandra e COVELO DE ABREU, Joana, Interoperability solutions under Digital…, no prelo. 44 Cfr. QUELHAS, Filipa de Figueiroa, Justiça Eletrónica Europeia (2019-2023) “Finding the way forward”, in Direção-Geral da Política da Justiça, A transformação Digital, e-book, p. 12, https:// issuu.com/justicainternacional/docs/ebook__rev4.1_ (acesso: 9.2.2018). 45 Cfr. QUELHAS, Filipa de Figueiroa, Justiça Eletrónica Europeia (2019-2023)…, p. 12.

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3.1 A interoperabilidade judiciária ao serviço da videoconferência – modernização do Regulamento n.º 1206/2001 Neste sentido, cabe chamar novamente à colação a noção de interoperabilidade, agora vista como um método capaz de promover a face visível da Justiça eletrónica. Na realidade, a definição de interoperabilidade que encontramos no Programa ISA2 encerra dimensões fundamentais que a doutrina foi adivinhando: 1) Uma “interoperabilidade técnica” que designa “[c]aracterísticas e elementos tecnológicos que ligam sistemas de informação, como os serviços de interligação, os serviços de integração de dados e os protocolos de comunicação”46; 2) Uma “interoperabilidade semântica” que se refere à necessidade de adotar nomenclaturas claras e comuns aos diferentes serviços públicos a fim de permitir maior facilidade na troca de informações, podendo ter um papel particularmente importante a adoção de formulários normalizados. Seria relevante, para o efeito, a dotação de métodos de “categorização, procura e filtragem” na medida em que seriam adotados “meios mais eficientes de consultar […] informação”47; 3) Uma “interoperabilidade organizacional” que pretende alicerçar a necessidade de sedimentar objetivos comuns entre os diversos serviços envolvidos48 na medida em que é necessário envolver todos os agentes públicos49 sob pena de resistências à inovação ditarem uma maior dificuldade de acomodação deste método50.

46 Cfr. JIMÉNEZ-GÓMEZ, Carlos E. e GASCÓ-HERNÁNDEZ, Mila, Achieving open justice through citizen participation and transparency, New York, Hershey, 2017, p. 160 (tradução livre). 47 Cfr. CHARALABIDIS, Yannis, Interoperability in Digital Public Services and Administration: Bringing E-Government and E-Business, New York, Hershey, 2011, p. 107 (tradução livre). 48 Cfr. JIMÉNEZ-GÓMEZ, Carlos E. e GASCÓ-HERNÁNDEZ, Mila, Achieving open justice…, p. 160. 49 Cfr. CHARALABIDIS, Yannis, Interoperability in Digital Public Services..., p. 106. 50 Veja-se, a título de exemplo, os dois acórdãos declarativos do incumprimento do Estado português relativos ao incumprimento relativamente à não implementação de sistemas interoperáveis: Acórdão TJUE Comissão Europeia contra Portugal, de 5 de outubro de 2016, processo n.º C-583/15 e Acórdão TJUE Comissão Europeia contra Portugal, de 22 de março de 2017, processo n.º C-665/15.

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Como sabemos, o Plano de Ação da Comissão Europeia relativo à Administração Pública em linha estabeleceu, uma vez mais, a Justiça eletrónica como uma prioridade, apostando no Portal Europeu de Justiça como um “balcão único de informação sobre a justiça europeia e de acesso aos processos judiciais nos Estados-Membros”51. Este Portal atua, neste contexto, como uma plataforma digitalmente interoperável na medida em que surge como um ponto de acesso comum às informações dos ordenamentos jurídicos nacionais e para registos nacionais relevantes52, como o sistema de registos de insolvências53. Por sua vez, sabemos que o Plano Plurianual para a Justiça eletrónica claramente estabelece que se deve apostar no uso de componentes digitais capazes de facilitar a comunicação entre as autoridades judiciais, nomeadamente no que diz respeito à obtenção transfronteiriça de provas – onde a videoconferência ganha particular relevo. A fim de promover o recurso à videoconferência, o Conselho auxiliou-se de soft law no sentido de inculcar a sua necessidade – para o efeito, adotou Recomendações de boas práticas sobre videoconferência54. Neste documento, o Conselho reconhece que “[a] videoconferência é um instrumento útil e demonstra grande potencial não só a nível nacional, mas também, e em particular, em situações transfronteiras que envolvam vários Estados-Membros ou mesmo países terceiros” já que, em litígios transfronteiriços, “é crucial a boa comunicação entre as autoridades judicias dos Estados-Membros”55, o que foi consabidamente reconhecido, pela União Europeia, nomeadamente em sede de obtenção de provas em matéria civil e comercial. Na realidade, a videoconferência é um meio flexível e que permite, mais facilmente, aos tribunais recolher depoimentos de partes, testemunhas e peritos, podendo “reduzir o stresse das testemunhas vulneráveis […]”e “[e]vita[r] também a deslocação das […] testemunhas ou peritos de outros Estados-Membros que sejam obrigados a depor”56. Assim, apesar de os Es51 Cfr. Comissão Europeia, EU e-Government Action Plan 2016-2020 – Accelerating the digital transformation of government..., p. 8. 52 Para maiores desenvolvimentos, cfr. BOGDAN, Michael, The new EU rules on electronic insolvency registers, Masaryk University Journal of Law and Technology, Vol. 11 (2017), pp. 175-182. 53 Para maiores desenvolvimentos, cfr. Portal Europeu de Justiça – registos de insolvência, modificado a 21 de novembro de 2017, https://e-justice.europa.eu/content_insolvency_registers-110-pt. do?init=true (acesso: 10.2.2018). 54 Cfr. Conselho, Recomendações “Promover a utilização e a partilha de boas práticas sobre a videoconferência transfronteiras no domínio da justiça nos Estados-Membros e a nível da UE”, 2015/C 250/01, de 31 de julho de 2015. 55 Cfr. Conselho, Recomendações “Promover a utilização e a partilha de boas práticas…, ponto 6, p. 1. 56 Cfr. Conselho, Recomendações “Promover a utilização e a partilha de boas práticas…, ponto 7, p. 2.

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tados-Membros se encontrarem apostados na promoção da utilização da videoconferência, sedimentando boas práticas e trocando experiências, disponíveis no Portal Europeu de Justiça, verifica-se que tais contributos não são suficientes. Na realidade, apesar de atualmente se encontrarem informações relativas às dimensões técnicas dos dispositivos de videoconferência dos Estados-Membros no Portal Europeu de Justiça57, verificamos que as preocupações mais destacadas pelo Conselho ainda não são objeto de total observância. Afinal, apesar de esta Instituição ter sublinhado que “os trabalhos futuros […] deverão ser alargados de forma a facilitar a organização e condução de videoconferências transfronteiras em todos os Estados-Membros, mediante a promoção do recurso a ferramentas informáticas para apoio e organização de videoconferências e do aumento da interoperabilidade para efeitos de videoconferência”58 (ênfase nosso), da consulta do Portal Europeu de Justiça, na página que se refere às informações sobre os sistemas nacionais em sede de videoconferência59, verifica-se que não se encontram ainda informações relativas a todos os Estados-Membros no que respeita às componentes técnicas minimamente necessárias a que uma videoconferência possa ocorrer. Deste modo, as Recomendações do Conselho alicerçavam-se na convicção de, utilizando o método da interoperabilidade, promover o funcionamento pleno da videoconferência. No entanto, o que se verifica, neste contexto, é que a interoperabilidade técnica é ainda insipiente, cabendo “[m]elhorar a interoperabilidade entre os Estados-Membros, através da realização de ensaios práticos sistemáticos entre pares de Estados-Membros para identificar os parâmetros de trabalho” a fim de “estabelecer videoconferências mais fiáveis entre os Estados-Membros com qualidade áudio e vídeo suficiente”60. Daqui decorre que o caminho passa por uma interoperabilidade judiciária que contemple as mesmas dimensões da interoperabilidade definida no Programa ISA2 – a par de uma interoperabilidade organizacional, tem de se promover uma interoperabilidade semântica e técnica.

57 Cfr., a propósito, Portal Europeu de Justiça – Videoconferência, modificado a 18 de julho de 2016, in https://e-justice.europa.eu/content_videoconferencing-69-pt.do (acesso: 10.2.2018). 58 Cfr. Conselho, Recomendações “Promover a utilização e a partilha de boas práticas…, ponto 13, p. 2. 59 Cfr., a propósito, Portal Europeu de Justiça – Informação sobre os sistemas nacionais, modificado a 10 de agosto de 2017, https://e-justice.europa.eu/content_information_on_national_facilities-319-pt.do?clang=pt (acesso: 10.2.2018). 60 Cfr. Conselho, Recomendações “Promover a utilização e a partilha de boas práticas…, ponto 22, b), f), p. 4.

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No entanto, remanesce ainda a necessidade de uma interoperabilidade normativa61 – ou seja, a determinação específica de uma interoperabilidade como o método tendente a afirmar a Justiça eletrónica. A confluência de tais dimensões resultará numa efetiva interoperabilidade judiciária como o método que desenvolve e sedimenta a face visível da Justiça eletrónica. Assim, parece que um dos instrumentos mais paradigmáticos à sedimentação da videoconferência é o Regulamento relativo à obtenção de provas em matéria civil e comercial. Este Regulamento aplica-se a litígios transfronteiriços sendo hoje certo que, a cada ano, existem aproximadamente um milhão e setecentas mil ações judiciais em matéria civil e comercial com implicações transnacionais62. A Agenda da Justiça Europeia para 2020 determinou que, a fim de promover a confiança recíproca e o reconhecimento mútuo, havia a necessidade de reforçar os direitos no âmbito do processo civil, nomeadamente no que diz respeito à obtenção de provas63. Na mesma senda, a Agenda “encoraja o uso de ferramentas eletrónicas que podem providenciar um benefício extra real para cidadãos, empresas, operadores judiciários e tribunais”64. Tendo em conta tais sensibilidades, a Comissão Europeia formou um grupo de vinte especialistas a fim de atuar no âmbito da modernização das matérias relativas à cooperação judiciária em matéria civil e comercial, nomeadamente para avaliar a necessidade de revisão do Regulamento n.º 1206/2001. Mas já anteriormente tinha realizado estudos no sentido de aferir a operatividade do Regulamento. Em sede de videoconferência, um Estudo conduzido já em 2007 determinou que as “vantagens decorrentes do uso de novas tecnologias de comunicação são apontadas no artigo 10.4 do Regulamento que permite ao Tribunal requerente pedir ao Tribunal requerido a utilização de tecnologia

61 Cfr. Yannis Charalabidis, Interoperability in Digital Public Services..., p. 106. O Autor refere-se a uma “interoperabilidade legal” mas consideramos mais própria a tradução livre de “legal” para “normativa”. 62 Informação extrapolada da análise dos inquéritos levados a efeito pelo Eurobarómetro EBS 395, p. 25 e Flash EB 347, pp. 9 e 14; (SWD/2016/0207 final), p. 10; SEC(2017) 327 final, p. 53 e SEC(2009) 410 final, p. 59. 63 Cfr. Comissão Europeia, Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões – The EU Justice Agenda for 2020 – Strengthening Trust, Mobility and Growth within the Union, COM(2014) 144 final, Bruxelas, 11 de março de 2014, p. 8. 64 Cfr. Comissão Europeia, The EU Justice Agenda for 2020…, p. 7 (tradução livre).

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de comunicação no decurso da obtenção de prova, nomeadamente através de instrumentos de videoconferência e de teleconferência”65. Do mesmo modo, recentemente o Parlamento Europeu emitiu uma Resolução com Recomendações, dirigidas à Comissão Europeia, sobre as normas mínimas para o processo civil na União Europeia66. Para o efeito, sugere a apresentação de uma proposta legislativa, por parte da Comissão, estabelecedora de regras mínimas em matéria civil e comercial. Nesta senda, determina, no artigo 5.º do Anexo (Proposta de Diretiva), que “[o]s Estados-Membros devem assegurar um processo equitativo” demonstrando que, “[q]uando não for possível que as partes compareçam presencialmente […], os Estados-Membros devem assegurar que as audiências possam ser realizadas através do recurso a uma qualquer tecnologia adequada de comunicação à distância, como a videoconferência ou a teleconferência, que esteja ao dispor do órgão jurisdicional”. Foi ainda realizado outro estudo, coordenado pelo Max Plankt Institute for Procedural Law, onde foram retiradas algumas conclusões relativamente à obtenção de provas e ao papel que a videoconferência é capaz de desempenhar. Assim, sabemos que a obtenção de provas, neste domínio, se pode processar a pedido do Tribunal requerente, ao Tribunal requerido (nos termos do artigo 10.º, n.º 4 do Regulamento), ou realizar-se diretamente, nos termos do artigo 17.º, n.º 4, 3.º parágrafo. Nesta circunstância, tal demanda sempre que se tenha em consideração, pelo menos, dois ordenamentos jurídicos – o do Tribunal requerente e o do Tribunal requerido / autoridade central67. Da análise levada a efeito, o Estudo demonstra que a videoconferência é mencionada em alguns relatórios nacionais – algumas vezes, entendendo-a como um meio útil e relevante;

65 Cfr. Mainstrat, Study on the application of Council Regulation (EC) n.º 1206/2001, on cooperation between the courts of the Member States in the taking of evidence in civil or commercial matters, Março de 2007, p. 27 (tradução livre), in http://ec.europa.eu/civiljustice/publications/ docs/final_report_ec_1206_2001_a_09032007.pdf (acesso: 10.2.2018). 66 Cfr. Parlamento Europeu, Resolução com recomendações à Comissão Europeia sobre as normas mínimas comuns para o processo civil na União Europeia, de 4 de julho de 2017, 2015/2084(INL), in http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+TA+P8-TA-2017-0282+0+DOC+PDF+V0//PT (acesso: 10.2.2018). 67 Recordemos, a este propósito, que a obtenção direta, ao abrigo do artigo 17.º, n.º 4, passa pela autorização da autoridade central que, apesar de apenas poder recusar a obtenção de provas nos termos do n.º 5 desse artigo, a sua alínea c) remete para um juízo de avaliação do pedido de obtenção de provas à luz do ordenamento jurídico nacional da entidade central.

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noutros casos para demonstrar as dificuldades verificadas68. No mesmo relatório é demonstrado que “[…] problemas técnicos impedem uma boa performance da videoconferência”69 na medida em que “nem todas as autoridades envolvidas têm a mesma infraestrutura eletrónica e tecnológica”70. Concluem, assim, que “[n]a sua ótica, qualquer que seja o esforço relacionado com o Regulamento de obtenção de provas, deverá ser acompanhado por atividades de treino e formação de modo a corrigir as disfuncionalidades detetadas quando o Regulamento é aplicado”71. Relativamente à videoconferência, propõem o seu uso através de “meios regulados mais claros, específicos e detalhados”, nomeadamente precisando se é necessária a presença de um oficial de justiça ou se poderia ser realizada por meios mais flexibilizados, se demandados pelo Tribunal requerente (como o skype, por exemplo)72. Para o efeito, enunciam que os problemas técnicos detetados poderiam ser superados se estabelecido um dispositivo técnico comum que canalizasse e processasse os pedidos ou uma ferramenta de software compatível entre Estados-Membros, ou seja, “uma plataforma europeia de videoconferência”73. Nesta circunstância, já aventava este Relatório que o caminho passa pela adoção de mecanismos interoperáveis europeus, a fim de superar as dificuldades técnicas verificadas. Apesar de não usar tal terminologia, avançam soluções interoperáveis aplicadas ao domínio da justiça, promovendo o paradigma da Justiça eletrónica. Ora, como temos vindo a defender, tal configura o método que deverá ser adotado – o da interoperabilidade judiciária como o mecanismo capaz de dar corpo à face visível da Justiça eletrónica, tal como a interoperabilidade administrativa substancia e consubstancia a Administração Pública em linha. 68 Cfr. Max Planck Institute for Procedural Law, An evaluation study of national procedural laws and practices in terms of their impact on the free circulation of judgments and on the equivalence and effectiveness of the procedural protection of consumers under EU consumer law – Report prepared by a Consortium of European Universities le by MPI Luxembourg for Procedural Law as commissioned by the European Commission (JUST/2014/RCON/PR/CIVI/0082), Strand 1 – Mutual trust and free circulation of judgements, junho de 2017, ponto 243, p. 114, in https:// publications.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/531ef49a-9768-11e7-b92d-01aa75ed71a1/language-en (acesso: 10.2.2018). 69 Cfr. Max Planck Institute for Procedural Law, An evaluation study of national procedural..., ponto 249, p. 117 (tradução livre). 70 Cfr. Max Planck Institute for Procedural Law, An evaluation study of national procedural..., ponto 251, p. 119 (tradução livre). 71 Cfr. Max Planck Institute for Procedural Law, An evaluation study of national procedural..., ponto 261, pp. 124-125 (tradução livre). 72 Cfr. Max Planck Institute for Procedural Law, An evaluation study of national procedural..., ponto 262, p. 125 (tradução livre). 73 Cfr. Max Planck Institute for Procedural Law, An evaluation study of national procedural..., ponto 262, p. 125 (tradução livre).

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Na realidade, só assim se consegue dar o passo significativo no sentido de uma efetiva integração judiciária, mais consentânea com o ideário europeu e com os desígnios decorrentes de uma tutela jurisdicional efetiva.

4. Reflexões conclusivas sobre a modernização da cooperação judiciária em matéria civil – a interoperabilidade judiciária como método e princípio para a afirmação de uma integração judiciária A interoperabilidade surge, hoje, quer enquanto método, quer enquanto princípio ao serviço do paradigma de uma Justiça eletrónica74. Afinal, se inicialmente associada às dimensões relativas à Administração Pública em linha, torna-se hoje claro que as suas conquistas e os seus desideratos também se associam à prossecução da Justiça eletrónica, para a qual nos remete o próprio quadro normativo da Administração Pública em linha. Por sua vez, foi estabelecido e melhorado o Portal Europeu de Justiça que se assume como um balcão único digital reputado e reconhecido por autoridades e operadores judiciários. No entanto, a par destes esforços de interoperabilidade semântica, técnica e organizacional, promoveram-se ainda passos significativos e viabilizadores de uma interoperabilidade judiciária: tanto as ações de pequeno montante75, como as injunções europeias76 e o arresto de contas77 apostam nas TIC78; e tal sai ainda reforçado porque se discute, atualmente, a revisão do Regulamento n.º 1206/2001 relativo à obtenção de provas. 74 O tema tem sido abordado, nesta perspetiva, através dos nossos contributos. Cfr., a propósito, Cfr. SILVEIRA, Alessandra e COVELO DE ABREU, Joana, Interoperability solutions under Digital…, no prelo. 75 Cfr. Regulamento (CE) n.º 861/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, que estabelece um processo europeu para ações de pequeno montante, alterado pelo Regulamento (UE) n.º 2015/2421, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015. 76 Cfr. Regulamento (CE) n.º 1896/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento, alterado pelo Regulamento (UE) n.º 2015/2421, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015. 77 Cfr. Regulamento (UE) n.º 655/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial. 78 Cfr., para maiores desenvolvimentos, COVELO DE ABREU, Joana, O impacto do Regulamento (UE) n.º 2015/2421…, pp. 511-531; e COVELO DE ABREU, Joana, O Regulamento n.º 655/2014 que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas: direitos à ação e de defesa em tensão reflexiva no contexto de uma integração judiciária em matéria civil – uma precoce antevisão, in SILVEIRA, Alessandra (Coord.), UNIO E-book – Workshops CEDU 2016, Volume I, abril 2017, pp. 253-276, in http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt/Uploads/E-book%20-%20Vol.%201%20-%202016.pdf (acesso: 12.2.2018).

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Assim, estão a dar-se passos significativos para algo mais do que a mera cooperação, designação aliás demasiadamente ataviada à noção intergovernamental há muito já materialmente abandonada no contexto específico dos processos-tipo, de incidência transfronteiriça. Na realidade, o aprofundamento da integração judiciária surge como um resultado lógico que deriva da dinâmica da tutela jurisdicional efetiva aplicada a processos tipo, de carácter europeu, como as injunções europeias, as ações de pequeno montante, o arresto de contas bancárias e, bem assim, de processos / procedimentos de carácter instrumental ao seu equitativo funcionamento, onde é de destacar o Regulamento n.º 1206/2001, relativo à obtenção de provas. Na realidade, desenvolvendo uma efetiva integração judiciária, a União continua a não comprometer o princípio fundamental da autonomia processual dos Estados-Membros. No entanto, se já se criaram as condições normativas, semânticas, organizacionais, há também uma clara necessidade de continuar a apostar na componente técnico-digital – todas estas novidades e as demais que agora se equacionam poderão ver as suas preponderância, eficiência e simplicidade minoradas se não houver, em simultâneo, uma verdadeira “integração eletrónica”79 ou digital. Assim, o papel da videoconferência é vital e, tendo em conta que as incompatibilidades técnicas ao nível de software e do próprio hardware se continuam a verificar, a aposta deveria passar pela acomodação, no Portal Europeu de Justiça, de um sistema de videoconferência que pudesse suplantar dificuldades técnicas decorrentes da impossível ou difícil articulação dos sistemas nacionais de videoconferência. Na realidade, sujeitando atualmente estes sistemas aos testes da equivalência e da efetividade (no âmbito da autonomia processual dos Estados-Membros), poderemos deparar-nos com a circunstância de que, talvez, tal claudique à luz daquele corolário da cooperação leal… Neste prisma, esta interoperabilidade judiciária de carácter técnico, promotora de uma efetiva integração eletrónica, daria cumprimento aos desígnios de uma Justiça eletrónica através do adensamento da ferramenta central à sua observância – o Portal Europeu de Justiça. Por sua vez, verificamos que, em termos processuais, já existe um verdadeiro efeito finalístico de estabelecimento de uma integração judiciária em matéria civil a qual poderá prosperar se, simultaneamente, ocorrer uma verdadeira e incisiva aposta numa integração eletrónica pois só assim os objetivos inerentes a uma Justiça eletrónica são observados. Por último, tal impactará numa melhor e mais premente observância da tutela jurisdicional efetiva porque congregará maiores condições de os litígios 79 Cfr. SILVEIRA, Alessandra e COVELO DE ABREU, Joana, Interoperability solutions under Digital…, no prelo.

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tramitarem observando, na plenitude, os direitos das partes sem a sua compressão por se tratarem de relações com incidência transfronteiriça.

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O COMANDO POLÍTICO-JURÍDICO DA CONSTITUIÇÃO E A INOVAÇÃO TECNOLÓGICA

João Luiz Martins Esteves1

Resumo: Aborda seu objeto a partir da existência de uma tipologia de Estado que abarca o Estado liberal e o Estado social no conceito mais amplo de Estado constitucional. Identifica que os tipos estatais são definidos pelas constituições das quais emanam um comando político-jurídico que é definido por elementos objetivos. Indica a necessidade de que as teorias jurídicas de interpretação aplicadas pelo intérprete sejam adequadas a obedecer ao comando político-jurídico da Constituição e não a ideologia do intérprete. Por fim, esclarece quais as diretrizes do Estado brasileiro que indicam este comando, identificando particularmente a garantia do desenvolvimento e sua correlação à tecnologia. Palavras-chave: Estado Social, Vinculação hermenêutica, diretrizes constitucionais.

1 Doutor em Direito, pelo Programa de Doutorado da Pós Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito, Estado e Cidadania, pelo Programa de Mestrado da Universidade Gama Filho (UGF/RJ). Professor na graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina – (UEL).

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O comando político-jurídico da Constituição e a inovação tecnológica João Luiz Martins Esteves

Abstract: It approaches its object from the existence of a typology of State that embraces the liberal state and the social state in the broader concept of constitutional state. It identifies that state types are defined by constitutions from which emanate a political-legal command that is defined by objective elements. It indicates the need for the legal theories of interpretation applied by the interpreter to be adequate to obey the political-legal command of the Constitution and not the ideology of the interpreter. Finally, it clarifies what the directives of the Brazilian State that indicate this command, identifying in particular the guarantee of the development and its correlation to the technology. Keywords: Social State, Hermeneutic bonding, constitutional guidelines. Sumário: Introdução 1. Concepções de Estado e tipos de Estado 2. O comando político-jurídico 3.A Instrumentalização ideológica das teorias jurídicas 4. As teorias jurídicas na realização do comando político-jurídico das constituições 5. As diretrizes da Constituição e o desenvolvimento nacional Conclusão

INTRODUÇÃO Tem sido possível constatar, não somente em termos políticos e econômicos, mas também jurídicos, que na trajetória do Estado constitucional se encontra basicamente a formulação de dois tipos de Estados: o Estado liberal e o Estado social. Este último se apresenta como uma derivação do primeiro, dentro do conceito de Estado constitucional, sendo que a diferença entre ambos se encontra relacionada às concepções ideológicas de Estado que as orientam e lhes são correlatas: a concepção liberal de Estado e a concepção social de Estado. Estas concepções se estabelecem não somente sob o entendimento existente quanto aos aspectos econômico e social dos Estados, mas também sob a identificação d a característica jurídica de cada Estado, que acaba por afirmar um comando político-jurídico constitucional. Por sua vez, as teorias jurídicas têm sido desenvolvidas e aplicadas – de forma consciente ou inconsciente - a partir da percepção do sentido ideológico2

2 Como será possível ainda explanar, de forma mais detalhada, no decorrer do trabalho, utilizamos o termos ideologia como um conceito axiológico positivo ao qual atribuímos o significado de tomada de posição e programa de ação.

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de comandos constitucionais de viés político e jurídico3 que orientam os sistemas jurídicos para os quais foram concebidas. Assim, como se poderá perceber, admitimos como paradigma norteador do comando político-jurídico da Constituição, uma concepção do direito cuja norma de reconhecimento4 tem como conteúdo formal e material aquilo que lhe é implicitamente ideológico. Este conteúdo, a que nos referimos, é resgatado a partir dos dispositivos políticos e jurídicos definidos ideologicamente por meio da contextualização política da Constituição, por seus fundamentos, objetivos, regime jurídico dos direitos fundamentais e forma pela qual se realizam a garantia e o asseguramento de obediência ao comando político-jurídico constitucional. Sob esta perspectiva, este trabalho demonstra as características das concepções que politicamente orientam os tipos de Estados existentes e esclarece a percepção sobre a existência de um comando de viés político e jurídico, distinto em cada sistema constitucional, o qual o orienta e submete a partir da conjugação de elementos que o compõem e contribuem para a formação de seu sentido ideológico. Ao final, e busca verificar como, em cada momento da configuração dos tipos de Estado, as teorias jurídicas existentes que podem contribuir, ou não, para a realização das tarefas constitucionais que podem ser exigidas pela existência de um comando político-jurídico das constituições.

1. CONCEPÇÕES DE ESTADO E TIPOS DE ESTADO É necessário assinalar que, internamente, cada uma das duas grandes concepções de Estado não decorre de teorizações homogêneas alicerçadas em modelos teóricos singulares que dão sustentação a cada uma delas. Pelo contrário, pode ser constatada uma variação teórica indeterminada quando se objetiva justificar ou implementar, por meio da atividade estatal, os valores da concepção liberal de Estado ou da concepção social de Estado. Entretanto, é possível identificar padrões que caracterizam, de forma geral, uma ou outra concepção teórica. 3 Neste sentido, Luhmann (1995) identifica historicamente a existência de uma tradição jurídica da utilização do termo Constituição que se refere às ordenações ou estatutos do direito positivo, ao lado de um uso político que se encontra relacionado a um corpo político, e que é sustentável a afirmação de que estas duas tradições terminem por se confundir. Assim, a terminologia jurídica e terminologia política são interligadas no momento em que ocorre a criação de uma nova ordem política e jurídica em que a ordem política passa a ser percebida como uma ordem jurídica, levando à tese de que o conceito de Constituição é uma reação à total separação entre o sistema político e o sistema jurídico e leva à necessidade de uma religação entre eles (LUHMANN, 1995, p. 102-104). 4 Toma-se emprestado o conceito de norma de reconhecimento de Hart (2009, p. 142) no sentido de que a ideologia presente na constituição atua como instrumento de justificação e como programa de ação - conforme já observado por Ferrraz Jr. (1998, p. 182-183) – que confere validade ao sistema jurídico e que existe de fato como conteúdo formal e material da própria Constituição.

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Na delimitação dos contornos da concepção liberal de Estado, é perceptível o entendimento de que foi construída uma teoria liberal do Estado de direito burguês, relativa aos direitos fundamentais, cujas características centrais são fornecidas por Böckenförde (1993) Para uma teoria liberal (do Estado de direito burguês) dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais são direitos de liberdade do indivíduo frente ao Estado. Se estabelecem para assegurar, frente à ameaça estatal, âmbitos importantes da liberdade individual e social que estão precisamente expostos, segundo a experiência histórica, à ameaça do poder do Estado. (BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 48, tradução nossa)5.

Essa definição constata uma centralidade dos direitos individuais, e mais especificamente a garantia de liberdade do indivíduo como preocupação central da concepção liberal de Estado. Como contraponto, o aprimoramento de uma concepção social de Estado, relativa aos direitos fundamentais, de ser compreendida como uma derivação do significado dado a uma concepção liberal de Estado. Assim, em uma concepção social de Estado, a garantia de direitos não fica reduzida à liberdade do indivíduo frente à atuação estatal, como também não é admitida uma absolutização de qualquer direito tido com fundamental. Na concepção social de Estado, em seu estágio mais avançado, os direitos sociais são colocados em regime de igualdade com os direitos individuais. Os valores básicos de um Estado liberal e democrático, como a liberdade, a propriedade, as dimensões da igualdade no seu aspecto formal, a segurança jurídica e a participação popular na formação da vontade estatal devem estar protegidas em um Estado Social, tornando-os mais efetivos ao oferecer-lhes uma base e um conteúdo material6. Isto significa que, na concepção social de Estado os direitos

5 No original: Para la teoria liberal (del Estado de derecho burgués) de los derechos fundamentales, los derechos fundamentales son derechos de libertad del individuo frente al Estado. Se estabelecen para asegurar, frente a la amenaza estatal, ámbitos importantes de la liberdad individual y social que están especialmente expuestos, según la experiencia histórica, a la amenaza del poder del Estado. 6 Parte-se do entendimento de que o indivíduo e a sociedade não são categorias apartadas e contraditórias, mas sim que apresentam implicações recíprocas, não podendo uma realizar-se sem a outra (GARCÍA-PELAYO, 1985, p. 26).

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individuais, assim como os direitos sociais, dependem da atuação objetiva concreta do Estado7. É importante destacar que o Estado Social não é apresentado como uma mera contraposição ao Estado Liberal, mas somente seu aperfeiçoamento. Mas, também é possível identificar que o Estado Liberal, em sua forma clássica, nunca deixou de existir efetivamente. Logo no surgimento do Estado Social em sua primeira fase é possível reconhecer, por meio da análise de textos constitucionais, que houve uma convivência, no mesmo período histórico, entre Estados liberais e Estados sociais, a qual se arrasta até os dias atuais8.

2. O COMANDO POLÍTICO-JURÍDICO A identificação dos tipos de Estado, não se realiza exclusivamente por meio da análise interpretativa dos textos constitucionais que lhe dão suporte, mas também por meio de uma consequente subordinação interpretativa às concepções vinculadas respectivamente a cada um destes dois modelos de Estado, a concepção liberal de Estado e a concepção social de Estado. E neste sentido, a teoria do direito utilizada por uma comunidade jurídica auxilia uma correta interpretação do direito, caso esteja coadunada ao tipo de Estado ao qual se encontra submetido o ordenamento jurídico estatal que, por sua vez, é definido pela interpretação que se faz dele e também no comando político-jurídico da Constituição - cujos elementos esporemos mais adiante.

7 Nesta compreensão fica esclarecido que a concepção social de Estado não deve ser simploriamente confundida com uma concepção marxista de Estado. Sem dúvida, uma concepção social de Estado, marcadamente quanto aos direitos fundamentais, tem sua inspiração na concepção marxista de sociedade, dada a sua preocupação com a afirmação da igualdade substancial. Mas deve ser observado que não pode ser confundida com a marca do Estado Socialista, pois se realiza ainda nos marcos do sistema capitalista, e nunca teve por objetivo substituí-lo, mas tão-somente torna-lo palatável, diminuindo sua índole de mau distribuidor da riqueza produzida e possibilitando respostas aos influxos socialistas. Neste sentido, como contribuição ao entendimento de que a concepção social de Estado, relativa aos direitos fundamentais não destituí a garantia dos valores liberais, esclarece Böckenförde “La idea de los derechos fundamentales sociales no aparece, vista así, como algo que se oponga a la garantia de la libertad del Estado liberal-burgués de Derecho, sino como su consecuencia lógico-material en una situación social modificada”. (BÖCKENFÖRDE, 1993. p.75). 8 Exemplificando isso, por meio de uma análise dos textos constitucionais é possível verificar que, assim como o Brasil em 1934, países bálticos e alguns países do leste da Europa, foram influenciados pela Constituição de Weimar, o mesmo não ocorreu com países como Reino Unido, França (NUNES, 2011, p. 40) e também E.U.A. E na atualidade é possível identificar a existência de Estados sociais, cujas constituições receberam o influxo da concepção de Estado social a partir da sua segunda fase, de que temos exemplo as Constituições italiana de 1947, alemã de 1949, portuguesa de 1976, espanhola de 1978 e brasileira de 1988, as quais convivem temporalmente com a Constituição liberal dos E.U.A de 1787.

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Este comando, que ao mesmo tempo é político e jurídico, resulta do entroncamento existente entre dois comandos: a) do sistema político que dá origem à Constituição e identifica a finalidade ou objetivos do Estado, que nas sociedades modernas encontram-se submetidos à realização de direitos entendidos como fundamentais; b) e do sistema jurídico que os incorpora a seus códigos internos e passa a emitir comandos jurídicos deônticos que não abandonam e permanecem vinculados aos comandos políticos. Conforme observado anteriormente, foi já durante a formação do ideário do Estado burguês que, por meio de Montesquieu, sentiu-se a necessidade de contextualizar a época e lugar na definição dos objetivos do Estado, apresentando a limitação do exercício do poder estatal – sinônimo de liberdade política - como objetivo direto da Constituição do Estado. Entretanto, George Jellinek (1970) pode ser apontado como o primeiro a realizar uma sistematização sobre os fins do Estado, ainda sob a concepção do Estado liberal do século XIX. O autor apresenta uma classificação, definida em fins objetivos e subjetivos, e também uma justificação teleológica que tem o mérito de reconhecer um conteúdo valorativo na definição dos fins do Estado e de rejeitar a concepção de que o Estado é um fim em si mesmo, (JELLINEK, 1970, p. 196-197). No século XX, quando já emergira o Estado social, Alessandro Groppali identifica na ordem, no bem-estar e no progresso a finalidade como sendo um dos elementos essenciais formadores do Estado (GROPPALI, 1962, p. 110 e 141)9. É possível concluir que as modernas constituições têm sido estabelecidas sob o entendimento de que a finalidade deve ser um dos elementos constitutivos do Estado e que a realização de direitos fundamentais é seu objetivo principal. Fica clara esta afirmação a partir da constatação de que se passou a definir os objetivos e fins do Estado por meio de diretrizes normativas juridicamente estabelecidas e positivadas nos textos constitucionais as quais se encontram sistematicamente vinculadas aos direitos fundamentais e suas garantias de realização e não violação. Assim, a despeito da possível variação, no campo da taxionomia constitucional, relativa aos elementos que definem o comando político-jurídico das constituições, trabalhamos sua conceituação da seguinte forma: a) as diretrizes são o conjunto de normas sistematicamente formadas pelos fundamentos e objetivos do Estado definidos de forma explícita ou implícita na Constituição, e são decorrentes do conteúdo dos direitos fundamentais reconhecidos no texto 9 Gropalli detectando que as “[...] Constituições dos países livres [...]” (GROPPALI, 1968, p. 62-63), asseguram a todos os cidadãos a igualdade e a liberdade, em vários desdobramentos, acaba por sustentar que “[...] a liberdade não deve ser fim em si mesma, mas meio para assegurar o progresso mediante um conjunto de reformas económicas e políticas que realizem uma justiça social cada vez maior com a diminuição das diferenças entre as várias classes, também a igualdade, em vez de pretender igualar o inigualável, destruindo as inevitáveis diferenças individuais, deve procurar estimulá-las e ajudá-las, assegurando a todos as mesmas condições iniciais de vida social para o pleno desenvolvimento de suas actividades e personalidades [...]” (GROPPALI, 1968, p. 64).

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constitucional; b) o regime jurídico conferido aos direitos fundamentais identifica a amplitude de sua aplicabilidade, obrigatoriedade e vinculação dos poderes constituídos para a sua realização; c) o mecanismo de garantia do comando político-jurídico é definido pelas normas constitucionais que delegam poderes e definem a forma de controle, que garante a realização das diretrizes por meio da aplicação das normas de direitos fundamentais. A combinação destes elementos permite afirmar a existência de comando político-jurídico, que contribui para indicar um sentido ideológico que se enquadra em um dos tipos de Estado e orienta as tarefas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. E conforme também é possível ser constatado, o desenvolvimento ou aperfeiçoamento de teorias jurídicas podem responder às necessidades e tarefas impostas por um ou outro tipo de Estado que pode ser identificado. Mas, é necessário observar que, mesmo entre sistemas constitucionais que podem ser genericamente classificados em uma mesma concepção de Estado, também podem ser identificadas específicas diretrizes da atuação estatal, distintos regimes jurídicos dos direitos fundamentais, bem como diferentes mecanismos de garantia das diretrizes e dos direitos fundamentais que exigem distintas teorias jurídicas de interpretação e aplicação. Exemplificadamente podemos dizer que tanto Constituição estadunidense de 1787, quanto a Constituição austríaca de 1920 poderiam ser enquadradas como típicas da concepção liberal de Estado caso apresentem diretrizes semelhantes e igual regime jurídico de direitos fundamentais, mas isto não significa que uma mesma teoria jurídica lhes fosse igualmente adequada, especificamente por apresentarem diferentes mecanismos de garantia - a primeira com um critério difuso de controle de constitucionalidade e a segunda com um critério concentrado –, e ainda mais por pertencencerem a diferentes tradições jurídicas – respectivamente common law e civil law. De outra forma, também em sistemas constitucionais distintos para os quais se pretenda – a partir de uma mesma concepção de Estado – a vinculação a um dos tipos de Estado, podem ser utilizadas ou desenvolvidas teorias jurídicas distintas, exigidas a partir de outros fatores que são diversos dos elementos do comando político-jurídico inscritos em seus textos constitucionais. Estes fatores se traduzem na constatação de existência de uma tradição jurídico-hermenêutica que seja adequada, ou na necessidade de rompimento com tradições jurídicas que impeçam a vinculação pretendida. Assim, a Alemanha pode ser tida como referência de um Estado social não pelo que dispõe o texto da sua Lei Funda-

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mental de 1949, o qual não prevê a existência de direitos sociais10, mas sim em virtude de interpretações e decisões de seu Tribunal constitucional que são feitas por meio da utilização e construção de uma doutrina (jurisprudência) de valores a qual passou a fazer parte de seu sistema constitucional. Se isto não for plenamente observado, é possível que se adotem as mesmas teorias jurídicas para Estados enquadrados na mesma concepção de Estado, mas que apresentam comandos político-jurídicos diferentes. Por este motivo, para uma adequada interpretação constitucional é sempre necessário que haja uma definição sobre qual é o específico comando político-jurídico da Constituição que se pretende interpretar, o qual é formado por suas diretrizes, regime jurídico de direitos fundamentais e mecanismos de garantia, como também é necessário que seja identificado o sentido ideológico que orienta as funções exercidas pela Constituição.

3.A INSTRUMENTALIZAÇÃO IDEOLÓGICA DAS TEORIAS JURÍDICAS A preocupação teórica central existente no plano jurídico liberal, sempre fora a tutela e garantia dos denominados direitos individuais (FERRAJOLI, 2002, p. 14). E com a significativa mudança ocorrida nas relações entre a sociedade e o Estado, por meio das constituições sociais, passou a emergir a necessidade de modificação na teoria jurídica até então conhecida e aplicada ao modelo liberal de Estado. Ao mesmo tempo em que se construiu uma concepção social de Estado, fatalmente também surgiu a necessidade do aprimoramento de uma teoria jurídica que, no plano teórico, tenha por objetivo a tutela e a garantia dos denominados direitos sociais. Sob este entendimento deve ser norteado o estudo sobre as constituições e as teorias que buscam interpretá-las e aplicá-las. Para isso, é necessário verificar se o Estado social apresenta uma teorização jurídica acompanhando a sua trajetória. A tarefa teórica de descrever e justificar o Estado liberal ou o Estado social, ou de modelar suas estruturas aos direitos que os fundamentam, nunca esteve reduzida à filosofia, à política e à economia. O desenvolvimento teórico do direito sempre cumpriu papel fundamental nessa teorização. Este postulado 10 Em que pese o fato de a Constituição alemã de 1919 ter sido, juntamente com a mexicana de 1917, uma das primeiras a terem inscrito um “catálogo” de direitos sociais, a tendência não continuou no Pós-guerra, quando da elaboração da Lei Fundamental de 1949. Não foram incluídos, no corpo da Constituição, os direitos sociais, embora estes já constassem na maioria das constituições dos Estados da Federação Alemã (KRELL, 1999, p.244). A explicação para tal fenômeno deve ser buscada na compreensão da história política e jurídica da Alemanha durante a primeira metade do século XX.[...] (ESTEVES, 2007, p. 33 e 34).

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que afirma a existência de empreitadas teóricas no âmbito direito, que induz à sua conformação a uma concepção de viés político-econômico, merece especial atenção a fim de contradizer qualquer discurso afirmativo de que as teorias jurídicas e suas aplicações não estão alinhadas a programas políticos e econômicos. Neste sentido afirmamos que, no campo do direito, sempre se apresentou como necessária, tanto a identificação de modelos teóricos que servissem de orientação ao funcionamento de um Estado liberal, quanto a identificação de um modelos teóricos que sejam adequados aos objetivos de um Estado social, ou seja, a cada tipo de Estado constitucional deve fazer-se apensar teorias jurídicas capazes de oferecer condições de que os aplicadores do direito contribuam na tarefa de realizar o comando político-jurídico inscrito em seus sistemas constitucionais. Tem sido comum o não enfrentamento de tal questão uma vez que, geralmente, não se tem tratado a teoria do direito sob a compreensão de que comandos político-ideológicos distintos, definidos pelo legislador constituinte e ordinário, podem exigir teorias jurídicas também distintas. Isto tem causado um ecletismo jurídico em termos hermenêuticos que possibilita aos integrantes do poder judiciário optar por uma ou por outra teoria jurídica de interpretação independente de sua vinculação ao modelo de Estado constitucionalmente previsto. Assim, por hipótese, pode acontecer que, em um Estado com uma Constituição liberal, a escolha do método de interpretação jurídica utilizado pelos membros do poder judiciário pode encontrar-se vinculado a uma concepção social de Estado e, inversamente, em um Estado com uma Constituição social, a escolha do método de interpretação jurídica utilizado pode encontrar-se vinculado a concepção liberal de Estado. Situações deste tipo dificultam a realização do comando político-jurídico definido em uma Constituição e configuram a existência de um agir ilegítimo dos membros do judiciário que, desta forma, colocam-se em lato oposto ao modelo de Estado escolhido democraticamente pela sociedade em que se incluem.

4. AS TEORIAS JURÍDICAS NA REALIZAÇÃO DO COMANDO POLÍTICO-JURÍDICO DAS CONSTITUIÇÕES A aplicação das teorias do liberalismo econômico clássico enfrentou obstáculos que levaram a teoria econômica, ainda no século XIX a exigir – conforme já exposto - cada vez mais uma maior regulação do mercado, em que pese tenham existido influxos liberais no final do século XX, mas que notoriamente encontraram obstáculos. Também, a forma de participação da sociedade na formação da vontade estatal em muito se transformou desde a época de restrição feita por meio do voto censitário e masculino, até novas formas de organização política que além de ampliarem a participação política alicerçada no voto e bus125


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carem garantir uma maior igualdade no processo de escolha de representantes. Paralelamente a isto, e conforme já explanado anteriormente, após a proclamação dos direitos sociais, resultado das lutas sociais desenvolvidas nos séculos XIX e XX, ocorrera a positivação e reconhecimento dos mesmos em grande parte dos sistemas jurídicos. Esta nova situação legitimou a emergente necessidade de intervenção estatal nas relações sociais, exigindo que o Estado despertasse da sua condição de inércia defendida pelo individualismo e pelo liberalismo, culminando na estabilização jurídica dos direitos sociais por meio de sua positivação nas Constituições sociais - assim denominadas as constituições adstritas a uma concepção social de Estado. Claramente é possível ver que as questões ideológicas ultrapassaram as disputas travadas nos órgãos legislativos ordinários para colocar-se também no patamar judicial sob o entendimento de existência de um sentido ideológico nas Constituições. Este fato leva à necessidade de revisão do entendimento sobre o papel de influência exercido ideologicamente pelas constituições na teoria jurídica e vice-versa. Dependendo das circunstâncias, é possível que uma teoria de interpretação e aplicação do direito encontre-se em uso pelos membros de uma comunidade jurídica de duas maneiras: a) como instrumento que se encontra moldado a cumprir o comando político-jurídico definido pela Constituição; b) como instrumento que não se amolda ao comando político-jurídico definido na Constituição oferecendo-lhe resistência ideológica. Entretanto, esta última situação não é aceitável perante a concepção de constitucionalismo democrático que se realiza sob o entendimento de que o princípio da soberania popular é um dos parâmetros basilares do Estado constitucional e com o qual se compromete este trabalho. Este compromisso de lealdade ao comando político-jurídico apresenta claramente uma guinada no campo teórico, com implicações diretas na forma como devem ser juridicamente realizadas a interpretação e aplicação do direito. Isto coloca em questão qual é a teoria jurídica de interpretação e aplicação que melhor se adapta a uma Constituição, dependendo do tipo de Estado a que ela esteja enredada. A resposta a este questionamento é encontrada no entendimento de que, no campo da atividade do Judiciário, uma Constituição e consequentemente todo o ordenamento jurídico a ela submetido, não podem ser interpretados senão por meio de uma teoria jurídica afinada e comprometida ideologicamente com a realização do comando político-jurídico determinado por esta mesma Constituição. As tarefa de construção e consolidação do tipo de Estado previsto em uma Constituição dirigem-se às três esferas de poder estatal e àqueles que o exercem, ofício este da qual não encontram-se, portanto, desincumbidos o poder judiciário, seus órgãos e pessoas que exercem funções neste órgão estatal. Assim, no modelo de Estado liberal e no modelo de Estado social, a teoria do direito 126


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deve ser entendida como sendo um meio, e não um fim, orientado pela ideologia definida constitucionalmente. Como já afirmado, por meio da opção pela utilização de uma teoria jurídica se expõem conceitos, explicações e se declara a intenção de como deve ser entendido e aplicado um determinado conjunto normativo. Entretanto, a escolha teórica não pode deixar de observar, obrigatoriamente, quais são os valores que fundamentam o conjunto de normas postas e, em específico, os valores que fundamentam a Constituição, sob pena de, por meio da utilização de um conjunto teórico que lhe é inadequado, impedir a realização do comando político-jurídico constitucional. Estas observações demonstram a necessidade de que se análise quais são as diretrizes básicas que permitem a realização de uma escolha entre teorias jurídicas de interpretação e aplicação do direito que sejam mais adequadas a uma Constituição liberal ou a uma Constituição social.

5. AS DIRETRIZES DA CONSTITUIÇÃO E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL A Constituição brasileira, enquadra-se no tipo de Constituição de um Estado social conforme, logo de início, suas diretrizes orientam. Estabelece de forma explicita as diretrizes do Estado brasileiro por meio de duas prescrições: a) o estabelecimento dos fundamentos que devem, como diz o próprio nome, fundamentar os atos estatais; b) a determinação de objetivos a serem observados e cumpridos pelos agentes estatais. Mas também, de forma implícita, sistematiza os direitos fundamentais no texto constitucional de acordo com os fundamentos e objetivos do Estado brasileiro contribuindo para a interpretação que deve ser feita destas diretrizes. Os fundamentos da República, inscritos no art. 1º11 da Constituição, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, aliados aos objetivos descritos no seu art. 3º12, que consistem em construir uma sociedade livre, justa e solidá11 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 12 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

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ria; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, se constituem em diretrizes do Estado brasileiro. Sob uma perspectiva sistemática, os direitos fundamentais devem orientar a realização dos objetivos da república sem deixar de observar os fundamentos desta. Entretanto, também é possível inferir que os direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que são prescritos como direitos lastreados nos fundamentos do Estado, possibilitam e norteiam a interpretação destes. Neste caminho, constata-se que os direitos individuais se encontram sistematizados em desdobramentos da liberdade, igualdade e propriedade no art. 5º, e substancialmente no art. 170 que trata da ordem econômica13. Este dispositivo, em que pese não se tratar de um elemento que compõem o comando político-jurídico da Constituição brasileira se encontra em perfeita harmonia com as diretrizes do Estado brasileiro. Uma acareação entre os fundamentos e princípios da ordem econômica, os direitos individuais e os fundamentos e objetivos (diretrizes) do Estado brasileiro nos revela, a sinteticamente, por meio de uma amostragem relacional, a seguinte conformidade sistêmica14: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (art. 170, caput) - valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV); tem por fim assegurar a todos existência digna (art. 170, caput) – dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III); conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput) - construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I); observados os seguintes princípios: soberania nacional (art. 170, inc. I) – soberania nacional (art. 1º inc. I); função social da propriedade (art. 170, inc. III) – a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, inc. XXIII); livre concorrência (art. 170, inc. IV) - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (art. 5º inc. XIII); defesa do consumidor ( art. 170, inc. V) - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, inc. XXXII); defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (art. 170, inc. VI) - a propriedade 13 Eros Grau, ao realizar uma interpretação sistemática da Constituição federal, observa que “o seu art. 170 prospera, evidenciadamente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica”. (GRAU, 2007, p. 173, grifo do autor). 14 Uma análise sistemática que inclui diretrizes constitucionais, os direitos fundamentais e a ordem econômica já fora realizada por Eros Grau nos seguintes termos: “Ao bojo da ordem econômica, tal como considero neste ensaio, além dos que já no seu título VII se encontram, são transportados [...] fundamentalmente os preceitos inscritos nos seus arts. 1º, 3º, 7º a 11, 201, 202, 218 e 219 – bem assim, entre outros, os do art. 5º, LXXI, do art. 24, I, do art. 37, XIX e XX, do § 2º do art. 103, do art. 149, do art. 225º”. (GRAU, 2007, p. 193-194).

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atenderá a sua função social (art. 5º, inc. XXIII) e a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (art. 186, inc. II)15; redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, inc. VII) - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inc. III); busca do pleno emprego (art. 170, inc. VIII) – garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º inc. I). Percebe-se que o desenvolvimento nacional, assim como outros, é objetivo explícito do Estado brasileiro sendo, portanto, parte integrante de suas diretrizes estando necessariamente articulado e ligado à ordem econômica estabelecida constitucionalmente, em específico à busca do pleno emprego. E é justamente nesta situação jurídica que deixa claro que, o desenvolvimento econômico, calcado ou não no desenvolvimento de tecnologias, deve ter como parâmetro a busca da manutenção e ampliação do emprego. Isto nos oferece o entendimento de que, o desenvolvimento tecnológico provido pelo Estado brasileiro tem que estar alicerçado na melhoria da qualidade de vida da população e não pode estar desregulamentado a ponto de, inversamente, poder destruir postos de trabalho ou mesmo de aumentar o lucro individual em desfavor da maioria da população.

CONCLUSÃO É perceptível a existência de concepções de Estado, de característica liberal e social, por meio do qual se percebe que o Estado social deve ser entendido como uma derivação do Estado liberal, representando ambos uma diversificação interna ao Estado Constitucional. Também é identificável a existência dos elementos que definem um comando político-jurídico, e seu sentido ideológico, o qual representa a atividade central da Constituição e encontra-se presente em todos os sistemas constitucionais como elo entre a ambientação política e econômica de um lado e jurídica de outro. Também foi possível, ainda, identificar que a utilização de teorias jurídicas para interpretação e aplicação da constituição não é uma atividade que pode estar livre das ideologias de quem as formula ou de como são instrumentalizadas para realização do comando político-jurídico das Constituições. E quanto a isto foi destacado que o fator ideológico é entendido 15 Neste sentido, Derani (2008), ao analisar a ordem econômica definida pela Constituição brasileira, por meio da estrutura fixada nos art. 5º e art. 170 - especificamente nos dispositivos que determinam que a propriedade deve cumprir uma função social e de que a ordem econômica está calcada na defesa do meio ambiente – defende que [...] não podemos adotar o simplismo de tachar o modo de produção expresso no texto da Constituição Federal como modo de produção capitalista, nivelando-o com demais Estados capitalistas, sem compromisso com seu espaço e tempo” (DERANI, 2008, p. 8), e afirma que “A Constituição reelabora e dá contornos ao capitalismo que declara, desenhando-o na forma de “capitalismo social” [...]”. (DERANI, 2008, p. 9, grifo do autor).

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como conceito axiológico positivo, que deve ser exposto pelo intérprete e que adotamos seu significado como tomada de posição e programa de ação. Entretanto, em que pese a particularidade de comandos político-jurídicos das constituições é necessário ainda analisar se pontos que podem levar à convergência de certas constituições e indicar o enquadramento em um tipo específico de Estado podem contribuir para que se esclareça se existem teorias que genericamente podem ser adequadas aos tipos estatais ou a um conjunto específico de constituições. Ou seja, foi indicado neste trabalho, de que as Constituições devem ser enquadradas como pertencentes à categoria de Estado liberal ou à categoria de Estado social, e que de todas emanam comandos político-jurídicos distintos. Chega-se ainda ao entendimento de que o desenvolvimento nacional, objetivo do Estado brasileiro, apresenta-se como situação jurídica que exige do desenvolvimento tecnológico a contrapartida de assegurar, por meio da tecnologia o asseguramento de uma vida dignada à população, que se evidencie pela inclusão das pessoas ao mercado de trabalho e nunca com o aumento do desemprego.

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HART, H. L. A. O conceito de direito. Trad. Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009. JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1970. KRELL, Andreas Joachim. Realização dos direitos fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos básicos (uma visão comparativa). In Revista de Informação Legislativa/Senado Federal, Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas, n. 36, 1999. LUHMANN, Niklas. La Constitution comme Acquis Évolutionnaire. Droits – Revue Française de Théorie Juridique, n.22, Paris : PUF, 1995. NUNES, António José Avelãs. As Voltas que o Mundo dá ... : Reflexões a propósito das aventuras e desventuras do estado social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. TARELLO, Giovanni. Cultura Jurídica y Política del Derecho. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil. Lei, derechos, justicia. trad. Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta, 2007.

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CIDADE, INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E INCLUSÃO DIGITAL

Lilian Regina Moreira Gabriel Pires1

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade analisar a inovação tecnológica e seus reflexos na cidade que cresce desordenadamente, trazendo a discussão desse ambiente inovador para o campo das obrigações do Estado, dentre os quais vale destacar a obrigação da garantia do acesso a rede com infraestrutura adequada para a conexão, para garantir o bem estar, a igualdade, a dignidade, coroando a cidadania com a efetiva inclusão digital. Palavras-chave: cidade, tecnologia, inclusão digital, disponibilização de infraestrutura. Abstract: This work aims to analyze technological innovation and its reflexes in a city that grows disorderly, bringing the discussion of this innovative environment to the field of State obligations, in which it is worth highlighting the obligation of guaranteeing access to the network with infrastructure suitable for the connection, in order to guarantee the well-being, the equality, the dignity, and crowning the citizenship with the effective digital inclusion.

1 Advogada, Doutora e Mestre em direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, Professora de direito administrativo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Coordenadora do MackCidade:Direito e Espaço Urbano.

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Cidade, inovação tecnológica e inclusão digital Lilian Regina Moreira Gabriel Pires

Keywords: city, technology, digital inclusion, provision of infrastructure. Sumário: Introdução 1. Inovação e inovação tecnológica 2. Cidade, crescimento desordenado e desenvolvimento sustentável 3. Cidade, tecnologia e cidadania Conclusão

Introdução A inteligência humana foi capaz de criar utilidades e comodidade, como muito bem se percebe pelas Revoluções Industriais no decorrer da história do homem. A primeira Revolução Industrial se consolida com a descoberta da utilização do ferro e carvão, a passagem da manufatura para o sistema fabril, a máquina de fiar, o tear mecânico, a máquina a vapor. A segunda Revolução Industrial com a energia elétrica (lâmpada incandescente), o petróleo como combustível, os meios de comunicação. A terceira Revolução Industrial com o avanço da ciência, tecnologia, engenharia genética, internet etc. Com efeito, a inteligência do homem gerou uma série de mutações nas relações e bases econômicas que se foram se transformando no decorrer do tempo. A palavra inteligência deriva do latim intellegere, de inter: “entre” e legere: “recolher”, “fazer escolha”. Note-se que a palavra “inteligência” já foi utilizada como uma faculdade inerente e exclusiva dos seres humanos, não obstante no mundo contemporâneo o rápido progresso técnico-científico demonstrou ser possível atribuir inteligência a produtos e a serviços – inteligência artificial. Sem embargo, é possível listar alguns exemplos relativos à realidade artificial, tais como a comunicação que era realizada por meio de cartas postadas e entregues fisicamente pelo carteiro, com o avanço técnico e tecnológico surgiu, em um primeiro momento, o telefone fixo e dele passamos ao portátil e do portátil para o smart-phone. Modernamente, fazer contato entre pontos distantes se tornou muito mais fácil, contemplando não apenas a voz como também a imagem, isto sem falar dos veículos que possuem comando de voz, facilidades para manobras e estacionamento, já se discutindo, inclusive, os carros autônomos. É fato que vários serviços podem ser efetuados de modo digital, seja mediante a utilização de um computador, ou muitas vezes de um aparelho smart-phone (serviços bancários, compras de produtos e contratação de serviços on-line etc). A inovação é termo fortemente relacionado ao setor privado e sua análise passa a ser o centro da dinâmica do desenvolvimento capitalista, constituindo-se em um processo irreversível de destruição criativa, utilizando a terminologia de

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Joseph Alois Schumpeter2 para descrever a transformação industrial que destrói estruturas econômicas para criar outras. Portanto, inovação está intimamente ligada com a inovação tecnológica. No ambiente privado, diante das relações globalizadas e dos avanços tecnológicos as relações econômicas se modificaram, sendo que a questão do preço não é mais o epicentro para a obtenção e manutenção de um mercado consumidor. No ambiente global, manter um mercado consumidor impõe a preocupação relativa à ética e transparência na gestão. Dentro desse novo mundo da informação e inovação tecnológica, que se reflete nas relações econômicas, não podemos desconsiderar que esse novo desenho abrange a Administração Pública. Toda essa novidade no ambiente do Estado determina um caminho a ser percorrido e este deve, necessariamente, estar conectado com o desafio de como melhorar a vida do cidadão, perpassando pela regulação de atividades e serviços. O modo capitalista da economia determina/autoriza a busca de meios para diminuir custos e maximizar lucros. Verifica-se que a tecnologia e inovação tem eco fácil nesse ambiente. Quando falamos da Administração Pública o alcance da realidade inovadora é outro, na medida em que esta não busca lucro, mas é obrigada a prestigiar o interesse público3, sob o regime jurídico de direito público que é conformado pelos princípios constitucionais elencados no artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil. As relações entre e Estado, mercado e sociedade civil necessitam de construção transparentes, éticas, impondo regras de convivência, de justiça social, de direito humanos e gestão estratégica. Portanto, no que toca a Democracia Econômica, os avanços tecnológicos devem, também, estar conectados com as esferas econômica e social. Pretendemos trazer a discussão desse ambiente inovador e tecnológico, que caminha com a celeridade da velocidade da luz, para o campo das obrigações do Estado, que deve enfrentar os desafios de organizar todo esse aparato para garantir o bem estar, a igualdade, a dignidade e coroar a cidadania.

2 SCHUMPETER. Joseph Alois.Teoria do desenvolvimento econômico, publicada pela primeira vem em 1911, em alemão. No Brasil publicada pela Editora Abril Cultural, 1982. 3 O interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem. Celso Antônio Bandeira de Mello, in curso de direito administrativo, 27ª edição, São Paulo - Malheiros Editores, p.61.

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1. Inovação e inovação tecnológica A inteligência, a necessidade de sobrevivência e de satisfação4 inerentes à natureza humana, fez com que a busca da técnica fosse incessante. A técnica é o meio de modificação das coisas, é um processo criador e modificador, que evoluiu para tecnologias5 sofisticadas. A terminologia Inovação surge com Joseph A. Schumpeter na obra intitulada Teoria do Desenvolvimento econômico6. Por sua vez, o manual de Oslo define inovação como “a implementação de um produto (bem ou serviço) novo ou significativamente melhorado, ou um processo, ou um novo método de marketing, ou um novo método organizacional nas práticas de negócios, na organização do local de trabalho ou nas relações externas 7 isso sem falar na Lei Federal de Inovação nº 10.973/04 que estabelece que inovação é “Introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços.” A Inovação tecnológica8 também vem definida no Manual de Oslo: Ino-

vações tecnológicas de produto e de processo (TPP) compreendem a implementação de produtos e de processos tecnologicamente novos e a realização de melhoramentos tecnológicos significativos em produtos e processos”. Dessa realidade e desse universo imenso que a tecnologia apresenta, várias vertentes e preocupações ganham atenção. Não por outra razão que a União Internacional de Telecomunicações (UIT), braço da Organização das Nações 4 GASSET ORTEGA, José. Se o ser humano se contentasse com o que é objectivamente necessário para existir, não precisaria da técnica. Contudo, não lhe basta satisfazer necessidades básicas e tende mesmo a ultrapassar o problema dessa satisfação, impondo à natureza uma reforma que anule esse problema e lhe assegure bem-estar. in Meditação sobre a Técnica, Lisboa: Editor: Fim de Século Edições- 2009. 5 É impensável viver sem energia elétrica, impossível pensar em garantir a saúde descartando anestesias, antibióticos, vacinas. Como imaginar a locomoção entre grandes distâncias de modo mais rápido sem o avião, dentre tantas outras coisas. De outro lado, o avanço tecnológico é ambíguo: de um lado tantas benesses de outro foi o caráter bélico do ser humano que o impulsionou. Todo aparato e corrida tecnológica gerou degradação da natureza e provocou desigualdades. 6 [A]s inovações no sistema econômico não aparecem, via de regra, de tal maneira que primeiramente as novas necessidades surgem espontaneamente nos consumidores e então o aparato produtivo se modifica sob sua pressão. Não negamos a presença desse nexo. Entretanto, é o produtor que, igualmente, inicia a mudança econômica, e os consumidores são educados por ele, se necessário; são, por assim dizer, ensinados a querer coisas novas, ou coisas que diferem em um aspecto ou outro daquelas que tinham o hábito de usar. SCHUMPETER, Joseph A. (1911). A Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 48. 7

Disponível em http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf.p. 55.Acesso em 10/12/2017, às 21:57 h.

8

Disponível em http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf.p. 55.Acesso em 10/12/2017 (OCDE/Eurostat, 1997, §130), p. 23. Acesso 10/12/2017, às 22:21h.

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Unidas (ONU) para o setor de telecomunicações, declarou que a tecnologia pode auxiliar o mundo a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável9. Dentre as atividades elegeram o apoio a tecnologia na prestação de serviço público, com a finalidade de oferecer qualidade de vida para todos indistintamente, possibilitando democratizar a melhoria da qualidade da população e minimizando as desigualdades e processos segregadores que a urbanização apresenta. No Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES e o Ministério da Ciência e Tecnologia – MCTIC encomendou estudo sobre a internet das coisas denominado: Um plano de ação para ao Brasil10. Não há dúvida que temos um fato: a tecnologia com presença integral no cotidiano da vida em sociedade. Essa realidade perpassa por várias análises e reflexos que a tecnologia foi capaz de engendrar na sociedade, tais como a: democracia digital, as relações comercias/consumo tratadas no mundo virtual, os reflexos na mão – de – obra11 maciça e disponível, dentre outros, bem como o desafio para a Administração Pública, na medida em que esta deve se reorganizar tanto em seus processos internos quanto na organização dos serviços públicos a serem prestados. Em outras palavras, toda essa novidade no ambiente do Estado determina um caminho a ser percorrido e este deve necessariamente estar conectado em como melhorar a vida do cidadão.

2. Cidade, crescimento desordenado e desenvolvimento sustentável Nesse ambiente inovador e tecnológico, temos a cidade, que conforme dados do Banco Mundial, 54% dos habitantes do planeta vivem em cidades12. No Brasil, de acordo com dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 2015 a maior parte da população brasileira, 84,72%, vive em áreas urbanas e15,28% dos brasileiros vivem em áreas rurais. A Região com maior

9

http://iot-week.eu/wp-content/uploads/2017/06/IoT4SDG-Declaration.pdf. 04/02/2018, às 15.30 H.

10

www.bndes.gov.br/wps/wcm/connect/site/269bc780-8cdb-4b9b-a297-53955103d4c5/relatorio-final-plano-de-acao-produto-8-alterado.pdf?MOD=AJPERES&CVID=m0jDUok%201.%20 2.

Acesso

em

11 Como qualificar e requalificar uma população que possui forte atividade puramente operacional/ braçal. 12

https://nacoesunidas.org/atual-modelo-de-urbanizacao-e-insustentavel-onu-habitat-relatorio/. Acesso 04/02/2018, às 16 H.

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percentual de população urbana é o Sudeste, com 93,14% das pessoas vivendo em áreas urbanas13. O crescimento, sem precedentes, leva à conclusão de que a urbanização é instrumento para alcançar o desenvolvimento sustentável em países desenvolvidos e em desenvolvimento. O processo de urbanização aconteceu em países desenvolvidos nos idos dos séculos XVIII e XIX. Nos países subdesenvolvidos o processo de urbanização iniciou-se somente na década de 1930, e chegou desacompanhado da infraestrutura compatível e necessária, gerando um modelo de desenvolvimento excludente e perverso. O Brasil em 1950 tinha 36% da população vivendo em áreas urbanas, ao passo que, no ano 2000, o índice já somava um total de 81%14, Esse crescimento urbano eclodiu no surgimento de bairros sem nenhuma infraestrutura, com serviços públicos ausentes ou precários, degradação do meio ambiente (áreas verdes e rios). A realidade desorganizada resultou em precariedade no transporte, nos problemas relativos à habitação, saúde, educação, segurança pública e ausência de qualidade de vida.

13

https://teen.ibge.gov.br/sobre-o-brasil/populacoa/populacao-rural-e-urbana.html. 04/02/2018 a 16:05.

Acesso

14 Conforme dados do IBGE. Estatísticas do século XX, p 49, in : http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv37312.pdf, acesso em 04/08/2017, às 17:17 H.

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O impulso da dura realidade e a pressão popular15 apresentaram como resultado o aprimoramento jurídico e político/institucional do país. Assim, na Constituição Federal de 1988 há um capítulo inédito dedicado a Política Urbana e, em seguida, temos o demorado, mas concretizado Estatuto da Cidade16, bem como as diversas políticas setoriais17, culminando com a criação do Ministério das Cidades como articulador das políticas urbanas. Embora o arcabouço legal seja robusto ainda caminhamos lentamente na implementação efetiva e eficiente da urbanização inclusiva. No ambiente mundial, a preocupação com a cidade está estampada na definição dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que, nos próximos 15 anos, deverão ser implementados por todos os países. A meta é que até

15 Em janeiro de 1985 foi criado o Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Na década de 1980, a bandeira da reforma urbana se diversificou e outras questões que iam além da moradia passaram a fazer parte da pauta. Neste momento, o Brasil já se apresentava muito mais urbanizado e complexo do que naquele momento do Seminário de 1963. A mobilização pela reforma urbana acabou desembocando na constituição do MNRU em 1987, motivado pelos debates da Assembleia Nacional Constituinte, que deveria conduzir o país à redemocratização. Assim, este Movimento já nasce com a aposta na institucionalização de sua pauta através da inserção de novas regras no arcabouço jurídico do país. Ao mesmo tempo, o Estado passava por um momento de reestruturação e precisava do apoio dos movimentos sociais na condução desta nova etapa política do país. Esta confluência gerou a incorporação de várias demandas sociais na Constituição. Houve, portanto, o encontro de demandas objetivas com condições favoráveis na conjuntura política que propiciou o surgimento desse Movimento e o começo da institucionalização de sua pauta. Na fase de debates realizados no Congresso Nacional, as várias entidades e movimentos organizados em torno do MNRU assumiram a tarefa de redigir a Emenda Popular da Reforma Urbana, que apesar de elaborada em pouco tempo devido ao calendário da Constituinte, contou com a assinatura de seis entidades nacionais e mais de 160 mil assinaturas de pessoas. Essa proposição constitucional deu origem ao Capítulo da Política Urbana, artigos 182 e 183, uma das maiores conquistas da mobilização social daquele período. In :O MOVIMENTO NACIONAL DE REFORMA URBANA E A CONSTRUÇÃO DE UMA NACIONAL POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO PÓS-REDEMOCRATIZAÇÃO: DA COOPTAÇÃO À ESTRUTURAÇÃO DE UM FUNCIONAMENTO DE DECOUPLING.Autora: Danielle Cavalcanti Klintowitz. Anais do encontro nacional ANAPUR. V. 15. 2013 16 Lei 10.257/2001 que regulamenta a política urbana e vincula o cumprimento da função da social da propriedade urbana, por meio da edição do Plano Diretor obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes. 17 Politica Nacional de Habitação. Em 2005 foi criado o sistema Nacional de Habitação de Interessa Social, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e o Conselho Gestor do Fundo, por meio da Lei Federal 11.124/2005. Política de Resíduo Sólido, de Mobilidade Urbana e etc.

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2030 tenhamos cidades e assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis com ganhos de eficiência e inovação tecnológica.18 A cidade, e seu crescimento desordenado e excludente, reclama o atendimento de demandas altamente complexas e impõe que a gestão e governança sejam realizadas de modo inteligente e eficiente, racionalizando gastos, buscando isonomia e eficácia na prestação de serviços, ordenando os espaços de forma a garantir o desenvolvimento sustentável aliado ao exercício pleno da cidadania. Nesse contexto, a tecnologia pode ser um instrumento para colaborar no alcance desse desiderato, e não por outro motivo que as denominadas cidades inteligentes integram uma das pautas e preocupações mundiais. A cidade inteligente deve fazer uso da tecnologia para possibilitar a interação de pessoas, de processos, de coisas para catalisar o desenvolvimento. O Cities in Motion Index, do IESE Business School na Espanha estabeleceu que são 10 dimensões que indicam o nível de inteligência de uma cidade: a governança, o planejamento urbano, a tecnologia, o meio-ambiente, a coesão social, o capital humano, e a economia19. Demonstrado está que o processo de urbanização foi acelerado e excludente, e que a tecnologia é um fato, com vários desdobramentos, e que as cidades inteligentes possuem várias dimensões. Toda essa temática é ponto para várias reflexões e estudos próprios que reclamam atenção, aqui fica uma singela reflexão sobre a democratização digital plasmada no acesso real dos cidadãos.

3. Cidade, tecnologia e cidadania Diante do inexorável mundo novo em que vivemos, a tecnologia permite o universo incontável de possibilidades. O que, em princípio, gera expectativa nas benesses que poderão ser alcançadas.

18 Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis: Metade da humanidade – 3,5 bilhões de pessoas – vive nas cidades atualmente. Em 2030, quase 60% da população mundial viverá em áreas urbanas,828 milhões de pessoas vivem em favelas e o número continua aumentando. As cidades no mundo ocupam somente 2% de espaço da Terra, mas usam 60 a 80% do consumo de energia e provocam 75% da emissão de carbono. A rápida urbanização está exercendo pressão sobre a oferta de água potável, de esgoto, do ambiente de vida e saúde pública. Mas a alta densidade dessas cidades pode gerar ganhos de eficiência e inovação tecnológica enquanto reduzem recursos e consumo de energia. Cidades têm potencial de dissipar a distribuição de energia ou de otimizar sua eficiência por meio da redução do consumo e adoção de sistemas energéticos verdes. Rizhao, na China, por exemplo, transformou-se em uma cidade abastecida por energia solar. Em seus distritos centrais, 99% das famílias já usam aquecedores de água com energia solar. Consulta em 29/07/2017 no https://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/as 19:20 h. 19 http://www.iese.edu/research/pdfs/ST-0396-E.pdf. Acesso 04/02/2018, à 18:37 H.

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Quando tratamos da Administração Pública o consenso será que esse aparato deverá ser utilizado em prol do interesse público, na medida em que os serviços e facilidades existirão para serem colocados à disposição do cidadão e possibilitarem a criação de coisas/serviços/utilidades que revertam para o grupo social. Além disso, as ferramentas digitais possibilitam a busca de maior legitimidade e transparência na atividade estatal, bem como podem ser utilizadas como instrumento de mobilização e pressão colocadas à disposição do cidadão. Portanto, gozam do potencial ou capacidade de reduzir os déficits democráticos abrindo espaço para a criação de canais de participação efetiva da população. A assertiva só ganha concretude se houver a real possibilidade de uso da internet, sem essa democratização do uso não há efetividade plena de sua existência para as finalidades do seu uso em prol da cidadania e participação popular. De acordo com União Internacional de Telecomunicações (UIT) em países desenvolvidos, 94% dos jovens utilizam a Internet, enquanto nos países em desenvolvimento esse percentual é de 67% e, nos países menos desenvolvidos, é apenas de 30%.20 No relatório apresentado pelo Facebook ainda temos na população mundial de 4,1 bilhões de pessoas que não estão conectadas21. No Brasil o acesso a internet, de acordo com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade de Informação – Cetic, 85%22 da população, das classes D e E, não tem acesso a internet. Para o quesito velocidade, o acesso rápido de 1 mega, cai para apenas 5%23. As razões para essa realidade da desconexão passam por alguns pontos: pela infraestrutura disponível, pelo custo para manter um provedor, pela capacitação e motivo para utilizar a rede. Assim, é preciso que a infraestrutura necessária esteja próxima para possibilitar o acesso à rede. Muitas vezes o cidadão tem como pagar pelo serviço, mas este não é disponível, ou seja, o sinal não chega. É necessário que o valor do acesso seja compatível com a distribuição de renda, além do que, é necessária a compreensão do que significa a rede e o modo de acessá-la (educação digital), bem como a cultura em aceitar as possibilidades desse instrumental e a segurança em usá-lo. 20 https://nacoesunidas.org/mais-de-4-bilhoes-de-pessoas-terao-acesso-a-internet-movel-ate-o-fimde-2017-diz-relatorio-da-onu/, acesso em 15/02/2018, às 22;58 H. 21 https://newsroom.fb.com/news/2016/02/state-of-connectivity-2015-a-report-on-global-internet-access/acesso em 15/02/2018, às 23:03. Relatório State of Connectivity 2015 22 http://data.cetic.br/cetic/explore?idPesquisa=TIC_DOM, acesso em 15/02/2018 às 22.48 h. 23 http://data.cetic.br/cetic/explore?idPesquisa=TIC_DOM, acesso 15/02/2018, ás 23:10 h.

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No Brasil Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014, instituiu o marco civil da internet, que em seu artigo 4º assim estabelece: A disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção: I - do direito de acesso à internet a todos; II - do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos; III - da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso; e IV - da adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados.

A ausência de conexão, seja por falta de infraestrutura ou pelo seu alto custo ou pela impossibilidade de compreensão de seu manuseio, contraria as premissas da legislação, ou seja, acesso a internet a todos. Além do que no mundo contemporâneo as relações de um modo ou de outro passam pelo acesso a internet, portanto, a rede é um meio de garantir a cidadania. No Brasil muitos serviços públicos24 são acessados pela internet e dependem de rede, sendo que a rede móvel25 não disponibiliza todo o plexo de possibilidade das redes fixas. Essa rede móvel disponibiliza planos com limite de utilização de dados. Entretanto, quando a franquia contratada se exaure o consumidor automaticamente fica sem o serviço e sob o denominado zero-rating26, o que viola a neutralidade de rede. Flávia Lefévre27 de maneira clara colocou a questão da seguinte forma: 2 – Entretanto, findo os dados contratados, o impedimento de acesso a tudo o que está disponível na internet e o acesso à apenas determinadas aplicações 24 A declaração de imposto de renda, inscrição no ENEM (exame nacional do ensino médio, que garante a possibilidade de ingresso em ensino superior), emissão de notas fiscais e outros. 25 No Brasil a rede móvel possui planos a custo baixo e, portanto, sujeita a franquia sendo que a maioria faz a opção do serviço pré-pago. Encerrado os minutos contratados a conexão depende de redes wi-fi. 26 Acesso a apenas para alguns aplicativos. 27 É advogada e membro do CONSELHO DO COMITÊ GESTOR DA INTERNET. Texto disponível em http://flavialefevre.com.br/pt/blog/zero-rating-a-internet-dos-pobres, acesso em 15/02/2018, às 1955.

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configuram claro e incontestável desrespeito à neutralidade da rede, na medida em que ocorrem duas condutas proibidas: bloqueio e discriminação. Esta prática, então, deve ser analisada também à luz do que dispõe o art. 9º, do Decreto 8.771/2016, que dispõe: “Art. 9º Ficam vedadas condutas unilaterais ou acordos entre o responsável pela transmissão, pela comutação ou pelo roteamento e os provedores de aplicação que I - comprometam o caráter público e irrestrito do acesso à internet e os fundamentos, os princípios e os objetivos do uso da internet no País; - priorizem pacotes de dados em razão de arranjos comerciais; ou III - privilegiem aplicações ofertadas pelo próprio responsável pela transmissão, pela comutação ou pelo roteamento ou por empresas integrantes de seu grupo econômico”. Além disso tem claros impactos sobre pequenas e médias empresas, pois a associação de 3 grandes provedores de conexão à internet, que dominam mais de 70% do mercado, com os gigantes das redes sociais Facebook, WhatsApp e Twitter, por exemplo, funcionam como uma barreira intransponível para startups, abalando consequentemente a inovação. O marco civil da internet no Brasil garante a neutralidade de rede e impõe que os serviços sejam acessados sem barreiras. A razão da neutralidade28 é exatamente garantir o acesso de todo conteúdo igualitário para todos. A União é responsável pela organização e pelo provimento de telecomunicações no território nacional, nos termos da Emenda Constitucional nº 08, bem como pela Lei Federal nº lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, que dispõe: Art. 1° Compete à União, por intermédio do órgão regulador e nos termos das políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo, organizar a exploração dos serviços de telecomunicações. Parágrafo único. A organização inclui, entre outros aspectos, o disciplinamento e a fiscalização da execução, comercialização e uso dos serviços e da 28 A Comissão Federal de Comunicação Americana –FCC, em 14/12/2017, cancelou os regulamentos cuja finalidade era a neutralidade da rede. Ainda não sabemos qual o reflexo dessa decisão.

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implantação e funcionamento de redes de telecomunicações, bem como da utilização dos recursos de órbita e espectro de radiofreqüências. Art. 2° O Poder Público tem o dever de: I - garantir, a toda a população, o acesso às telecomunicações, a tarifas e preços razoáveis, em condições adequadas; II - estimular a expansão do uso de redes e serviços de telecomunicações pelos serviços de interesse público em benefício da população brasileira; III - adotar medidas que promovam a competição e a diversidade dos serviços, incrementem sua oferta e propiciem padrões de qualidade compatíveis com a exigência dos usuários; IV - fortalecer o papel regulador do Estado; V - criar oportunidades de investimento e estimular o desenvolvimento tecnológico e industrial, em ambiente competitivo; VI - criar condições para que o desenvolvimento do setor seja harmônico com as metas de desenvolvimento social do País

Por sua vez, compete à Anatel - Agência Nacional de Telecomunicações - definir as regras e parâmetros que as operadoras de internet devem atender, de acordo com o plano nacional de universalização. Contudo, o investimento atende a lógica econômica e as operadoras não estão explicitamente obrigadas a promover a universalização do acesso a internet. Nesse contexto de informação farta, bem como de todo o aparato tecnológico disponível, é possível afirmar que se não houver atuação efetiva do Estado a situação de desconexão permanecerá, mantendo o abismo e segregação tão marcada em nossa sociedade. O ponto crucial da sociedade altamente tecnológica e conectada é escolher o caminho para a diminuição das desigualdades ou de perpetuar e aprofundar as diferenças. E aqui está a responsabilidade do Estado de direcionar essa escolha.

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Conclusão A população urbana cresceu. Ao lado disso, o agigantamento das cidades é motivo de preocupação e atenção. Aliado a tudo isso o mundo passou por uma revolução com o advento das inovações tecnológicas, motivo pelo qual redução das desigualdades e erradicação da pobreza é luta estabelecida pela ONU, consolidada na agenda 203029. Diante desse cenário há o reconhecimento de que a tecnologia da informação e comunicação podem colaborar com a concretização dos objetivos da agenda, conforme o relatório denominado “Progresso Acelerado: aproveitando a tecnologia para alcançar os objetivos globais”, que foi lançado no Fórum Politico

29 Esta Agenda é um plano de ação para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade. Ela também busca fortalecer a paz universal com mais liberdade. Reconhecemos que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, é o maior desafio global e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável. Todos os países e todas as partes interessadas, atuando em parceria colaborativa, implementarão este plano. Estamos decididos a libertar a raça humana da tirania da pobreza e da penúria e a curar e proteger o nosso planeta. Estamos determinados a tomar as medidas ousadas e transformadoras que são urgentemente necessárias para direcionar o mundo para um caminho sustentável e resiliente. Ao embarcarmos nesta jornada coletiva, comprometemo-nos que ninguém seja deixado para trás. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas que estamos anunciando hoje demonstram a escala e a ambição desta nova Agenda universal. Eles se constroem sobre o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e concluirão o que estes não conseguiram alcançar. Eles buscam concretizar os direitos humanos de todos e alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas. Eles são integrados e indivisíveis, e equilibram as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. Os Objetivos e metas estimularão a ação para os próximos 15 anos em áreas de importância crucial para a humanidade e para o planeta. https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/.Acesso em 16/02/2018, ás 12.40.

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do Alto Nível das Nações Unidas sobre Desenvolvimento sustentável30, realizado em Nova York em julho de 2017, cuja primeira lição é : não deixar ninguém sem conexão. Portanto, analisar e discutir a sociedade tecnológica tem vários aspectos e pontos de reflexão. Contudo, no que diz respeito ao Estado, há a obrigatoriedade de garantir condições e infraestrutura adequada para a conexão, garantir a educação digital e segurança no tráfego de dados, com proteção à privacidade. Essa responsabilidade é do Estado, que junto com a sociedade civil e iniciativa privada devem construir caminho seguro para a expansão tecnológica, 30 As cinco lições são as seguintes:1. Não deixar ninguém ‘offline’ Atualmente, 3,9 bilhões de pessoas não têm acesso aos recursos disponíveis na internet, como notícias, educação e serviços bancários.Uma promessa central da Agenda 2030 é não deixar ninguém para trás. Uma das formas de alcançar esse objetivo é trazendo o poder das tecnologias de comunicação e informação a todas as nações, pessoas e comunidades. Outro foco estabelecido é a igualdade de gênero. Hoje, os homens continuam tendo um maior acesso do a telefones celulares e à internet que as mulheres em todas as regiões do mundo.2. TICs como aceleradoras de inovação e mudança:Uma série de contribuintes para o relatório cita o impacto do ‘big data’, redes de sensores, robôs autônomos, aprendizado de máquinas e inteligência artificial. Esses são exemplos da revolução tecnológica que é uma aceleradora para inovação e mudança. Com as tecnologias de informação e comunicação, há melhorias nas capacidades de reunir, analisar, gerenciar e trocar informações em diversas áreas, como agricultura e saúde. O ‘big data’ possui enorme potencial para o benefício público. 3. Colocar as pessoas em primeiro lugar:De acordo com os líderes humanitários que participaram do relatório, a necessidade de colocar as pessoas em primeiro lugar é a preocupação principal. No ano passado, em média, 20 pessoas foram expulsas de suas casas a cada minuto – ou uma pessoa expulsa a cada três segundos.O cenário de guerra, violência e perseguição é um dos motivos para isso. O acesso à internet e ao telefone celular permite que essas pessoas tenham oportunidade de encontrar emprego e ter um salário ou se reunir com familiares e amigos.4. Não há espaço para complacência:A inovação tecnológica está transformando todos os aspectos de como vivemos. Exemplos disso são os sistemas ciber-físicos que permitem, em tempo real e a grandes distâncias, produtos customizados e produção industrial, ou ainda o comércio eletrônico reduzindo custos, enquanto aumenta acesso ao mercado, traz benefícios ao consumidor e oferece novas oportunidades de emprego e treinamento.No entanto, o relatório atenta para importância de ser vigilante, e não complacente, em relação às formas de fomentar as TICs. Sugere que ações complementares sejam incrementadas para aumentar a segurança, a confiança e acesso a mais oportunidades e benefícios. Se o acesso a serviços proporcionados pelas TICs for restrito a grupos privilegiados, as desigualdades podem aumentar e prejudicar ainda mais a desvantagem de acesso a empregos bem remunerados. 5. Criar parcerias inovadoras: Uma das principais lições do relatório é que fortes parcerias são cruciais para que os ODS sejam alcançados. Para isso, o relatório enfatiza a responsabilidade da comunidade internacional de promover uma colaboração mais efetiva, evitando divisões entre os que se beneficiam das mudanças tecnológicas e aqueles que são deixados para trás.Destaca-se ainda o papel crítico do setor privado através de novos modelos de investimento e da colaboração para acelerar o progresso para a realização dos ODS. https://nacoesunidas.org/cinco-licoes-da-onu-como-usar-a-tecnologia-para-alcancar-os-objetivos-globais-da-agenda-2030/. Acesso 16/02/2018, às 12.45 h.

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com o enfrentamento real da desigualdade digital, criando meios para a participação social, para a utilização de serviços públicos disponíveis, para a educação inclusiva com respeito as diversidades culturais, resultando em cidadania digital fundada em valores de respeito a dignidade da pessoa humana, na igualdade, liberdade e pluralismo.

BIBLIOGRAFIA BANDEIRA DE MELLO.Celso Antônio. Curso de direito administrativo, 27ª edição, São Paulo - Malheiros Editores. GASSET ORTEGA, José. Meditação sobre a Técnica, Lisboa: Editor: Fim de Século Edições- 2009. KLINTOWITZ, Danielle Cavalcanti. Anais do encontro nacional ANAPUR. V. 15. 2013 SCHUMPETER. Joseph Alois.Teoria do desenvolvimento econômico. Editora Abril Cultural, 1982. Sites visitados http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf.p. http://www.finep.gov.br/images/apoio-e-financiamento/manualoslo.pdf.p. http://iot-week.eu/wp-content/uploads/2017/06/IoT4SDG-Declaration.pdf. www.bndes.gov.br/wps/wcm/connect/site/269bc780-8cdb-4b9b-a297-53955103d4c5/relatorio-final-plano-de-acao-produto-8-alterado.pdf?MOD=AJPERES&CVID=m0jDUok%201.%202. https://nacoesunidas.org/atual-modelo-de-urbanizacao-e-insustentavel-onu-habitat-relatorio/. https://teen.ibge.gov.br/sobre-o-brasil/populacoa/populacao-rural-e-urbana.html. Estatísticas do século XX, in : http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv37312.pdf, https://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/ http://www.iese.edu/research/pdfs/ST-0396-E.pdf. 147


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Parte II Responsabilidade Social nos Setores PĂşblico e Privado

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PÓS-VERDADE, OPINIÃO PÚBLICA E ESTADO SOCIAL

Antônio Ernani Pedroso Calhao1

Resumo: O artigo discute o paradoxo entre visões extremadas que se apresentam no atual modelo de comunicação tecnológica, produto da sociedade da informação. Está em curso um novo paradigma informacional batizado de “Pós-Verdade” ou Post-Truth, pelo qual a verdade passa a ter um outro compromisso que não espelha a realidade factual. Antes, porém, seu foco é influenciar a opinião pública com apelos à emoção, adotando como discurso o interesse impactante das perplexidades, das paixões sectárias e mesmo da (des) informação visando ao malbaratamento de realidades sociais que devem ficar sob o véu da opacidade. Um dos aspectos importantes nesta análise é lançar luzes sobre a radicalização dos discursos populistas que se nutrem do artifício da contrainformação para golpear os processos eleitorais. Palavras-chave: Pós-Verdade; Opinião Pública; Estado Social

1 Pós-doutor pelo Programa de Pós-Doutoramento em Democracia e Direitos Humanos do Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra - Portugal. Doutor em Direito. Advogado. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e seu Vice-Presidente. Membro da Academia Mackenzista de Letras – SP

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Abstract: The article discusses the paradox between extreme visions that present themselves in the current model of technological communication, product of the information society. There is a new informational paradigm called “Post-Truth” or Post-Truth, whereby the truth begins to have another commitment that does not reflect factual reality. Rather, its focus is on influencing public opinion w ith appeals to emotion, adopting as a discourse the shocking interest of perplexities, sectarian passions, and even (dis) information aimed at breaking down social realities that must be under the veil of opacity. One of the important aspects of this analysis is to shed light on the radicalization of populist discourses that rely on the artifice of counter-information to hit electoral processes. Keywords: Post-Truth; Public Opinion; Social State Sumário: Introdução; 1. A democracia e sua política de indecisão ou indeterminação; 2. O paradoxo da democracia fundada na deslegitimação; 3 Populismo: a radicalização e a problematização do (falso) consenso; 3.1 O populismo de direita; 3.2 O Populismo de Esquerda; 4. Considerações Finais.

Introdução A comunicação de massa, na atualidade, vem ganhando novas faces até então desconhecidas da sociedade contemporânea. Trata-se de reavaliar os impactos da sociedade da informação, num sistema guiado por satélites que transformou o mundo em uma arena global. Todo processo de trocas de informação centrou-se na instantaneidade e numa espiral crescente com volumes incomensuráveis. Um excesso de informação e quase nenhum conhecimento crítico. Tudo se descentraliza e o fenômeno da comunicação em rede projeta novas condições históricas, de produtividade, de concorrência entre mercados e pessoas e, logicamente, na política. São as novas maneiras em que a mídia atualmente se relaciona com a opinião pública, por meio de mídias alternativas. O jornalismo tradicional perde frente com o surgimento do novo. A Pós-verdade é o que marcará o panorama político futuro, também do social. Tudo é fragmentário e efêmero. As redes sociais desempenham hoje um fenômeno que põe em causa um sentimento de indiferença com a verdade e a realidade dos fatos. Se estes existem ou não, se procedentes ou improcedentes, pouco importa. Para o Dicionário Oxford, a expressão “Pós-Verdade” foi a palavra do ano de 2016. A ideia reitora é influenciar os grupos com apelos à emoção e crenças pessoais. A ideia da fraternidade, do respeito ao outro, recrudesce como

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se volvêssemos ao Leviatã hobbesiano do estado de natureza – homini lupus homini – isto porque o outro é sempre um potencial inimigo. Umas das reflexões contemporâneas importantes para se compreender o retrocesso nas relações humanas está explicitado na obra de Sérgio Abranches.2 Dessa perspectiva, realça o sociólogo mineiro, que é indeclinável reconhecer que se vive tempos em mutação, difíceis, permeados por desencanto e desespero. Um mundo em transe, líquido, ao se referir ao sociólogo Zigmunt Bauman. Muitas distopias e poucas utopias. O próprio Bauman proclama que este século é muito diferente do século XX.3 No interregno não somos uma coisa nem outra. No estado de interlúdio, as formas como aprendemos a lidar com os desafios da realidade não funcionam mais. As instituições de ação coletiva, nosso sistema político, nosso sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as relações com outras pessoas, todas essas formas aprendidas de sobrevivência no mundo não funcionam mais. Tudo é líquido, vai e vem... Sob certo sentido, a visão de Bauman reflete a questão posta acerca das democracias contemporâneas diante das Cartas Internacionais de Direitos Humanos, e seu esfacelamento nas ordens interna e internacionais. Aborda-se no tópico seguinte, a possível mudança de paradigma nas democracias que podem afetar a plataforma emancipatória dos direitos humanos. A este contexto, uma discussão que se apresenta preocupante é o fenômeno da Pós-Verdade. Faz-se necessário reforçar a exposição de tal atitude abjeta à luz do direito, como convém a tudo de que se traduza fundamental ser combatido enquanto ataque as fundações da democracia, sustentando-as hígidas neste caminho em que se desdobram rumo ao seu aperfeiçoamento, resultando em ações diretas em favor dos direitos humanos. O aspecto onde principalmente estende seus braços nefastos é o da política, criando por meio das redes sociais informações manipuladas, causando um impacto sobremaneira negativo nas decisões democráticas da sociedade organizada.

1. A democracia e sua política de indecisão ou indeterminação Em face deste fenômeno, de onde partem interferências importantes em eleições, a exemplo do que ocorrera durante o recente pleito americano, influenciando-as mediante informações depreciativas, denegrindo candidatos enquanto outros sejam alvo de seu enaltecimento sem mérito, maquiando opiniões, interpretando situações, levando, por fim, a opinião pública a recebê-las por ver2

ABRANCHES, Sérgio. Era do imprevisto: a grande transição do século XXI. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

3 BAUMAN, Zigmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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dades incontestes. Surge, portanto, o questionamento em relação ao real quadro político, sobretudo no plano internacional por toda influência que tenham as grandes nações em relação à economia mundial, se as democracias contemporâneas estejam alinhadas à plataforma emancipatória dos direitos humanos. A questão posta pretende recobrar as promessas propostas pelo Estado Social ao aspirar à emancipação da sociedade liberal, pautada por uma garantia de qualidade de vida, em especial pela transparência das informações. De outra feita, demonstrar como o Estado Social se desmonta diante de tal fenômeno fake news, elevando governos que não tenham compromisso com a sociedade, mas tão somente com um ideal espúrio de poder, ocasionando, não raro, desempregos (no aspecto econômico), violência urbana (no aspecto social), e crise de representação (no plano político), resultando, como sempre fazemos questão de ressaltar em nossos pronunciamentos, na geração de efeitos deletérios para a dignidade humana. Em suas origens, o Estado Social nasce com uma nova vocação. Para Silva, as questões sociais e as crises cíclicas do capitalismo do final do século XIX e início do século XX, colocaram novos rumos ao poder político, na seara econômica e social. O desafio imposto pela realidade transitou entre a criação de legislação e instituições que permitiam pôr termo à miséria operária, bem como assegurar a sobrevivência dos cidadãos com um mínimo de qualidade de vida. Jungindo o binômio legalidade e democracia, um novo pacto social se firma, colimado pelo status positivus de natureza prestacional, no qual o Estado funciona como uma sociedade seguradora do bem-estar dos indivíduos.4 Como mantê-lo integro, em face de um fenômeno como o fake news, sem que se perceba a corrosão avançar com efeitos nefastos? Como mantes a ordem livre, democrática, social e de direito? Como fazê-lo sem o “sujeito de direito com independência perante o Estado, exigindo a observância das leis que lhe dizem respeito”?5 A busca pela realização efetiva das promessas de liberdade e igualdade para todos projetou uma ação política que agasalhava os principais riscos sociais, com a garantia de segurança generalizada. Ost, ao descrever essa pauta, apregoa que nunca a solidariedade voluntarista foi levada tão longe, guiada pela confiança no futuro parametrizado pela ciência, regido pela lei e garantido pelo contrato de segurança mútua.6 4 SILVA, Vasco M. P. da. Em busca do acto administrativo perdido. (Coleção Teses). Coimbra: Almedina Ed., 2003. p. 73. 5 Ibidem, p. 78. 6 OST, François. O tempo do direito. Tradução Élcio Fernandes. Bauru, São Paulo: Edusc, 2005, p. 321 ss.

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Contudo, a emergência das transformações guiadas pelo processo de globalização econômica, leva à crise do modelo do Estado assegurador para uma sociedade de risco. Transmuda-se da solidariedade para um status de risco, frustrando o ideário protetivo e expondo a sociedade a um novo processo de pauperização. O novo contexto é o enfrentamento de um novo paradigma de modernidade ocidental globalizado, com efeitos perversos advindos da ambivalência e imprevisibilidade, próprias da sociedade de risco, contudo, agora mais ainda, mediante a prática das fábricas de trolls. Pós-Verdade ou Post-truth, conceito criado pelo dicionário Oxford, encontra seu significado em adjetivo que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Na verdade, um culto à mentira, indiferente à verdade dos fatos, tornando virais, notícias de cunho falacioso por intermédio dos meios de comunicação, tornando a opinião pública alvo de distorções que traduzem a contramão da essência de uma sociedade democrática. Não raro, dessa forma, governos são alçados ao poder, contudo, ato contínuo ao demonstrarem ao que vieram, fazem de si mesmos, alvo da ilegitimidade. Das aspirações inclusivas do Estado Social, pautado pelo enfrentamento da pauperização material, carência e fome, hoje enfrenta-se a ameaça e destruição das bases naturais da vida. O que até pouco tempo era inofensivo, acaba por se tornar em novas ameaças à dignidade, sobretudo bioética da vida humana. Um quadro ameaçador das fórmulas químicas e seus decorrentes enquadram-se naquilo que Beck propõe sobre a modernidade tardia, na qual a produção de riqueza é acompanhada pela produção social de riscos. Esse fenômeno é tratado pelo autor como uma travessia da lógica da distribuição de riqueza na sociedade da escassez para a lógica da distribuição de riscos na modernidade tardia.7 Como compreender as rupturas provocadas por essas atitudes? Não bastasse o ponto nodal do risco estar na sua incerteza diante do desconhecido e do imprevisível, contudo mesmo o risco econômico ser proveniente de um processo de industrialização que, em sentido crescente, procura substituir atividades que, até então, eram consideradas vantajosas ao capital, vê-se de todo lado a inserção da Pós-Verdade colapsando a opinião verdadeira, abalizada, em um meio que se fundamenta em uma nova narrativa. O diferencial é que nos riscos estamos perante a distribuição de “males” e não de bens materiais, de educação ou de propriedade. A questão que se coloca, a partir das referências coligidas, é o real impacto dos riscos no novo contexto. A ideia é impactar, mediante ações que de7 Ibid. p. 23.

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notem mais emoção em detrimento da razão. As plataformas digitais, realidade no mundo contemporâneo, combinam expressões pessoais com identidades de grupos. Não é trabalhado um consenso que favoreça a sociedade como um todo, em um projeto de reorganização dos aspectos ainda por serem construídos em seu benefício, avançando à solidificação dos esteios democráticos que sustentam e asseguram a garantia do cumprimento aos direitos humanos. As diversas formas de desinformação projetam inseguranças para aqueles que empregam capital e trabalho na economia, como ainda, apresentam expressivo quadro à insegurança jurídica. Pode-se afirmar que a bancarrota das cláusulas assecuratórias da dignidade humana está aí demonstrada. As mediações perpassam crenças grupais, segregando minorais, praticando ao que se nomeia por aporofobia, qual seja a aversão ao pobre, demonstrando as efemérides de uma nova patologia social. O indivíduo, assim, é colocado, sem que tome real consciência desse processo, isolado em um processo de exclusão. Rompe-se o parâmetro de classe homogênea com a mitigação da representação coletiva, elemento fundamental de organização e reivindicação. A individuação tem consequências aos mais vulneráveis, especialmente desempregados, com rupturas significativas às minorias que vão se tornando maiorias, sem que se possa identificar uma categoria social estável, capaz de representação e proteção abstrata e geral, pela via do direito.8 Frontalmente, o que se percebe, é uma mudança sistêmica da política, porquanto se valha de tais narrativas que afrontam a veracidade dos fatos. A tomada de decisões, numa visão tradicional, era feita a partir da democracia representativa, fundada na formação de consensos com os governados. Com a sociedade industrial dá-se uma cisão na qual apenas uma parte das questões decisórias estarão submetidas ao sistema político. Outra parte ficará a cargo da “liberdade de investimento das empresas e à liberdade de pesquisa”.9 Por consequência, essa cisão acabará por polarizar a narrativa política em dois polos que se interpenetram-se: a produção da democracia político-parlamentar e a produção de uma transformação apolítica, e não democrática, ambas sob uma pretensa legitimação do “progresso” e da “racionalização”. Estabelece-se, nesse sentido, um confronto entre a modernidade e antimodernidade: de um lado, as instituições do sistema político – parlamento, governo, partidos políticos – atuando sob a ótica da economia de mercado. O esmaecimento da atividade parlamentar é notado em face do seu afastamento dos fundamentos basilares da democracia, naquilo que lhe é essencial: discus8 Ibidem, p. 321. 9 BECK, 2011, p. 227. O que se faz é inteiramente distinto: afirma-se a posição no mercado, utilizam-se as regras da obtenção do lucro econômico, promovem-se questionamentos econômicos e técnicos e sovacam-se assim, sempre mais fundo, as circunstâncias da convivência social.

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são, escrutínio e consentimento. É perfeita a ideia de Beck quando pontua uma precária inversão entre a política e a não política. De uma banda, a política perde margem de manobra por sua inépcia em face das demandas do Estado Social e, por outro lado, a não política se convolará em uma nova cultura política, pautada pelas iniciativas da sociedade civil e movimentos sociais.10 A União Europeia, por meio da coalisão de representantes de redes sociais, meios de comunicação e, também a sociedade civil, busca reconhecer os limites da proliferação das notícias falaciosas que passaram a determinar os rumos do jogo político, e para tanto lança força-tarefa para combater “fake news”, afirma a matéria do portal alemão Deutsche Welle. 11 Curioso observar, no contexto do jogo político (político e não político), a perda de credibilidade da democracia parlamentar. O parlamento passa atuar menos com a opinião dos parlamentares e, mais, com a decisão de lideranças de bancadas, pressionadas por interesses privados contrapostos aos interesses da burocracia estatal. A transferência de competências parlamentares para bancadas e lideranças é um reflexo da atuação de grupos privados ligados à estrutura dominante e, por óbvio, do próprio Estado. Nesse diapasão, a nova cultura política (produto da não política) tem sede nos novos movimentos sociais que não se veem representados nas estruturas partidárias, convencionalmente organizadas. Habermas explica que a reconfiguração da cena política, a partir da metade dos anos 70, projeta a ocorrência do que denominou nova intransparência ou ininteligilidade, com o esgotamento da utopia que pautou o Estado Social.12 Perdeu-se, nesse contexto, a capacidade de abrir possibilidades futuras à vida coletivamente melhor e menos ameaçada. Observa-se, que na Alemanha, os movimentos sociais, em geral compostos de minorias variadas, se juntam em uma “aliança antiprodutivista”: velhos e jovens, mulheres e desempregados, homossexuais e deficientes, crentes e ateus. Dialogando com a perspectiva de Ulrich Beck, a nova forma de narrativa política dos movimentos sociais está umbilicalmente ligada à “socialização do risco”, já que 10 BECK, op. cit. p. 275 et seq. 11 DEUTSCHE WELLE. UE lança força-tarefa para combater “fake news”. 15/01/18. Disponível em: < http://www.dw.com/pt-br/ue-lan%C3%A7a-for%C3%A7a-tarefa-para-combater-fakenews/a-42157731>. Acesso em: 14 fev 2018. 12 HABERMAS, Jürgen. Após a II Guerra Mundial, todos os partidos dirigentes alcançaram maioria, de forma mais ou menos acentuada, sob a insígnia dos objetivos sócio-estatais. Entretanto, desde a metade dos anos 70 os limites do projeto do Estado social ficam evidentes, sem que até agora uma alternativa clara seja reconhecível”. A nova intransparência. A crise do estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Tradução Carlos A. M. Novaes. p.106. Disponível em: <http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Habermas,%20J%C3%BCrgen/A%20 nova%20intranspar%C3%AAncia%20(CEBRAP%20-%20Carlos%20Novaes)%20A%20crise%20 de%20bem%20estar%20social%20e%20o%20esgotamento%20das%20energias%20utopicas.pdf> Acesso em: 05 dez. 2017.

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a ideia de um progresso produtivo traz implícita o compartilhamento equânime da carga de problemas entre o Estado e a economia.13 Por todo esse contexto, da política que não é mais política e, da não política que se converteu em uma nova política, o elemento de fundo é, muito possivelmente, o desencantamento e o desmonte do Estado. O possível esgotamento do Estado Social, fundado na utopia de uma sociedade do trabalho, perde para uma sociedade modelada pela ausência de identidade, ou melhor, na fórmula de um individualismo egóico, no qual a nova política ainda não demonstrou seus ganhos efetivos na construção e manutenção das conquistas dos direitos humanos. Mais distopias, nenhuma utopia.

2.O paradoxo da democracia fundada na deslegitimação A concepção habermasiana da “nova intransparência” ou ininteligibilidade contém uma convincente visão de opacidade e incerteza no derredor da democracia do século XXI. Afastando-se do conceito de legitimação democrática, de que cuidam os manuais, a política contemporânea tem mais de simbolismo do que uma instituição apta para promover a representação e o bem-estar da sociedade.14 É bem verdade que, na versão formal de poder político atual, existe uma ambivalência da atuação do Estado: um público e o cidadão na porta da frente, e um público de clientes na porta dos fundos.15 Em outro sentido, infere-se um comportamento promíscuo do sistema político, no qual pessoas e partidos atuam como sócios, visando interesses não republicanos. Desde já se levanta a questão: que legitimação é essa, formada por grupos de pressão em associação com o Estado, sempre parciais, que não representam a totalidade da sociedade? 13 Ibid., p. 111. Um terceiro tipo de reação se desenha na dissidência dos críticos do crescimento, que têm uma atitude ambivalente diante do Estado social. Assim, por exemplo, nos novos movimentos sociais da República Federal, minorias de variadas proveniências se juntam em uma “aliança antiprodutivista”: velhos e jovens, mulheres e desempregados, homossexuais e deficientes, crentes e ateus. 14 HABERMAS, op. cit., p. 112/113. Segundo essa versão oficial, o poder político resulta da formação pública da vontade, flui via legislação e administração, por assim dizer de permeio ao aparelho estatal, e regressa a um público bifronte que se apresenta na porta da frente do Estado como público de cidadãos e na porta dos fundos como público de clientes. É mais ou menos assim que, de sua perspectiva, os cidadãos e os clientes da administração pública veem o curso circular do poder político”. 15 HABERMAS, p.113. Segundo essa versão não oficial que nos é apresentada recorrentemente pela teoria dos sistemas, os cidadãos e os clientes aparecem como sócios do sistema político. Sob essa descrição altera-se sobretudo o sentido do processo de legitimação. Grupos de interesse e partidos utilizam seu poder organizativo a fim de alcançarem anuência e lealdade para seus objetivos de organização.

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Como já dizíamos alhures, a explicação parece intuitiva quando se avalia a captura do poder por interesses setoriais da sociedade. Em outras palavras, o processo de deslegitimação do poder parece se aninhar na subpolítica submersa e invisível, a que Habermas fez referência como uma “nova intransparência” ou ininteligibidade. 16 A compreensão de todo esse processo de esgarçamento político, que coloca o cidadão como cliente na porta dos fundos do Estado, aponta para a releitura da democracia. Para Cláudio Lefort, a democracia é o regime que “se institui e se mantém na dissolução das marcas da certeza”. Sua trajetória histórica, em diferentes circunstâncias, contém a marca da indecisão.17 Milita nesse contexto, um duelo que é histórico, polarizado entre o totalitarismo e a democracia. Quando nos deparamos com o entrelaçamento da rede com o ser, no plano da comunicação a Pós-Verdade cria uma significativa polarização, uma espécie de esquizofrenia entre a função e o significado. De um lado, por positivo, a rede se mostra como uma nova forma de produção de conhecimento, coibindo o autoritarismo nos moldes do magister dixt e, por fim, levam às pessoas à perda do medo de expressar suas opiniões. Por um aspecto negativo, mediante apócrifo significado, as opiniões passam a ter um funda de verdade, assim presumidas. Há como que, um aspecto de curadoria sobre todos os assuntos. Todos passam a ser experts nos mais variados assuntos. Nesse timbre, os setores interessados na divulgação do fake news, encontra terreno fértil, sobretudo na política, ameaçando assim, as bases da sociedade democrática e os direitos humanos, porquanto exponham à população ao erro. Extrai-se dessa espécie de totalitarismo, se assim nos permitem chamar, uma oposição tenaz à pretensão democrática de representar o povo em sua totalidade. É frequente a asserção com que os partidos políticos se nutrem dos conflitos. Entretanto a saída de consenso ou de negociação se faz de forma parcial. Convencionalmente as democracias utilizam da regra das maiorias e, portanto, são soluções parciais. A seu turno, a democracia, numa dimensão ideal, proclama e se organiza com promessas de liberdades amplas, projetadas para a resolução dos interesses. Porém no plano de sua exequibilidade, enfrenta desafios de diferentes ordens, quer no âmbito da governança, quer no âmbito tipicamente estatal.

16 Ibidem. 17 OST, op. cit, p. 331 e seq.

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Uma dessas faces está explicitada por Bobbio,18 acerca das promessas não cumpridas. É inegável que um grave problema dessa concepção de regime e organização política, na atualidade, é a sobrevivência de um poder invisível que se confronta com o poder visível. O dito poder invisível consiste no retorno da opacidade, da administração do segredo, que os construtores da democracia propuseram extirpar do âmbito do poder público.19 Na lúcida explicação de Bobbio, a transparência, o dever de visibilidade, cognoscibilidade e seus derivados teóricos juspublicistas são pilares que sustentam o edifício republicano. Se o exercício do poder nas democracias decorre da soberania do povo, a este compete controlar e supervisionar os atos praticados em seu nome.20 No Brasil, a Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no país, assinala em seu artigo segundo a disciplina do uso da internet ter como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como, os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais. Tem por princípio, a garantia da liberdade de expressão, a comunicação e manifestação de pensamento nos termos da Constituição Federal, a proteção da privacidade, na forma da lei.21 Tomando de empréstimo as medidas que têm sido adotadas no mundo, a exemplo da iniciativa do presidente Donald Trump em anunciar a investigação da influência Russa nas últimas eleições americanas, recentemente o Centro Internet Segura (CIS), em Portugal, que se levanta como instrumento de campanha em território nacional, a alertar os jovens sobre as “fake news”, orienta a atenção, sobretudo à origem da notícia publicada online, buscando o apoio de pesquisas sobre o assunto. Como bem anuncia o portal Público, “estratégias como estas ajudam qualquer utilizador a navegar pelo mundo das notícias falsas”.

18 Idem, 2000, p.19. Ao abordar as transformações da democracia o autor cita C.B. Macphferson que resume em pelo menos, quatro fases, o desenvolvimento da democracia moderna de origens oitocentistas. Em conferência proferida em Locarno, Bobbio analisa as promessas não cumpridas pela democracia. O futuro da democracia. 19 É lugar comum na Teoria Geral do Estado o conceito de publicidade, enquanto âncora do Estado democrático, relativamente ao ius publicum ou à coisa pública, sobre a qual se assenta o princípio republicano. 20 Idem, 2004, p. 104. Na linguagem de Bobbio este fundamento pode ser remetido ao pensamento iluminista que contrapõem o poder visível (ou das luzes), ao poder invisível (das trevas), do obscurantismo típico do ancien régime. Precursor da publicidade, extrai-se da filosofia kantiana uma das referências primevas. Afirma Kant, em sua obra Paz Perpétua, que “Todas as ações relativas ao direito de outros homens, cuja máxima não é suscetível de se tornar públicas, são injustas”. 21 BRASIL. Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 14 fev 2018.

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Assim se pronunciou a coordenadora do CIS, Sofia Rasgado: “se começarmos todos a alimentar este espaço com notícias falsas às tantas não sabemos bem qual é que é o Norte e qual é que é o Sul”. Eis a preocupação em orientar os integrantes da futura sociedade portuguesa, para que venham a distinguir a verdade da notícia criada com intuitos de mau influenciar a opinião, “contando com a colaboração de bibliotecas escolares e associações de pais”. 22 O que são as fake news senão informações falseadas, no mínimo, a ser dizer, distorcidas e colocadas nas redes sociais a fim de influenciar o leitor ao erro. É mais um dos instrumentos na guerra da informação, focado especialmente a desenhar o mundo político como ele não é na realidade. Recentemente, também no Brasil tem sido matéria de capa de diversos meios de comunicação, preocupados em preservar a lisura da informação, em especial pela agressão com que têm manipulado os debates políticos e a realidade dos candidatos. A que se prestaria tal informação, senão a estreitar laços políticos bastardos. Qual o campo de atuação? A rede social, hoje espalhada por todos os cantos do planeta como a plataforma que leva a notícia aos leitores de todos os povos e etnias. A polarização ideológica é inquestionável. Os resultados eleitorais, inimagináveis. De toda sorte, traduzindo a irrealidade da informação. Convenhamos, tal atitudes estão longe de se chamarem jornalismo. É um produto adulterado das redes sociais. Suas intenções, não outras que senão a mobilização de grupos antagônicos, seja de direita, seja de esquerda, como tem se apresentado na atualidade, visando o antigo foco das vantagens econômicas ou políticas. A Pós-Verdade, em nossos tempos, para a comunicação, é uma mentira. Não que ela tenha sido inventada nestas gerações, contudo, inquestionável é o seu volume e proporção a que tomaram, remontando a uma escala indecorosa. Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) explica que mesmo o termo sendo recente, “as notícias falsas sempre existiram no mundo, especialmente em épocas de eleições”, no entanto, conclui que a diferença reside em “um domínio dos veículos com viés ideológicos que contam com uma espécie de exército humano de replicagem de conteúdos”. Assim, afirma Malini, “a opinião vem ganhando mais terreno que a reportagem”.23 Na mesma linha explicitada por Malini, também o filósofo Pablo Ortellado, enquanto afirma não bastasse a notícia sugerir tenha sido realizada por 22 SILVA, Samuel. fake news: jovens vão ser ensinados a distinguir “o Norte e o Sul”. Portal Público. Disponível em: <https://www.publico.pt/2018/02/06/sociedade/noticia/fake-news-jovensvao-ser-ensinados-a-distinguir-o-norte-e-o-sul-1802097>. Acesso em 14 fev 2018. 23 AVENDAÑO, Tom. BETIM, Felipe. ‘fake news’: a guerra informativa que já contamina as eleições no Brasil. Portal El País. São Paulo. 11/02/18. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/ brasil/2018/02/09/politica/1518209427_170599.html>. Acesso em: 14 fev 2018.

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meio de apuração, ela é falsa pela maneira maliciosa como é veiculada. E resume ainda Ortellado, afirmando que “As fake news não são a doença, e sim o sintoma. A doença é a polarização política. E em época de eleição, com dinheiro jogado nessa polarização, a tendência é piorar”. 24 O que se vê é a afronta a tais valores, levando-nos à lição do mundo líquido a que se pronunciou Balman, em especial ao que concerne ao desrespeito aos valores que fundamentam a sociedade democrática. De todo, contudo, resta-nos igualmente a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, também nos termos da lei. Cumpre-nos salientar que os princípios expressos na referida lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria, ou mesmo nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. De se atentar, por outro lado, que a democracia liberal de hoje, fez do poder invisível um ninho onde se aloja o poder submerso, oculto e pernicioso. A cultura dos escândalos e da corrupção sistêmica e endêmica passou a ocupar as manchetes dos meios de comunicação. Todos os tipos penais inseridos no capítulo dos crimes contra a Administração Pública e seus correlatos são praticados sob as vestes do segredo, da ocultação, da dissimulação por diferentes agentes políticos. Um velho brocardo latino proclama que “corruptio optimi pessima est”, para expressar que a corrupção dos maiores, dos agentes do Estado, é a pior que existe. Resta claro que o paradoxo democrático não passaria imune a uma nova versão do pensamento jusfilosófico. Um sentimento de ceticismo e desencantamento se apresenta diante da fragilização e deslegitimação do núcleo estrutural do modelo liberal--democrático. A compreensão dessas incongruências ou ininteligibilidade tem sido produto de intensos debates na doutrina social e constitucionalista. O ponto de fricção pode ser vislumbrado a partir de questionamentos sobre a visão da democracia da liberal-democracia, em parte, como já mencionado, pelo esgotamento do Estado Social, enquanto um modelo que se enfraquece, face às diversas conjunturas da força globalizatória e suas consequências sociais e políticas. Um dos ângulos problematizados é a proposição de um novo paradigma de democracia, nominado por essa corrente de “democracia radical”. O pano de fundo do modelo agonístico, mais adiante explicado, toma como ponto de partida as linhas filosóficas do desconstrutivismo, procedente da Escola de Frankfurt. Desse plano, esta reflexão traz sérias dúvidas acerca da legitimidade das radicalizações. Para Dahl, a democracia é um ideal nunca alcançável e que vai conhecendo diferentes facetas ao longo de um processo, sempre aberto e que 24 Ibidem. Portal El País, 11/02/18.

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decorre a velocidades variáveis.25 No sentido pedagógico, e para compreensão maior dos pontos em debate, sintetiza-se a cisão estrutural entre a democracia liberal contemporânea e as novas soluções advindas do desconstutivismo pragmático, assim resumidas: Seja pela versão conservadora, seja pela vertente desconstrutivista, deriva o populismo e um nasce novo paradigma de democracia, a qual denomina-se “radical”. Pelos dois ângulos da questão relativa à radicalização da política se desemboca no populismo contemporâneo. Em ambas posições, o discurso populista tem assento em perspectivas distintas dos partidos e governos da democracia, transitando a narrativa de visões ligadas à extrema direita (conversadora) até à extrema esquerda (de tendência socialista ou pós-socialista), adiante detalhados. O populismo é uma visão de natureza radical de associações políticas. No aspecto geral, as democracias com o passar do tempo foram perdendo a capacidade de gerar consensos, os quais se tornaram precários e discutíveis.26 Tornaram-se cada vez mais evidentes, as crises de confiança da sociedade que assiste à polarização crescente na política. Ilustrativamente, em uma grande maioria de situações, o jogo político apresenta um contexto marcado, de um lado pela exacerbação dos conflitos ou, em sentido oposto, a sua ocultação. Em ambas as hipóteses, no entendimento de Ost, o antagonismo se faz problemático para a democracia.27 A exacerbação dos conflitos é uma decorrência da ausência de acordo sobre as regras do jogo, transformando o adversário em “inimigo”. A polarização torna-se inevitável, abrindo espaços para a radicalização de posições extremadas como soe acontecer nos atuais movimentos populistas que adiante serão abordados. Já a ocultação dos conflitos, fundadas em divergências de setores interessados na sua camuflagem, mascaradas de consensos de fachada, apenas adia a crise. Quando tornadas públicas, especialmente em função dos grandes déficits financeiros nos Estados, impõem um forte sentimento de revanche, manifestado em focos de violência que, indubitavelmente, também levarão ao acirramento de posições extremadas de que nos dão conta os populismos contemporâneos de extremos, tanto à direita quanto à esquerda. O centro parece esvaziado, porque marcadamente inoperante.

25 DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001. p. 47. 26 HESPANHA, António M. O caleidoscópio do direito. O direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007. p. 314 et seq. 27 Ibidem.

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3. Populismo: a radicalização e a problematização do (falso) consenso A explicar de certa forma toda essa ânsia em manipular as consciências, levando os leitores a opiniões eivadas de erro, a radicalização do falso consenso. Como recepcionar no âmbito da política o populismo de direta, pautado na exaltação nacionalista, às vezes racista e, muitas vezes xenófoba com seus movimentos contrários à migração? Na mesma linha, como admitir o populismo de esquerda, ao apregoar a radicalização e a hegemonia popular insculpida na dicotomia “nós” e “eles”? A guerra está declarada e em curso, tendo a mídia por plataforma segura de alcançar abates. Nesse contexto, as crenças pessoais dando a tônica dos fatos, trazendo mediante o fenômeno da Pós-Verdade, uma desorganização da opinião pública.

3.1 O populismo de direita Sua nota mais marcante é o apelo extremado ao nacionalismo. Não é separatista ou regionalista. Na Europa, os partidos de extrema direita se reinventaram como populistas da tradição nacional, sendo perceptível a habilidade em que se transformaram em defensores da sociedade liberal, rendendo um aumento considerável de apoiadores. A política populista de extrema direita adota o discurso daqueles que se veem atingidos pelos efeitos da desindustrialização, desemprego em razão do crash falimentar em cadeia, e outras consequências do neoliberalismo repressivo.28 Para os partidos políticos esse descontentamento é a razão específica da recusa do “outro”. Na ótica de Pinto, a União Europeia, ao vivenciar a crise do globalismo, necessitava encontrar um bode expiatório para o desemprego local e para os problemas de insegurança, produto do terror. Decorre desse quadro de instabilidades os apelos ao restabelecimento de fronteiras e o fim da liberdade de circulação, mesmo intracomunitária. Exemplos mais marcantes são os comportamentos pautados pela xenofobia, que a islamofobia desencadeou no continente. O enfrentamento dessas anomalias se deu a partir do discurso nacionalista, enquanto saída para a manutenção da identidade.29 É nada menos que a banalização da verdade se esgueirando por entre os discursos, convencendo leitores a aceitarem tais razões como verdade, em detrimento da realidade dos fatos. Tanto no populismo de direita, quanto no de esquerda. A credibilidade passa a se medir pelas opiniões pessoais, não mais pelo jornalismo sério que retrate a verdade.

28 PINTO, José F. Populismo e democracia. Dinâmicas populistas na União Europeia. Lisboa: Sílabo Ed, 2017, p. 85 et seq. 29 Ibidem.

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Uma compreensão mais ampliada dos populismos, na atualidade, pode ser esclarecida a partir da leitura de Pinto, ao buscar os respectivos conteúdos programáticos. Em sua análise, a ideologia de base do populismo de direita se explica, como já anotado neste texto, a partir da crise financeira a exigir uma política de austeridade. Assim é que o alto custo social impõe uma solidariedade reduzida e um individualismo exacerbado, de objetivos egoístas.30 Essas situações promovem a desconfiança dos cidadãos sobre a elite política, acusada de se servir de vantagens econômicas. Desse prisma, tanto a visão de esquerda quanto à de direita irão coexistir em um mesmo país, todos buscando uma forma de hegemonia que de forma direta invalidam e desconhecem o “outro”. Preocupante porque a defesa de interesses que tornam a vida social mais digna, com emprego e proteção, está rompendo com parâmetros de dignidade humana inaceitáveis.

3.2 O populismo de esquerda Mouffe assevera que o modelo democrático atual é de baixo consenso, exprimindo uma tendência generalizada, à qual denomina de “democracia de mercado e pensamento único”.31 Em abono ao seu pensamento aduz que os liberais, como Rawls e Habermas, apostam em teorias como da “razão pública livre” ou “consensos racionais”, sem a percepção de que a política é intrinsicamente conflitual, porque o conflito é uma constante na vida em sociedade. A base dessa perspectiva reside na presença inafastável do antagonismo, porquanto constitui-se em sua dimensão ontológica da política. Abre-se, então, na perspectiva apontada, uma visão na qual os inimigos devem ser tratados como adversários, a fim de construir as bases de uma democracia radical e pluralista. A essa concepção de democracia, Mouffe denominou de “modelo agonístico da democracia”.32 Na sua essência, esse modelo refuta a democracia liberal ou deliberativa proposta por Rawls e Habermas, cujas pretensões seriam tratar os antagonismos como uma categoria que possa ser condensada no horizonte da política. Para Mouffe, o antagonismo não é mero momento político, mas a própria lógica de constituição de qualquer relação política e social. Ficou no passado a 30 PINTO, op. cit., p. 157 et seq. No ano 2000, na Polónia, o populismo era de 0,1% e hoje é de 46,4%. Na Hungria, era de 9,6% e hoje é 66,4%, adiantou o investigador, considerando que “o que distanciou o eleito do eleitor” foi “o mau desempenho dos eleitos”, dos partidos tradicionais. 31 MOUFFE, Chantal. Le politique et ses enjeux. Pour une démocratie plurielle. Paris: La Découverte, 1994, p. 24. 32 MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. Dossiê democracias e autoritarismos. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782005000200 003>. Acesso em: 16 nov. 2017.

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compreensão da política fundada na “liberdade dos antigos versus a liberdade dos modernos”. Não mais existe uma necessária correlação entre as duas tradições, apenas e potencialmente, uma imbricação histórica contingente.33 A vinculação de Mouffe à Schmitt fica evidente quando a autora procura construir um diagnóstico político da contemporaneidade. Os conflitos mundiais do Pós-Guerra, no início do século XX, transformaram os partidos da socialdemocracia em organizações políticas de centro, tendentes à aniquilação das forças opostas em uma pseudoneutralidade. Vê-se na política, a busca da criação de uma unidade na diversidade dos conflitos. Fundamenta-se a permanente existência de “nós” em oposição a “eles”. 34

4. Considerações finais O caráter ambivalente da democracia e da política está demonstrado na cena do século XXI. O aspecto geral distópico remonta à Babel, numa versão hobbesiana do homo lupus homini. Quem poderia dizer há alguns anos que uma simples nota na mídia conseguisse mudar os rumos da verdade, tendo um forte peso pela ideologia preconizada pela veiculação midiática? Sem tomar partido do esgarçamento estrutural do paradoxo político, o que se visualiza é uma perda qualitativa da base da terceira dimensão dos direitos humanos, fundada no espírito de fraternidade. Erode toda concepção de bem-servir, de compreender o “outro”, enquanto um “ser” detentor de direito, como ensina Levinas, no “direito do outro homem”. Não há como pensar em uma totalidade com singularidades específicas. O homem é necessariamente desigual, diferente em sua unicidade. Daí a condição básica de liberdade fundada no conceito de justiça.35 Uma referência importante em Levinas é a sua explicação sobre o encontro da libertação, que não mais se circunscreve às representações consoladoras de Deus, antes, porém, num sentido político. No mesmo sentido é a doutrina de Bonavides quando explica que a compreensão das desigualdades e vulnerabilidades implica adotar a fraternidade como um parâmetro essencial na sociedade 33

LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Ed. Verso, 1985. “Por um lado, temos a tradição liberal constituída pelo império da lei, a defesa dos direitos humanos e o respeito à liberdade individual; por outro, a tradição democrática, cujas ideias principais são as de igualdade, identidade entre governantes e governados e soberania popular. Não existe uma relação necessária entre estas duas tradições distintas, somente uma imbricação histórica contingente.

34 Idem. Por um modelo agonístico. p. 20. 35 Ibidem.

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dos homens. O direito à fraternidade tem por destinatário o gênero humano, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo, em termos de sua existencialidade concreta.36 E como poderia ainda firmar-se, questionamos, se pela frente e por todos os lados há a relativização da verdade, banalizando-a, lançando valores ao chão, tudo em face de um discurso emocional que de pronto descarte a razão. A desconstrução da verdade não se vê apenas no campo da política, mas também no meio empresarial, lançando mão do veículo publicitário, de forma visivelmente sectária, com criminalizações ostensivas, e outras tantas atitudes contrárias à paz fraternal e à vida digna em sociedade. É extremamente oportuna a visão de Felipe Carvalho ao se referir à noção de “paz de portas fechadas”, em face do princípio da não-intervenção ou não-intromissão que modela as soberanias contemporâneas. Dessa perspectiva divide-se a humanidade em territórios de amigos, nacionais ou cidadãos, com exclusão da fruição de direitos àqueles que se situam à margem de suas fronteiras, ou seja, os “inimigos”.37 O que dirá dentro de seu próprio território. Do ângulo jus-filosófico a cisão entre homem e Estado não é algo recente. O pano de fundo da internacionalização dos direitos humanos nos remete a um passado histórico de triste lembrança. As duas últimas Grandes Guerras do século XX são suficientes para delimitar a visão de uma “paz de portas fechadas” ou uma “zona franca jurídica”. Como já afirmado anteriormente, o insulamento e empoderamento do Estado, de viés nacionalista e sectário, é remissivo à doutrina schimittiana; o holocausto alemão é testemunha histórica dessa doutrina. Isto porque, na visão de Smichtt, o “estado de exceção” opera em um espaço vazio, na anomia, cabendo ao soberano fazer e dizer sua própria lei.38 Não se pode perder de vista que todos os atos do Führer foram emanados do próprio Estado. Em oportuna nota, Bercovici afirma que o livro de Agamben mostra que os tempos atuais não são de normalidade, mas de consolidação do estado de exceção como paradigma de governo.39 O vazio jurídico, ou zona franca jurídica, ou a anomia, constituem-se referências da ruptura entre a lei natural clássica, os direitos naturais e os direitos humanos. Para Douzinas, a respeitabilidade dos direitos humanos está novamente em questão. 40 Há pairando no ar uma espécie de final melancólico dos direitos humanos. Se os direitos humanos viveram sua fase de triunfo, o final de sua história 36 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. 37 Ibidem. 38 AGAMBEN, ibidem. 39 DOUZINAS. Ibidem. 40 Ibidem.

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tem imbricação na mutação do direito natural. Este passou do status de defesa contra uma institucionalidade letárgica, para um âmbito de legitimação de alguns dos regimes e poderes escleróticos ou em degeneração. Da utopia, a humanidade caminha para uma retórica bufa e, consequentemente, distópica de desconstrução impiedosa da dignidade humana.

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Carlos Eduardo Nicoletti Camillo1

Não se pode aprender uma ciência sem saber do que se trata. Aldous Huxley2

Resumo: A cultura é o resultado da secular experiência humana e uma das formas de melhor compreendê-la é por meio do conhecimento humano. O conhecimento científico traduz inequívoca função social, na medida em que desempenha papel relevantíssimo na vida das pessoas. O século XX será certamente conhecido, num futuro próximo, como aquele em que se observou uma intensa evolução tecnológica da humanidade e, bem assim, dos primeiros passos éticos e principiológicos que deram origem à bioética: justiça, autonomia, beneficên1 Doutor em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Coordenador Geral do Curso de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie desde janeiro de 2016. Professor dos programas de Introdução ao Estudo de Direito, Biodireito e Teoria Geral do Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie desde agosto de 2002. Advogado militante em São Paulo desde fevereiro de 1992 2 ALDOUS HUXLEY, Admirável mundo novo, p. 40.

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Da formação do conhecimento científico à Biotecnologia – algumas considerações sobre as novas fronteiras da ciência e seus impactos jurídicos Carlos Eduardo Nicoletti Camillo

cia e não-maleficência, bem como da construção da biotecnologia, que sempre estará ligada à ideia de revolução. Fruto genuíno do conhecimento humano, a biotecnologia deverá ser temperada sob o viés econômico, dado que sua gênese está atrelada aos mais vultosos investimentos, ainda que tenha por escopo maior trazer a melhor utilidade e eficiência à humanidade, mas sem perder de vista o fundamento e base do sistema jurídico: a dignidade da pessoa humana, que deve ser temperada a partir da alteridade, para se concluir que o destinatário de toda a produção biotecnológica não é a indústria – mas o consumidor, o verdadeiro titular do direito fundamental à informação, se afigurando, enfim, como o protagonista maior da relação jurídica, para além do sistema. Palavras-chave: Conhecimento científico. Bioética. Sistema Jurídico. Biotecnologia. Alteridade. Dignidade da Pessoa Humana. Abstract: Culture is the result of secular human experience and one of the ways to better understand it is through human knowledge. Scientific knowledge translates unequivocal social function, in that it plays a very important role in people's lives. The twentieth century will certainly be known in the near future as the one in which an intense technological evolution of humanity was observed, as well as the ethical principles that gave rise to bioethics: justice, autonomy, beneficence and non-maleficence, as well as the construction of biotechnology, which will always be linked to the idea of revolution. ​​ Genuine fruit of human knowledge, biotechnology should be tempered under the economic bias, given that its genesis is tied to the most massive investments, even though it has the greater scope to bring the best utility and efficiency to mankind, but without losing sight of the basis of the legal system: the dignity of the human person, which must be tempered from otherness, in order to conclude that the recipient of all biotechnological production is not the industry - but the consumer, the true holder of the fundamental right to information, is appearing, finally, as the main protagonist of the legal relationship, beyond the system. Keywords: Scientific knowledge. Bioethics. Juridical system. Biotechnology. Alterity. Dignity of human person. Sumário: 1. Considerações iniciais sobre o conhecimento científico 2. Os paradigmas da construção do conhecimento científico na era da Bioética 3. Da bioética à biotecnologia 4. Sobre os impactos da biotecnologia Conclusões

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1. Considerações iniciais sobre o conhecimento científico A cultura é o signo mais representativo da espiritualidade humana, cuja projeção histórica, ao longo dos séculos, revela o seu aprimoramento, fruto de uma crescente e imprescindível experiência. É exatamente isso: a cultura não é uma dádiva ou um presente mas, ao revés, é resultado da experiência multimilenar da humanidade3, de maneira que a melhor forma para entender a sua verdadeira significação passa, necessariamente, pela ideia de que esta consiste no resultado de todo o conhecimento humano. O ser humano é parte integrante da natureza, embora com ela não se confunda: movido pela sobrevivência, ele age, interage e tenta transcender os limites nem sempre previsíveis que lhes são impostos pela natureza. Nessa interação com a natureza e, destarte, com os seus semelhantes, o ser humano é capaz de incorporar conhecimentos que são vividos e transmitidos há várias gerações. O conhecimento, por sua vez, pode ser constatado sob diferentes formatos. Pode, num primeiro momento, se reportar a um modelo de senso comum ou vulgar, abrangendo uma série de pensamentos que partilhamos e que têm o seu advento ora de maneira espontânea, ora adquiridos por meio da repetição de experiências e da prática. Para este modelo, que se afigura superficial e praticamente afeto ao domínio de ordem prática, é possível traduzi-lo como assistemático, pois a teia de informações de que se compõe é de natureza dispersa e nada estruturada. Inexiste, por assim dizer, qualquer preocupação na sua sistematização e ordenação, justamente porque é eminentemente passivo e não lhe é dado ser questionado, até porque não há preocupação engajada na busca das causas e fenômenos para o funcionamento das coisas. A linguagem de que se vale o senso comum é ordinária e frequentemente seus termos fomentam vagueza, imprecisão e obscuridade. De outro lado, existe o conhecimento científico, que abrange uma espécie de conhecimento sistematizado em rigorosas e objetivas afirmações com o propósito de procurar respostas sobre as mais diversas questões, sem perder de vista o viés lógico e racional. As afirmações do conhecimento científico são representativas por teorias estruturadas, que são exteriorizadas por meio de uma linguagem científica rigorosa cujo escopo não é outro senão a de se alcançar a precisão e a certeza de seus postulados. Essas afirmações não são imutáveis, mas permitem sejam testadas por meio de experiências. A sistematização do conhecimento científico revela um de seus atributos mais significativos: o emprego da metodologia que, antes de mais nada, lhe

3 MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, p. 220.

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Da formação do conhecimento científico à Biotecnologia – algumas considerações sobre as novas fronteiras da ciência e seus impactos jurídicos Carlos Eduardo Nicoletti Camillo

circunscreverá os caminhos para se alcançar as explicações e resultados das afirmações científicas. Aquele que produz a ciência – genuinamente o cientista – parte de observações e estudos, criando hipóteses que se cristalizam em verdadeiras leis. Enquanto o conhecimento científico pertence à chamada episteme (do grego, conhecimento fundamentado), pode-se dizer que o senso comum diz respeito à doxa (do grego, mera opinião). Se não há dúvidas de que o senso comum tem importante papel na construção das sociedades e manutenção dos costumes, é inegável, por sua vez, que o conhecimento científico traduz inequívoca função social, na medida que desempenha papel relevantíssimo na vida das pessoas, não apenas com a finalidade de explicar aquilo que o senso comum não consegue, mas para, principiologicamente, trazer melhorias para a humanidade.

2. Os paradigmas da construção do conhecimento científico na era da Bioética O século XX certamente ficará conhecido, daqui a 50 ou 100 anos, como aquele em que, sem perder de vista as grandes guerras e conflitos que o marcaram, se observou uma intensa evolução tecnológica da humanidade. Não se presume caminho diferente para o século XXI. É bem verdade que o cientista procura, qualquer que seja a metodologia para construção do pensamento científico, guiar-se por uma neutralidade que lhe garante movimentar-se, prefacialmente, sobre os seus estudos e investigações. Já se afirmou que o esclarecimento4 é a saída da humanidade de sua menoridade, isto é, da sua incapacidade de fazer uso do seu próprio entendimento autonomamente5. Não se quer dizer com isso que a busca e produção do conhecimento científico se afigure neutra. Em tempos que a produção da ciência assume contornos até então inatingíveis e, até mesmo, inimagináveis em alguns séculos atrás, é preciso não olvidar que, desde os anos 70 do século passado, disseminou-se perante a comunidade científica novos paradigmas principialistas. Em 1971, foi publicada a obra Bioethics: bridge to the future, de autoria de VAN RENSSELDER POTTER, da Universidade de Wisconsin (EUA), que a concebeu numa perspectiva ecológica e a considerando como a “ciência da so4 Na versão original, Iluminismo. 5 IMMANUEL KANT, Resposta à pergunta: “o que é Iluminismo?”, p. 1.

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brevivência”, alertando, sobretudo, que seria necessário o compromisso com o equilíbrio e a preservação da relação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta6. Naquele mesmo ano, ANDRÉ HELLEGERS funda, na Universidade de Georgetown, o Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics, a partir do qual a bioética passa a ser considerada como a ética das ciências da vida, cuja concepção é decisiva para a construção do clássico The Principles of Bioethics, idealizado por BEACHAMP E CHILDRESS, em 19797. É exatamente aí que reside a construção paradigmática da bioética por meio dos princípios da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. A ideia de autonomia está cristalizada na ideia de que o profissional de saúde, lato sensu, respeite integralmente a vontade do paciente ou de seu representante, sem perder de vista os valores morais e religiosos do paciente. Quer esse princípio significar que nenhum tratamento será observado ao paciente sem que tenha sido obtido o seu prévio e consciente consentimento. Esse princípio está consagrado no art. 15 do Código Civil brasileiro8. No Direito Português, ele também se vê instrumentalizado a partir da interpretação sistemática realizada a partir da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito à integridade moral e física das pessoas (art. 25º, nº 1) e o direito ao “desenvolvimento da personalidade” (art. 26º, nº 1), do Código Civil Português, que também prevê o direito geral de personalidade, estatuindo que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua integridade física e moral” (art. 70º, nº 1) e do Código Penal Português, que por sua vez penaliza as denominadas “intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários” (art. 156º), como também aqueles realizados “sem o consentimento do paciente” (art. 157º), sem perder de vista o Código Deontológico da Ordem dos Médicos de Portugal, consistente no Regulamento n. 707/2016, onde prevê expressamente a possibilidade de recusa ao tratamento médico pelo paciente (art. 24º). Na hipótese do paciente não se encontrar consciente, a práxis médica dispensa o seu prévio consentimento9. 6 MARIA HELENA DINIZ, O estado atual do biodireito, p. 9. 7 Idem, ibidem, p. 9. 8

“Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

9 A este respeito, confira-se o Código de Ética Médica do Brasil, art. 22 e o Código Deontológico da Ordem dos Médicos de Portugal, art. 22º, “a”, que expressamente prevê a figura do consentimento presumido.

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Em segundo lugar, a beneficência, que está relacionada à noção de se outorgar ao paciente o melhor e mais eficaz tratamento que objetive o seu bem-estar e evitando, pois, quaisquer danos, ressalvada a iatrogenia – que decorre do próprio tratamento, mas deverá ser objeto de esclarecimento integral ao paciente10. Daí, portanto, que o tratamento médico não poderia implicar na piora das condições do paciente e, se isso assim ocorrer, incidente estará a figura do terceiro princípio que é desdobramento da beneficência: princípio da não maleficência. O último princípio, Justiça. Quer esse princípio traduzir a noção de aplicação da isonomia entre todos os pacientes. Não importa a condição econômica do paciente, muito menos onde está sendo realizado o seu tratamento. É de se esperar que a relação médico x paciente trate isonomicamente todo e qualquer paciente, outorgando-lhe o mesmo tratamento esperado para a cura da enfermidade que se apresenta. É bem possível inserir outros princípios à bioética, sem que ela perca o seu sentido – como proponho a consagração do princípio da alteridade, segundo o qual é preciso sempre ter o paciente como o Outro que deverá ser respeitado integralmente por sua dignidade e como pessoa, pois, é o Outro – e não o Eu – o verdadeiro e único protagonista da realidade social. É certamente é o pensar no Outro que nos faz ser mais humanos, mais solidários, mais fraternos e mais justos11. Também é possível conceber a bioética por outros paradigmas que não a principialista. Assim, cabe destacar o paradigma libertário, fundado na radicalização do valor central da autonomia e do indivíduo (TRISTAM ENGELHARDT); paradigma das virtudes, embasado na tradição grega aristotélica da ética das virtudes (EDMUND PELLEGRINO e DAVID THOMASMA); paradigma “casuístico”, que defende a análise de caso por caso, num plano analógico (ALBERT JONSEN e STEPHEN TOULMIN); paradigma fenomenológico e hermenêutico, por meio do qual se enfatiza a necessidade de reconhecer que toda experiência está sujeita a interpretação; paradigma narrativo, que propicia a abordagem da experiência humana e os dilemas morais que a caracterizam; paradigma do cuidado, que contrapõe o valor do cuidado ao da justiça, propon10 Confira-se, a propósito, o n. 1, art. 66º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos de Portugal: “Nas situações de doenças avançadas e progressivas cujos tratamentos não permitem reverter a sua evolução natural, o médico deve dirigir a sua ação para o bem-estar dos doentes, evitando a futilidade terapêutica, designadamente a utilização de meios de diagnóstico e terapêutica que podem, por si próprios, induzir mais sofrimento, sem que dai advenha qualquer benefício.” 11 CARLOS EDUARDO NICOLETTI CAMILLO, A teoria da alteridade jurídica, p. 14.

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do-se uma noção fundamental para o desenvolvimento moral (CAROL GILLIGAN); paradigma do direito natural, que estabelece a existência de alguns bens fundamentais em si mesmos, tais como o conhecimento, a vida, a vida estética, a vida lúdica, a racionalidade prática, a religiosidade, a amizade (JOHN FINNIS); paradigma contratualista, que tem como ponto de partida a denúncia das insuficiências de fundo que a ética hipocrática encerra (ROBERT VEATCH) e paradigma antropológico personalista, que sustenta a impossibilidade de se fazer bioética de forma séria sem uma fundamentação antropológica, procurando enunciar as características essenciais da pessoa como tal, inspirada nos trabalhos de PAUL SCHOTSMANS: (a) a pessoa como ser único e original; (b) a pessoa é, por natureza e condição, um ser aberto aos outros e ao mundo e (c) responsabilidade social de cada pessoa na construção do verdadeiro humanismo numa perspectiva de justiça equitativa12. De qualquer forma, pode-se afirmar que a bioética encerra a noção de uma espécie de resposta ética às novas situações oriundas do conhecimento científico moderno no âmbito da saúde, ocupando-se das mais profundas análises dos problemas éticos decorrentes das novas tecnologias.

3. Da bioética à biotecnologia Bioética e Biotecnologia são termos que se correlacionam, mas não se confundem. A bioética teve o seu impulso a partir dos avanços da biotecnologia. Ambas dizem respeito às inovações tecnológicas e trazem como núcleo a vida. Mas enquanto a bioética se propõe a viabilizar uma resposta ética em face dos avanços do conhecimento científico, a biotecnologia pressupõe uma perspectiva prática e experimental. Mais precisamente, enquanto a bioética repousa no arcabouço da interdisciplinaridade entre as ciências biológicas, da saúde, filosofia e direito, a biotecnologia tem como lastro a aplicação tecnológica baseada sobretudo na biologia. A Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU define a biotecnologia nos seguintes termos: Biotecnologia significa qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização específica.

Definir a biotecnologia não deveria ser tarefa difícil, pois se trata de uma palavra composta pelos termos bio (do grego bio, vida) e tecnologia, a compor a 12 LEO PESSINI e CHRISTIAN DE PAUL DE BARCHIFONTAINE, Problemas atuais de bioética, p. 46.

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tecnologia da biologia. Mas a verdade é que se trata de termo que pode fomentar ambiguidade. A ideia de biotecnologia está essencialmente ligada à ideia de revolução, dado que pressupõe movimentar diversos aspectos da vida humana e sua interação junto à natureza, estando presente nos mais diversas searas do conhecimento. No campo da saúde, a biotecnologia se revela por meio das descobertas que podem curar, prevenir ou mesmo diagnosticar enfermidades. Se considerada na via ambiental, poderá a biotecnologia ser decisiva para conter pragas e até mesmo desenvolver novos produtos. E talvez seja no campo da agricultura, que o seu viés revolucionário ganha tons mais surpreendentes e inesperados: desde a possibilidade de frutas com sabores ou cores naturalmente impossíveis até safras de vinho com a mesma intensidade e sabor de séculos atrás. A biotecnologia, tal como a conhecemos atualmente, faz uso dos organismos vivos para o desenvolvimento de produtos novos e úteis, ou mesmo solucionar ou atenuar problemas de produtos já existentes. Mas a maior perplexidade é a de que faz muito tempo que utilizamos microorganismos para desenvolvimento de produtos, em especial o pão, o vinho, o queijo, o iogurte, a cerveja, os antibióticos, as vitaminas, as vacinas, entre tantos outros. Se assim é, porque insistir na ideia de revolução? A resposta a esta questão está relacionada diretamente com o conhecimento científico. Posteriormente à descoberta da estrutura molecular do ácido desoxirribonucleico (DNA) pelo norte-americano JAMES WATSON e pelo britânico FRANCIS CRICK, em 7 de março de 1953, sucedeu-se a revolução propriamente dita. A humanidade, que já dominava a utilização dos microorganismos como protagonistas para criação de uma série de produtos, começou a tirar proveito do estágio em que se encontrava o conhecimento científico, sobretudo nos anos 60 e 70 do século passado. De uma certa forma, a revolução tecnológica mudou sensivelmente a paisagem de muitos países, como se infere, por exemplo, das formações conhecidas do cotton belt ou corn belt nos Estados Unidos da América. A novidade – leia-se a revolução -, consistiria, portanto, na forma como hoje se detém o conhecimento necessário quanto à manipulação dos microorganismos. Se antes pouco ou quase nada se sabia acerca da manipulação, o conhecimento científico se encontra no nível mais fundamental do processo, isto é, no nível molecular, de maneira que a contextualização para definição contemporânea da biotecnologia reside na utilização de células e moléculas para a solução de problemas ou criação de produtos úteis.13

13 HELEN KREUZER e ADRIANNE MASSEY, Engenharia genética e biotecnologia, p. 17.

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É possível concluir que o conhecimento técnico e científico desenvolvido em diversas disciplinas produziu um conjunto de habilidades tecnológicas que denominamos de biotecnologia. Quer isso dizer, pois, que a biotecnologia é coletivo, isto é, um conjunto de diversas tecnologias que se valem de células e moléculas biológicas, tanto que é possível agrupar: (i) Tecnologia de chip de DNA, (ii) Engenharia Genética, (iii) Tecnologia de Cultura de Células e Tecidos, (iv) Engenharia de Tecidos, (v) Tecnologia de Biosensores, (vi) Tecnologia de Bioprocessamento, (vii) Tecnologia do Antisenso, (viii) Engenharia de Proteínas e (ix) Tecnologia de anticorpos monoclonais14. Todas essas tecnologias possuem as mais diversas aplicações, sobressaindo nos seguintes campos: (i) Medicina, nas áreas de diagnósticos, terapias e vacinas; (ii) Agricultura, na qualidade dos alimentos, rendimento de safras e saúde animal e (iii) Meio Ambiente, no monitoramento ambiental, na biorremediação e na prevenção de poluição15. No direito brasileiro, a biotecnologia se encontra regulada na Lei 11.105, de 24 de março de 2005, também conhecida como Lei de Biossegurança, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal Brasileira. A referida Lei de Biossegurança estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM) e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança (CTNBio), tendo sido regulamentada pelo Decreto 5.591/2005. O escopo dessa norma não é outro senão de servir de estímulo ao avanço científico na área de biotecnologia, criando mecanismos eficazes de fiscalização sobre as condutas que envolvem os OGMs e seus derivados, isto é, o cultivo, produção, manipulação, transporte, transferência, importação, exportação, armazenamento, pesquisa, comercialização, consumo, liberação no meio ambiente e descarte (art. 1º). Ademais, os profissionais da biogenética são obrigados a trabalhar apenas em estabelecimentos devidamente chancelados pela CTNBio, quais sejam pessoas jurídicas de direito público ou privado (art. 2º). Depreende-se, ademais, que o espírito do legislador foi o de estabelecer um controle rigoroso da qualidade e da segurança da biotecnologia dos alimentos transgênicos, sem perder de vista o paradigma do princípio da precaução, expressamente previsto no art. 1º.

14 Idem, ibidem, p. 19. 15 Idem, Ibidem, p. 19.

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Em sede de meio ambiente, o princípio da precaução não se confunde com o da prevenção, embora correlatos. A prevenção pressupõe base científica para conhecer, de antemão, os riscos ao meio ambiente, de maneira que, preventivamente, deve-se impor do empreendedor condicionantes no licenciamento ambiental para atenuar ou elidir os prejuízos. Em suma, a prevenção se dá em relação a um perigo conhecido e concreto. Pelo princípio da precaução, não se tem base científica para antever ou prever prejuízos. A incerteza científica milita em favor do meio ambiente e da saúde, de maneira que, se determinado empreendimento puder causar danos ambientais sérios ou irreversíveis e pairar incerteza científica quanto aos efetivos danos e sua extensão, o empreendedor deverá ser compelido a adotar medidas de precaução para elidir ou reduzir os riscos ambientais para a população. Em suma, a precaução envolve perigo abstrato ou potencial16. Nesse sentido, malgrado a humanidade conhecer e dominar a biotecnologia para manipular corretamente as células e moléculas biológicas com tamanha eficiência, ainda não se ultrapassou a última etapa do conhecimento científico neste campo para, confortavelmente, deslocar-se do eixo da precaução para o da prevenção.

4. Sobre os impactos da biotecnologia Como se viu, a biotecnologia é impactante por natureza. É impossível não se maravilhar - e ao mesmo tempo se assombrar - com as estradas que ainda serão perseguidas por suas tecnologias. Fruto genuíno do conhecimento científico, a biotecnologia também deve ser temperada sob o viés econômico, dado que sua gênese está igualmente atrelada aos mais altos investimentos, ainda que tenha por escopo maior trazer a melhor utilidade e eficiência à humanidade. E é bem por isso que ela se move dogmaticamente à frente, não flertando com a possibilidade de retroceder em meio a todas as conquistas e avanços científicos dos quais ela se reinventa. As suas aplicações mais significativas recaem sobre o meio ambiente, a medicina e a agricultura, o que equivale dizer que todas elas margeiam a objeto da maior proteção nos sistemas jurídicos contemporâneos: a vida. A proteção à vida ocupa um lugar de relevante primazia nos sistemas jurídicos contemporâneos. Como corolário do direito à vida, sobressai o direito à saúde.

16 FREDERICO AUGUSTO DI TRINDADE AMADO, Direito ambiental, p. 41.

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Consagrado como um direito de todos e dever do Estado, a saúde deverá ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de enfermidades em geral, objetivando, ainda, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação17. Dentro desse universo de tantos atributos que deveriam margear a saúde em nosso país, sobreleva destacar que o princípio da precaução não se revelará como uma mera ficção mas, em verdade, como um ingrediente a mais que deverá ser incorporado ao princípio da informação18 Quer isso dizer, portanto, que a despeito da existência de regras jurídicas que amparam o desenvolvimento científico e, pois, a produção da pesquisa científica19 e, mesmo tendo em mente que os seus propósitos se destinam à melhoria, eficiência e utilidade dos produtos ou mesmo o tempero do viés econômico, jamais será permitida subtrair ou relativizar a informação precisa, clara e pontual de que determinado produto fora processado por meio de biotecnologia, mediante manipulação de células ou moléculas biológicas. Trata-se de direito fundamental, protegido por cláusula pétrea e que deveria ser cristalino como o fundamento que lhe dá embasamento, mas sequer houve essa preocupação pelo legislador brasileiro à época da edição da Lei 11.105/200520. 17 Art. 196, CF do Brasil. Em Portugal, insta destacar a redação do art. 64º, item 3, da CR de Portugal, in verbis: Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado: a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação; b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde; c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos; d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade; e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico; f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência. 18 Art. 5º, inc. XIV, da CF do Brasil e art. 6º, inc. III, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). No Direito Português, veja-se o art. 20º, n. 2. da CR de Portugal. 19 Art. 218 da CF do Brasil. No Direito Português, vide art.73º, n. 4. 20 Tramita na Câmara dos Deputados do Poder Legislativo Brasileiro, o Projeto de Lei n. 4.908/2016 para emendar a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) e tornar obrigatória a rotulagem dos alimentos transgênicos. Atualmente, a obrigatoriedade da rotulagem no Brasil deriva de uma decisão do E. Supremo Tribunal Federal na Reclamação 14.873 que temperou o Decreto n. 4.680/03 e determinou a rotulagem num âmbito maior que o ato normativo.

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Não se cogita da proibição de comercialização de qualquer processado pela biotecnologia, mas o que não se pode permitir é que impedir o exercício da legítima autonomia da vontade em adquirir ou consumir esse mesmo produto. Trata-se de relevante informação que não pode ser sonegada. Malgrado o caminhar da ciência, é preciso prestar a correta e clara informação ao consumidor do produto se se trata ou não de produto nessas condições. A ausência de informação constitui manifesto atentado à boa-fé objetiva e de uma só vez, contraria o direito fundamental à informação e vulnera a dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento e base do sistema jurídico estatal21. E nem há que se esquecer, aqui, que o espectro da precaução pressupõe incerteza científica que, neste caso, assume contornos peculiares quanto se trata, sobretudo, da tecnologia de processamento dos chamados alimentos transgênicos – OGMs. Há um conhecido debate acerca das propriedades e qualidades dos alimentos transgênicos. Sustenta-se, de um lado, que dados os rigorosos controles de qualidade, não se poderia afirmar que o alimento transgênico fomentaria algum mal para a saúde da humanidade. Também se argumenta que inexiste, rigorosamente, qualquer laudo ou outra prova irrefutável que pudesse corroborar essa tese. De outro lado, as críticas também se afiguram resistentes. Argumenta-se o desiquilíbrio ambiental, devido a existência de manipulação genética. Também se sustenta que o consumo desses alimentos fomentaria a ocorrência de enfermidades, como também implicaria no estrangulamento do pequeno produtor, dado que não teria fôlego para também investir nas sementes transgênicas, tampouco participar de todo o processo previsto na Lei de Biossegurança. Independente do ponto de vista a ser defendido, continua sendo mais importante privilegiar o consumidor com a liberdade de escolha, fruto da autonomia de vontade que pode e deve ser exercida. Por fim, a dignidade. Vale lembrar que a dignidade, seja como fundamento ou base de um sistema jurídico revela-se como um princípio nuclear ínsito em todos os preceitos e regras jurídicas que compõem esse arcabouço jurídico. Não é apenas o consumidor de um produto processado por meio da biotecnologia que poderia se aproveitar de seu manto protetor. O comerciante ou qualquer outra pessoa da cadeia da biotecnologia também se mostra legítimo titular da dignidade, enquanto pessoa humana. 21 Na forma do art. 1º, inc. III, da CF do Brasil, a dignidade da pessoa humana está prevista como fundamento da República. No Direito Português, ela é a base da República soberana, como se vê do art. 1º.

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Neste diapasão, se depreende que todos têm a dimensão da dignidade da pessoa humana, de maneira que somente a perspectiva da interpretação por meio da alteridade faz a diferença. A ciência e, bem assim, a biotecnologia exercem função social das mais relevantes, se destinando, via de regra, a alguma melhoria e utilidade para a humanidade. A biotecnologia também deve aderir ao lastro de ordem ética que atenda, integralmente, aos mais legítimos valores da humanidade, não se permitindo desvios ou retrocessos que impliquem na vulneração da pessoa e de todos os direitos que lhe são inatos. É exatamente por essas razões, firme no entendimento de que a biotecnologia não teria sentido se não em função da existência da pessoa que adquirirá o produto fruto dessa tecnologia, que qualquer interpretação jurídica deve ter como protagonista não o empreendedor, mas o verdadeiro e único titular dos direitos: o Outro. Se a biotecnologia encerra um dos campos mais modernos do conhecimento científico, para o direito, nada de novo, além dos termos técnicos e do produto refinado por uma tecnologia invariavelmente complexa: o consumidor continua titular do direito fundamental à informação, sobretudo diante do conteúdo do princípio da precaução dada à incerteza científica que impregna esse conhecimento e tecnologia e, enfim, a dignidade da pessoa humana a partir da alteridade que lhe dá sentido e direção para ser respeitado eticamente sob todos os ângulos, de maneira incondicional, se afigurando, enfim, como o protagonista maior da relação jurídica, para além do sistema jurídico.

Conclusões tífico.

A cultura é gênese tanto do senso comum como do conhecimento cien-

O conhecimento científico se aperfeiçoa por meio de uma série de atributos, dentre eles se sobressai a linguagem, elementar para a compreensão perfeita, clara e precisa numa comunicação científica e, bem assim, a metodologia empregada para movimentar a investigação e se alcançar os resultados esperados. O século XX, marcado por duas grandes guerras e uma série de conflitos, também foi cenário de uma intensa evolução tecnológica da humanidade. Nesse quadrante, forjou-se a bioética, aqui categorizada como uma espécie de resposta ética às novas situações oriundas do conhecimento científico moderno, ocupando-se das mais profundas análises dos problemas éticos decorrentes das novas tecnologias.

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Bioética e biotecnologia não são termos sinônimos, mas correlatos. Enquanto a bioética repousa no arcabouço da interdisciplinaridade entre as ciências biológicas, da saúde, filosofia e direito, a biotecnologia tem como lastro a aplicação tecnológica baseada sobretudo na biologia. Mais precisamente, a biotecnologia encerra uma noção de atividade prática. É possível sustentar que a biotecnologia traduz uma ideia de revolução, com a observação de que tal impulso se deu objetivamente a partir das décadas 60 e 70 do século XX, mais precisamente quando a humanidade passou a conhecer e dominar as mais diversas técnicas de manipulação de células e moléculas biológicas cujo coletivo compõe o correto significado de biotecnologia. A biotecnologia não é apenas relevante sob a ótica do conhecimento científico. É preciso contemporizar o seu sentido a partir do viés econômico, dado os altos investimentos, sobretudo da indústria, para a consecução de seus objetivos concernentes à obtenção de mais qualidade, eficiência e utilidade nos produtos objeto da biotecnologia. As aplicações mais importantes da biotecnologia recaem sobre o meio ambiente, a medicina e a agricultura, contornando a vida, enquanto objeto da maior proteção nos sistemas jurídicos contemporâneos. Como corolário do direito à vida, sobressai o direito à saúde. Além disso, há de se ressaltar o princípio da precaução, fundado na incerteza científica ínsita na biotecnologia, contrapondo-se ao direito fundamental de informação. E isso, sem perder de vista o fundamento e a base do sistema jurídico: a dignidade da pessoa humana, que deve ser temperada a partir da alteridade, para se concluir que o destinatário de toda a produção biotecnológica não é a indústria ou qualquer outra pessoa diferente que o consumidor, verdadeiro e legítimo titular do direito fundamental à informação, se afigurando, enfim, como o protagonista maior da relação jurídica, para além do sistema jurídico.

Referências Bibliográficas AMADO, Frederico Augusto Di Trindade. Direito Ambiental. 2ª edição. São Paulo: Método, 2011. CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. A teoria da alteridade jurídica – em busca do conceito de direito em Emmanuel Lévinas. São Paulo, Editora Perspectiva, 2016. CASADO, María. Las leys de la bioética. Barcelona: Gedisa Editorial, 2004.

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A PROCURADORIA EUROPEIA, A DEMOCRACIA ECONÓMICA E A AÇÃO PENAL CONTRA AS INFRAÇÕES LESIVAS DOS INTERESSES FINANCEIROS DA UNIÃO EUROPEIA

Margarida Santos1

Resumo: O texto do Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017, que dá execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia, estabelece um modelo de intervenção penal na União Europeia novo, complexo, de multicamadas, onde se desenha um sistema de competências partilhadas entre a Procuradoria Europeia e as autoridades nacionais no exercício da ação penal dos crimes que lesam os interesses financeiros da UE, tal como são definidas na Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2017 (Diretiva PIF), o que inclui a fraude, o branqueamento de capitais, a corrupção e a apropriação ilegítima. Neste trabalho, analisar-se, numa visão panorâmica, o texto deste Regulamento, dedicando-se especial atenção ao objeto material de atuação da Procuradoria Europeia.

1 Doutora em Direito, na especialidade de Ciências Jurídicas Públicas, Professora na Escola de Direito da Universidade do Minho e no Instituto Superior da Maia (ISMAI); Membro Integrado do Centro de Investigação em Justiça e Governação (Universidade do Minho) e da Unidade de Investigação em Criminologia e Ciências do Comportamento (ISMAI).

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A Procuradoria Europeia, a democracia económica e a ação penal contra as infrações lesivas dos interesses financeiros da União Europeia Margarida Santos

Palavras-chave: Procuradoria Europeia; Regulamento (UE) 2017/1939; novo modelo de intervenção penal na União Europeia; interesses financeiros da União Europeia. Abstract: The text of Council Regulation (EU) 2017/1939 of 12 October 2017 implementing enhanced cooperation on the establishment of the European Public Prosecutor’s Office sets out a new, complex, multi-layer model of criminal intervention in the European Union, which draws up a system of shared competences between the European Public Prosecutor’s Office and the national authorities in the prosecution of crimes against the EU’s financial interests as they are defined in the Directive (EU) 2017/1371 of the European Parliament and of the Council of 5 July 2017 (PIF Directive), which includes fraud, money laundering, corruption and misappropriation. In this work, we analyse, in a panoramic view, the text of this Regulation, paying particular attention to the material scope of the European Public Prosecutor’s Office. Keywords: European Public Prosecutor’s Office; Regulation (EU) 2017/1939; new model of criminal intervention in the European Union; European Union’s financial interests. Sumário: I. Considerações iniciais. II. O Regulamento (UE) 2017/1939 – visão panorâmica. III. O objeto material de atuação da Procuradoria Europeia entre o Regulamento (UE) 2017/1939 e a Diretiva PIF, em especial os crimes de fraude, branqueamento de capitais, corrupção e apropriação ilegítima. Conclusões.

I. Considerações iniciais Assistimos, no momento presente, à emergência de um novo sistema europeu de justiça criminal, onde se compreende a Procuradoria Europeia como “o próximo passo lógico, se a União Europeia pretende criar as suas próprias competências na área criminal”2. 2 KLIP, André, European Criminal Law: An Integrative Approach, 2nd ed., Intersentia, Antwerp, Oxford, 2012, p. 465. Na verdade, “With the growing number of players in international cooperation, the lines of commnunication have risen dramatically. (...) The lines of communication and the bodies involved in co- operation have multiplied” (negrito do Autor). Neste enquadramento, “Progressively, the European Union covers more and more fields, and with bodies of its own. It started with Europol, but European bodies for prosecutors and judges have subsequently been created. The establishment of an EPPO is a logical next step, if the European Union is to create its own competences in the field of criminal law”.

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A criação de uma Procuradoria Europeia já se debate há mais de 20 anos3. Neste caminho, com passos relevantes, foi introduzida pela primeira vez uma expressa base jurídica para a instituição de uma Procuradoria Europeia no art.º 86.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), remetendo-se a definição da estrutura e dos poderes para um regulamento. No n.º 1 do art.º 86.º do TFUE, estabelece-se a possibilidade de o Conselho criar uma Procuradoria Europeia a partir da Eurojust. Determina-se, no n.º 2 deste artigo, o âmbito material de atuação da Procuradoria Europeia: “infrações lesivas dos interesses financeiros da União” contempladas no n.º 1. Além disso, nos termos do n.º 4 deste artigo, prevê-se a possibilidade de o Conselho estender o âmbito de competência material da Procuradoria ao combate à “criminalidade grave com dimensão transfronteiriça”. Esta decisão pode ser simultânea ou posterior à criação da Procuradoria e será adotada por unanimidade do Conselho, após aprovação do Parlamento e consulta à Comissão. Como já noutro escrito acentuámos4, o art.º 86.º do TFUE abarcou, de certa forma, os dois domínios de criminalidade, sintetizando os dois entendimentos existentes acerca da “mais-valia” da Procuradoria Europeia, acolhendo-se, como salienta Katalin Ligeti, uma visão mais alargada da Procuradoria Europeia.

3 Para uma síntese do caminho percorrido até à efetiva consagração no Tratado vigente, ver o nosso, Para um (novo) modelo de intervenção penal na União Europeia: uma reflexão a partir do princípio da legalidade como limite material de atuação da Procuradoria Europeia, Rei dos Livros, Lisboa, 2016 pp. 225 e ss. Sobre a criação de uma Procuradoria Europeia, ver, já, entre outros, GEELHOED, Willem, ERKELENS, Leendert Hendrik, MEIJ, Arjen (Eds.), Shifting Perspectives on the European Public Prosecutor’s Office, T.M.C. Asser Press, The Hague, 2018; WEYEMBERGH, Anne, BRIÈRE, Chloé, Towards a European Public Prosecutor’s Office (EPPO), Study for the Libe Committee, European Parliament, 2016, disponível em http://www.europarl.europa.eu/ RegData/etudes/STUD/2016/571399/IPOL_STU(2016)571399_EN.pdf (última consulta a 21-12018); LIGETI, katalin, Toward a Prosecutor for the European Union. Volume 1, A comparative analysis, Hart Publishing, Oxford, 2013. 4 Ver o nosso Para um (novo) modelo de intervenção penal na União Europeia: uma reflexão a partir do princípio da legalidade como limite material de atuação da Procuradoria Europeia, Lisboa, Rei dos Livros, 2016, pp. 294 e ss. Ver LIGETI, katalin, “Approximation of substantive criminal and the establishment of the European Public Prosecutor’s Office”, in GALLI, Francesca, WEYEMBERG, Anne (Ed.), Approximation of substantive criminal law in the EU – The way forward, Editions de l´Université de Bruxelles, Belgium, 2013, pp. 75 e 76.

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Em Julho de 2013, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de regulamento relativa à criação da Procuradoria Europeia5. Aqui transparece, numa leitura indireta, a necessidade de ser promovida uma efetiva “democracia económica”6. Após um longo e difícil debate, onde não se verificou a necessária unanimidade, em 31 de outubro de 2017, foi publicado o Regulamento (UE) 2017/1939 5 Proposta de Regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia - COM(2013) 534 final. Para uma análise desta proposta e dos seus desenvolvimentos posteriores, ver o nosso “A Proposta de Regulamento da Procuradoria Europeia – um primeiro olhar”, in Direito na Lusofonia – Cultura, direito humanos e globalização, 1.º Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2016 e “A Proposta de Regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia - quo vadis?”, in PITON, André, CARNEIRO, Ana Teresa (Orgs.) Liber Amicorum Manuel Simas Santos, Rei dos Livros, Lisboa, 2016. 6 Ver a Exposição de Motivos constante da Proposta de Regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia - COM(2013) 534 final, onde se justifica a necessidade de prevenção e repressão dos crimes que lesam os interesses financeiros da União Europeia, num período de consolidação orçamental. Como salienta Peter Csonka, “Last year the Union budget included more than 120 billion Euros in funds to the benefit of the Member States, private enterprises and in particular the European citizens. European funds should stimulate growth, help tackling unemployment, nurture economic and social equality, and strengthen education and research. (…) The losses as a result of fraud, corruption and other crimes against the Union budget are significant and go into billions of Euros. But there is also another aspect to it: a prosperous and stimulating economic activity depends on equal access to the market, fair competition, common rules and transparency. (…) Fraud, corruption, money laundering or serious VAT fraud cases distort competition, hamper a free access to the market and often – but not always – take place in the dark. This is why crime to the detriment of the EU budget is a serious European problem, which requires a European solution. The EPPO will be a key component in addressing the current issues” – CSONKA, Peter, “General presentation of the proposal and main issues: the state of negotiations, solutions reached and main issues to be resolved”, in SANTOS, Margarida, MONTE, Mário Ferreira e MONTEIRO, Fernando Conde (coord.), Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/os_novos_desafios_cooperacao_jud_e_policial_ue_implementacao_da_pe/, pp. 69 e 70 (última consulta a 20-1-2018). Apenas como exemplo, no que diz respeito à corrupção, que “A corrupção e a fraude prejudicam gravemente a economia e a sociedade. Muitos países em todo o mundo sofrem de uma corrupção profundamente enraizada, o que afeta o seu desenvolvimento económico, enfraquece a democracia e compromete a justiça social e o Estado de direito. (…) Estima-se que a corrupção, por si só, represente um custo para a economia da União Europeia equivalente a 120 mil milhões de euros por ano, apenas um pouco menos do que o orçamento anual da União Europeia. Por conseguinte, combater a corrupção contribui para a competitividade da União na economia global”. (…) Em última instância, a corrupção compromete a confiança dos cidadãos nas instituições e nos processos democráticos” – cf. COMISSÃO EUROPEIA, Compreender as políticas da União Europeia: A luta da União Europeia contra a fraude e a corrupção, 2015, disponível em http://www.norte2020.pt/sites/ default/files/public/uploads/documentos/LutaFraude.pdf (última consulta a 21-1-2018). Com muito interesse, para uma interligação entre a “crise económico-financeira” e a integração europeia, v. BECK, Ulrich, A Europa Alemã – De Maquiavel a “Merkievel”: Estratégias de poder na crise do euro, trad. de Marian Toldy e Teresa Toldy, revisão de Pedro Bernardo, Edições 70, 2013 (original: Das deutsche Europa. Neue Machtlandschaften in Zeiten der krise, Suhrkamp Verlag, Berlin, 2012.

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do Conselho, de 12 de outubro de 2017, que dá execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia (Regulamento). A data em que a Procuradoria Europeia, com base na cooperação reforçada, assumirá as suas funções de investigação e ação penal será fixada pela Comissão, sob proposta que o Procurador-Geral Europeu apresentará, não podendo ser anterior a três anos após a entrada em vigor do Regulamento (art.º 120.º do Regulamento). O texto do Regulamento estabelece “um novo modelo de intervenção penal na União Europeia”, um “tertium genus de intervenção penal na UE”7 e criou um sistema complexo, híbrido, de multicamadas, onde se desenha um sistema de competências partilhadas entre a Procuradoria Europeia e as autoridades nacionais no exercício da ação penal dos crimes que lesem os interesses financeiros da UE. No presente trabalho pretende-se dar conta dos traços principais deste novo órgão da União Europeia (a Procuradoria Europeia), com a função de investigar e exercer a ação penal relativamente aos autores e cúmplices das infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União Europeia, onde se inclui a fraude lesiva dos interesses financeiros, o branqueamento de capitais, o crime de corrupção ativa e passiva e a apropriação ilegítima, tal como definidos na Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2017, relativa à luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros da União através do direito penal (Diretiva PIF). Em especial, pretende-se dar conta, de forma perfunctória, deste modelo altamente complexo que está em vias de ser implementado, do objeto material, colocando-se algumas questões e desafios que o texto do Regulamento e da Diretiva sugerem.

II. O Regulamento (UE) 2017/1939 – visão panorâmica O Regulamento (UE) 2017/1939 recentemente aprovado e publicado fixa o estatuto da Procuradoria Europeia, define as funções, as condições de funcionamento, as regras de procedimento, as regras sobre o controlo jurisdicional da sua atividade processual, as relações com os Estados Membros não participantes na Procuradoria Europeia e com os Estados terceiros. Contém 11 capítulos: “Objecto e definições”; “Instituição, funções e princípios de base da Procuradoria Europeia”; “Estatuto, estrutura e organização da Procuradoria Europeia”; “Competência e exercício da competência da Procuradoria Europeia”; “Regras processuais aplicáveis às investigações, medidas de investigação, ação penal e al7 Cf. o nosso Para um (novo) modelo de intervenção penal na União Europeia: uma reflexão a partir do princípio da legalidade como limite material de atuação da Procuradoria Europeia, Lisboa, Rei dos Livros, 2016, entre outras na p. 343.

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ternativas à ação penal”; “Garantias processuais”; “Tratamento de informações”; “Proteção de dados”; “Disposições financeiras e em matéria de pessoal”; “Disposições relativas às relações da Procuradoria Europeia com os seus parceiros”; “Disposições gerais”. No que concerne aos aspetos institucionais mais relevantes, a Procuradoria Europeia é um órgão da União dotado de personalidade jurídica (artigo 3.º do Regulamento), que goza de garantias de independência (artigo 6.º do Regulamento) e que responde perante o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão Europeia pelas atividades gerais, aos quais apresenta um relatório anual (artigo 6.º, n.º 2, do Regulamento). Quanto ao estatuto e estrutura da Procuradoria Europeia (art.os 8.º e ss. do Regulamento), a Procuradoria Europeia “é um órgão indivisível da União e funciona como entidade única com estrutura descentralizada” (art.º 8.º, n.º1), sendo organizada a nível central pela Procuradoria Central (constituída pelo Colégio8, pelas Câmaras Permanentes9, pelo Procurador-Geral Europeu10, pelos Procura-

8 Na esteira do art.º 9, n.º 1: “O Colégio da Procuradoria Europeia é constituído pelo Procurador-Geral Europeu e por um Procurador Europeu por cada Estado-Membro. O Procurador-Geral Europeu preside às reuniões do Colégio e é responsável pela sua preparação”. De acordo com o art.º 9.º, n.º 2, “O Colégio reúne regularmente e é responsável pela supervisão geral das atividades da Procuradoria Europeia. Toma decisões sobre questões estratégicas e questões gerais decorrentes de casos individuais, especialmente no intuito de assegurar a coerência, eficiência e coesão da política de ação penal seguida pela Procuradoria Europeia em toda a União, bem como sobre outros assuntos especificados no presente regulamento. O Colégio não se envolve em decisões operacionais tomadas no âmbito de casos individuais…”. Além disso, de acordo com o n.º 3, do art.º 9.º, “O Colégio cria Câmaras Permanentes sob proposta do Procurador-Geral Europeu e de acordo com o regulamento interno da Procuradoria Europeia”. 9 De acordo com o art.º 10.º, n.º 1, “As Câmaras Permanentes são presididas pelo Procurador-Geral Europeu ou por um dos Procuradores-Gerais Europeus Adjuntos, ou por um Procurador Europeu nomeado como presidente nos termos do regulamento interno da Procuradoria Europeia. Para além do presidente, as Câmaras Permanentes têm mais dois membros permanentes…”.

Relativamente às suas funções, na esteira do art.º 10.º, n.º 2, “As Câmaras Permanentes acompanham e orientam as investigações e ações penais conduzidas pelos Procuradores Europeus Delegados. Asseguram também a coordenação das investigações e das ações penais nos processos transfronteiriços, e asseguram a aplicação das decisões tomadas pelo Colégio. Após examinar um projeto de decisão proposto pelo Procurador Europeu Delegado competente, as Câmaras Permanentes decidem quanto às seguintes questões: deduzir acusação; arquivamento; aplicar procedimento penal simplificado; reenviar um processo para as autoridades nacionais; reabrir investigação; dar instruções ao Procurador Europeu Delegado para iniciar uma investigação quando não tenha sido aberta nenhuma investigação; dar instruções ao Procurador Delegado Europeu para exercer o direito de avocação; redistribuir processos,…”.

Refira-se, ainda, que face ao art.º 10.º, n.º 5, “A Câmara Permanente competente, através do Procurador Europeu que supervisiona a investigação ou a ação penal, pode, em conformidade com o direito nacional aplicável, dar instruções em casos concretos ao Procurador Europeu Delegado competente quando tal for necessário para a direção eficiente da investigação ou ação penal, no interesse da justiça ou a fim de assegurar a coerência de funcionamento da Procuradoria Europeia”.

10 Na esteira do art.º 11.º, n.º1, “O Procurador-Geral Europeu dirige a Procuradoria Europeia. O Procurador-Geral Europeu organiza os trabalhos da Procuradoria Europeia, dirige as suas atividades e toma decisões em conformidade com o presente regulamento e com o seu regulamento interno da Procuradoria Europeia”.

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dores-Gerais Europeus Adjuntos11, pelos Procuradores Europeus12 e pelo Diretor Administrativo13 - n.º 3, do art.º 8.º) e a nível descentralizado (enformado pelos Procuradores Europeus Delegados, localizados nos Estados-Membros14). Quanto à missão e competência, os artigos 22.º e seguintes do Regulamento estabelecem que a Procuradoria Europeia terá competência para investigar, exercer a ação penal e levar a julgamento os autores e cúmplices das infrações lesivas dos interesses financeiros da UE, nos termos das disposições do Regulamento e da Diretiva PIF, como a seguir analisaremos, prevendo-se ainda uma competência acessória descrita no art.º 25.º do Regulamento (art.º 22.º, n.º 3, do Regulamento).

11 Na esteira do art.º 11.º, n.º 2, “São nomeados dois Procuradores-Gerais Europeus Adjuntos para coadjuvar o Procurador-Geral Europeu no desempenho das suas funções e substituí-lo em caso de ausência ou impedimento”. 12 De acordo com o art.º 12.º, n.º 1, “Em nome das Câmaras Permanentes e em conformidade com as instruções que delas tiverem recebido, os Procuradores Europeus supervisionam as investigações xnos respetivos Estados-Membros de origem. Os Procuradores Europeus apresentam sumários dos processos sob sua supervisão e, sempre que aplicável, propostas de decisões a tomar pelas referidas Câmaras, com base nos projetos de decisão elaborados pelos Procuradores Europeus Delegados”. Na esteira do art.º 12.º, n.º 3, “Num caso concreto e em conformidade com o direito nacional aplicável e com as instruções dadas pela Câmara Permanente competente, os Procuradores Europeus supervisores podem dar instruções ao Procurador Europeu Delegado competente, quando tal for necessário para a direção eficiente da investigação ou ação penal, no interesse da justiça ou a fim de assegurar o funcionamento coerente da Procuradoria Europeia”. Face ao art.º 12.º, n.º 5, “Os Procuradores Europeus funcionam como ligação e canal de informação entre as Câmaras Permanentes e os Procuradores Europeus Delegados nos respetivos Estados-Membros de origem. Acompanham o cumprimento das funções da Procuradoria Europeia nos respetivos Estados-Membros, em estreita consulta com os Procuradores Europeus Delegados, e asseguram, em conformidade com o presente regulamento e com o regulamento interno da Procuradoria Europeia, que todas as informações pertinentes sejam fornecidas pela Procuradoria Central aos Procuradores Europeus Delegados e vice-versa. 13 Sobre as responsabilidades do Diretor Administrativo, que gere a Procuradoria Europeia em termos x e orçamentais e é o seu representante legal para estes efeitos, ver art.o 19.º do Regulamento. 14 De acordo com o art.º 13.º, n.º 1 “Os Procuradores Europeus Delegados agem em nome da Procuradoria Europeia nos respetivos Estados-Membros e têm as mesmas competências que os procuradores nacionais no que respeita a investigar, instaurar a ação penal e deduzir acusação e sustentá-la na instrução e no julgamento, além das competências específicas e do estatuto que o presente regulamento lhes confere, nas condições nele estabelecidas. Os Procuradores Europeus Delegados são responsáveis pelas investigações e ações penais que lançaram, que lhes foram atribuídas ou que tomaram a cargo exercendo o direito de avocação. Os Procuradores Europeus Delegados também seguem a orientação e as instruções da Câmara Permanente encarregada do processo, bem como as instruções do Procurador Europeu supervisor. Os Procuradores Europeus Delegados são também responsáveis por deduzir acusação e sustentá-la na instrução e no julgamento, tendo, em especial, o poder de apresentar alegações, participar na recolha de meios de prova e interpor os recursos disponíveis segundo a lei nacional”. De acordo com o n.º 2, “Em cada Estado-Membro há dois ou mais Procuradores Europeus Delegados” (itálico nosso). Refira-se que, na esteira do n.º 3, “Os Procuradores Europeus Delegados podem também exercer funções de procuradores nacionais, desde que tal não os impeça de cumprir as obrigações que lhes incumbem por força do presente regulamento. Informam o Procurador Europeu supervisor de que lhes foram atribuídas essas funções. Se, a dado momento, um Procurador Europeu Delegado estiver impedido de exercer as suas funções de Procurador Europeu Delegado pelo facto de estar a exercer funções de procurador nacional, dá disso conhecimento ao Procurador Europeu supervisor, que consulta os ministérios públicos nacionais competentes a fim de determinar se deve ser dada prioridade às funções previstas no presente regulamento. O Procurador Europeu pode propor à Câmara Permanente que redistribua o processo a outro Procurador Europeu Delegado no mesmo Estado-Membro ou que conduza ele próprio as investigações nos termos do artigo 28.º, n. os 3 e 4” (itálico nosso).

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III. O objeto material de atuação da Procuradoria Europeia entre o Regulamento (UE) 2017/1939 e a Diretiva PIF, em especial os crimes de fraude, branqueamento de capitais, corrupção e apropriação ilegítima Importa agora dar conta das principais disposições que estabelecem o âmbito material de atuação da Procuradoria Europeia e sobre elas tecer algumas críticas. A competência material da Procuradoria Europeia e o seu exercício são definidos nos art.os 22.º a 25.º do Regulamento e na Diretiva PIF. Na esteira do Regulamento (art.º 22, n.º 1), (i) a título principal, a competência da Procuradoria Europeia diz respeito às infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União nos termos da Diretiva PIF, tal como transposta para o direito nacional, o que inclui, como a seguir se desenvolverá, a fraude lesiva dos interesses financeiros da UE15, o branqueamento de capitais, a corrupção e a apropriação ilegítima (art.º 3.º e 4.º da Diretiva PIF), sendo igualmente competente, a título secundário, (ii) quanto às infrações relativas à participação numa organização criminosa16, se a atividade criminosa dessa organização consistir sobretudo na prática daquelas infrações (n.º 3, do mesmo artigo) e (iii) quanto a “qualquer outra infração penal que esteja indissociavelmente ligada” àquelas infrações lesivas dos interesses financeiros, sendo que relativamente àquelas infrações “conexas” a competência só pode ser exercida nos termos do artigo 25.º, n.º 3, do Regulamento. Ora, cumpre desde já advertir, como infra iremos dar conta, que muitas interrogações e dúvidas nos acercam neste campo. Desde logo, a título prévio, pode-se questionar a própria opção da base legal da competência material da Procuradoria Europeia, que em abstrato, poderia assentar nos art.os 83.º, 86.º ou 325.º, todos do TFUE. Depois das difíceis negociações, acabou por vingar a base legal do art.º 83.º, n.º 2, do TFUE. Cremos, contudo, tal como alguma doutrina perfilha, que seria preferível que a base legal fosse a do art.º 86.º do TFUE (ou eventualmente a do 325.º do TFUE), onde o

15 Este art.º 22, n.º 1, do Regulamento, esclarece, na linha do estipulado no art.º 2.º, n.º 2, da Diretiva PIF, que relativamente a um dos tipos de fraude – às fraudes relativamente aos recursos próprios do IVA -, a Procuradoria Europeia só é competente quando os atos ou omissões intencionais em causa (i) estejam relacionados com o território de dois ou mais Estados-Membros e (ii) envolvam prejuízos totais de pelo menos 10 milhões de euros. 16 Tal como definidas na Decisão-Quadro 2008/841/JAI, tal como transposta para o direito nacional.

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regulamento da Procuradoria Europeia igualmente definisse as infrações sob a alçada da Procuradoria Europeia17. Com efeito, somos de entendimento que o modelo gizado com base no Regulamento e na Diretiva PIF afigura-se um modelo espartilhado, podendo germinar assimetrias no exercício da ação penal por parte da Procuradoria Europeia, desde logo em função legislação penal aplicável. De forma perfunctória, podemos referir desde já que o nível de harmonização pretendido na Diretiva PIF, especialmente no que diz respeito às sanções máximas aplicáveis (inexistem as sanções mínimas como previsto na versão inicial da Proposta PIF18), à autoria e cumplicidade, à responsabilidade das pessoas coletivas e aos prazos de prescrição (finalmente inseridos), afigura-se “modesto”19. Ora, sobretudo se 17 Sobre este assunto já nos dedicamos noutra sede. Ver o nosso, “O quadro legislativo (substantivo) da Procuradoria Europeia – Algumas reflexões”, in MOTA, Helena et. al. (coord.), XX Estudos Comemorativos dos 20 anos da FDUP, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2017 e “The definition of the competence ratione materiae of the European Public Prosecutor’s Office and the substantive legality principle - the way forward”, Portuguese Law Review, N.º 0, Vol. 1, Spring 2016, disponível em http://portugueselawreview.pt/current-issue.html (última consulta a 20-1-2018). Ver ainda, entre outros, LIGETI, katalin, “Approximation of substantive criminal and the establishment of the European Public Prosecutor’s Office”, in GALLI, Francesca, WEYEMBERG, Anne (Ed.), Approximation of substantive criminal law in the EU – The way forward, Editions de l´Université de Bruxelles, Belgium, 2013, especialmente pp. 75 e ss. e VERVAELE, John A. E., “The material scope of competence of the European Public Prosecutor’s Office: Lex uncerta and unpraevia?”, ERA Forum, Vol. 15, Issue 1, June 2014, p. 90 (para uma versão atualizada v. John Vervaele, “The material scope of competence of the European Public Prosecutor’s office: a harmonised national patchwork?”, Centro Studi di Diritto Penale Europeo, disponível em http://dirittopenaleeuropeo.it/ wp-content/uploads/2015/10/Vervaele-2014-15.pdf); SICURELLA, Rosaria, “Setting up a European Criminal policy for the Protection of EU Financial interests: guidelines for a coherent definition of the Material Scope of the European Public Prosecutor’s Office”, in LIGETI, katalin, (ed), Toward a Prosecutor for the European Union. Volume 1: A Comparative Analysis, Hart Publishing, Oxford, 2013, pp. 885 e ss. 18 Ver art.º 8.º (“Penas de prisão mínimas”) e art.º 9 (“Tipos de sanções mínimas aplicáveis às pessoas coletivas”), da Proposta de Diretiva sobre a proteção dos interesses financeiros - COM(2012) 363 final. 19 Assim, MARLETTA, Angelo, “The material competence of the European Public Prosecutor’s Office (EPPO) and the PIF Directive”, in SANTOS, Margarida, MONTE, Mário Ferreira e MONTEIRO, Fernando Conde (coord.), Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/os_novos_desafios_cooperacao_jud_e_policial_ue_ implementacao_da_pe/ (última consulta a 20-1-2018), p. 93 e SANTOS, Margarida, “Conclusões – A Procuradoria Europeia e a futura arquitetura para a justiça criminal na União Europeia: questões emergentes”, in SANTOS, Margarida, MONTE, Mário Ferreira e MONTEIRO, Fernando Conde (coord.), Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga 2017, disponível em http://www. jusgov.uminho.pt/publicacoes/os_novos_desafios_cooperacao_jud_e_policial_ue_implementacao_da_pe/ (última consulta a 20-1-2018), p. 22

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atentarmos que este exercício transnacional da ação penal assentará, desde logo, na transposição nacional da Diretiva PIF – uma vez que este instrumento jurídico é a base (principal) que “define” os crimes que cabem no exercício da ação penal da Procuradoria Europeia -, as (eventuais) divergências no contexto da transposição da Diretiva PIF poderão assumir contornos relevantes. Com efeito, revela-se necessária a realização de um exame minucioso das implementações nacionais da Diretiva PIF, com consequências em caso de falhas ou inconsistências na legislação nacional20. Ademais, atendendo à arquitetura do art.º 25.º, n.º 3, al. a), do Regulamento, o exercício concreto de competências sobre as infrações indissociavelmente ligadas às “infrações principais”, que assenta na gravidade das sanções previstas no direito nacional, poderá originar discrepâncias nesta regra de conexão. Importa agora analisar brevemente as disposições da Diretiva PIF, dando conta, ainda que a título meramente sumário, de algumas das inovações relativamente à Convenção relativa à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias de 26 de julho de 1995 (Convenção PIF) e seus Protocolos21. No âmbito das definições (al. a), do n.º 1, do art.º 2.º da Diretiva PIF), entende-se por “[i]nteresses financeiros da União”: “todas as receitas, despesas e ativos cobertos por, adquiridos através de ou devidos a: i) o orçamento da União, ii) os orçamentos das instituições, dos órgãos e dos organismos da União criados nos termos dos Tratados, ou os orçamentos por eles geridos e controlados direta ou indiretamente”. Esta definição afigura-se uma inovação relativamente à Convenção PIF22. Ainda nas definições, esclarece-se que relativamente às receitas provenientes dos recursos próprios do IVA, a diretiva apenas se aplica “aos casos de 20 Cf. MARLETTA, Angelo, “The material competence of the European Public Prosecutor’s Office (EPPO) and the PIF Directive”, in SANTOS, Margarida, MONTE, Mário Ferreira e MONTEIRO, Fernando Conde (coord.), Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/os_novos_desafios_cooperacao_jud_e_policial_ue_ implementacao_da_pe/ (última consulta a 20-1-2018), p. 94, nota 34. 21 Cf. Primeiro Protocolo de 27 de setembro de 1996; Protocolo de 29 de Novembro de 1996 relativo à interpretação da Convenção PIF e dos seus Protocolos pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e Segundo Protocolo de 19 de junho de 1997. 22 Para maiores desenvolvimentos, ver MARLETTA, Angelo, “The material competence of the European Public Prosecutor’s Office (EPPO) and the PIF Directive”, in SANTOS, Margarida, MONTE, Mário Ferreira e MONTEIRO, Fernando Conde (coord.), Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/os_novos_desafios_cooperacao_jud_e_policial_ue_implementacao_da_pe/ (última consulta a 20-1-2018), pp. 79 e ss.

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infrações graves ao sistema comum do IVA”, ou seja, “caso os atos ou omissões intencionais definidos no artigo 3.o, n.o 2, alínea d), estejam relacionados com o território de dois ou mais Estados-Membros da União e envolvam prejuízos totais de, pelo menos, 10 000 000 EUR”23. Relativamente à competência a título principal, retomando o fio de novelo atrás deixado solto, de forma sumária, o objeto de atuação da Procuradoria prende-se com os crimes de fraude lesiva dos interesses financeiros (art.º 3.º da Diretiva PIF), bem como de outras infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União contempladas no art.º 4.º da Diretiva - branqueamento de capitais (art.º 4.º, n.º 1, corrupção passiva e ativa (art.º 4.º, n.º 2, al. a) e b) da Diretiva PIF) e apropriação ilegítima (art.º 4.º, n.º 3, da Diretiva PIF). Relativamente ao esquema da Diretiva PIF quanto à fraude lesiva dos interesses financeiros, no art.º 3.º, podemos dividi-la em: (i) fraude relativa às despesas não relacionadas com contratação pública; (ii) fraude relativa a despesas relacionadas com a contratação pública, (iii) fraude em relação a receitas

23 Refira-se que a inclusão na Diretiva PIF da fraude em relação a receitas provenientes dos recursos próprios do IVA (que constava na versão inicial da respetiva Proposta e que durante as negociações foi retirada) vem em sequência do Acórdão Taricco, de 8 de setembro de 2015, Processo C-105/14. Para maiores desenvolvimentos, ver, entre outros, MARLETTA, Angelo, “The material competence of the European Public Prosecutor’s Office (EPPO) and the PIF Directive”, in SANTOS, Margarida, MONTE, Mário Ferreira e MONTEIRO, Fernando Conde (coord.), Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/ os_novos_desafios_cooperacao_jud_e_policial_ue_implementacao_da_pe/ (última consulta a 20-1-2018), especialmente pp. 85 e ss.

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distintas das receitas provenientes dos recursos próprios do IVA e (iv) fraude em relação a receitas provenientes dos recursos próprios do IVA24. Além disso, como supra indicámos, nos termos do artigo 4.º da Diretiva PIF, a Procuradoria Europeia terá competência no âmbito de “[o]utras infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União”. A competência da Procuradoria Europeia estende-se ao branqueamento de capitais - tal como descrito no artigo 1.º, n.º 3, da Diretiva (UE) 2015/849 - quando envolva bens que sejam produto das infrações penais lesivas dos interesses financeiros (art.º 4.º, n.º 1, da Diretiva PIF). A Procuradoria Europeia terá também competência no âmbito dos crimes de corrupção passiva e ativa (art.º 4.º, n.º 2, da Diretiva PIF). Na esteira da al. a) e b), do n.º 2, deste artigo, a corrupção passiva diz respeito “[a]o facto de um 24 No que concerne a despesas não relacionadas com contratação pública, são considerados fraude lesiva dos interesses financeiros da União: “os atos ou omissões relativos: i) à utilização ou à apresentação de declarações ou de documentos falsos, inexatos ou incompletos, que tenha por efeito a apropriação ou a retenção ilegítimas de fundos ou de ativos provenientes do orçamento da União ou dos orçamentos geridos pela União ou por sua conta, ii) à não comunicação de uma informação, em violação de uma obrigação específica, que produza o mesmo efeito, ou iii) à aplicação ilegítima de tais fundos ou ativos para fins diferentes daqueles para os quais foram inicialmente concedidos” - art.º 3.º, n.º 2, al. a). Quanto às despesas relacionadas com contratação pública, são considerados fraude lesiva dos interesses financeiros da União “pelo menos quando cometidos tendo em vista um proveito ilícito em benefício do autor da infração ou de terceiros, causando prejuízo aos interesses financeiros da União, os atos ou omissões relativos: i) à utilização ou à apresentação de declarações ou de documentos falsos, inexatos ou incompletos, que tenha por efeito a apropriação ou a retenção ilegítimas de fundos ou de ativos provenientes do orçamento da União ou dos orçamentos geridos pela União ou por sua conta, ii) à não comunicação de uma informação, em violação de uma obrigação específica, que produza o mesmo efeito, ou iii) à aplicação ilegítima de tais fundos ou ativos para fins diferentes daqueles para os quais foram inicialmente concedidos, que lese os interesses financeiros da União” - art.º 3.º, n.º 2, al. b). No que respeita a receitas distintas das receitas provenientes dos recursos próprios do IVA a que se refere a alínea d), constituem fraude lesiva dos interesses financeiros da União “os atos ou omissões relativos: i) à utilização ou à apresentação de declarações ou de documentos falsos, inexatos ou incompletos, que tenha por efeito a diminuição ilegal de recursos do orçamento da União ou dos orçamentos geridos pela União ou por sua conta, ii) à não comunicação de uma informação, em violação de uma obrigação específica, que produza o mesmo efeito, ou iii) à aplicação ilegítima de um benefício, obtido legalmente, que produza o mesmo efeito” – art.º 3.º, n.º 2, al. c). No que concerne a receitas provenientes dos recursos próprios do IVA, constituem fraude lesiva dos interesses financeiros da União “os atos ou omissões cometidos no âmbito de esquemas fraudulentos transfronteiriços, relativos: i) à utilização ou à apresentação de declarações ou de documentos relativos ao IVA falsos, inexatos ou incompletos, que tenha por efeito a diminuição dos recursos do orçamento da União, ii) à não comunicação de uma informação relativa ao IVA, em violação de uma obrigação específica, que produza o mesmo efeito, ou iii) à apresentação de declarações relativas ao IVA corretas para fins de dissimulação fraudulenta do não pagamento ou da criação ilícita de direitos a reembolso do IVA - art.º 3.º, n.º 2, al. c).

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funcionário público solicitar ou receber, diretamente ou por interposta pessoa, vantagens de qualquer natureza, para si próprio ou para terceiros, ou aceitar a promessa de tais vantagens, para realizar, ou para se abster de realizar, um ato inerente às suas funções ou no exercício das mesmas, de modo que lese ou possa lesar os interesses financeiros da União”; e a corrupção ativa “[a]o facto de uma pessoa prometer, oferecer ou conceder, diretamente ou por interposta pessoa, uma vantagem de qualquer natureza a um funcionário público, para o próprio ou para terceiros, para realizar, ou para se abster de realizar, um ato inerente às suas funções ou no exercício das mesmas, de modo que lese ou possa lesar os interesses financeiros da União”. Ainda, a Procuradoria Europeia também terá competência no âmbito da apropriação ilegítima referida no art.º 4, n.º 3, da Diretiva PIF, sendo a introdução deste tipo legal uma inovação relativamente à Convenção PIF e aos seus Protocolos. Para efeitos da Diretiva PIF, a apropriação ilegítima refere-se “[a]o facto de um funcionário público, direta ou indiretamente encarregado da gestão de fundos ou de ativos, afetar ou desembolsar fundos, ou se apropriar de ativos ou utilizar ativos para fins contrários ao objetivo para o qual estavam previstos de modo que lese os interesses financeiros da União”. O art.º 4.º, n.º 4, da Diretiva PIF, dá-nos uma noção de “funcionário público” para os crimes de corrupção e de apropriação ilegítima mais ampla do que a constante no anterior Protocolo da Convenção PIF de 96, que tinha uma noção minimalista. De resto, de certa forma, “parece captar melhor a realidade moderna da administração compartilhada e indireta de fundos e ativos da UE”25. O conceito de “funcionário público” abrange, à luz das definições constantes das alíneas a) e b), do n.º 4, do art.º 4.º, da Diretiva PIF, quer um “fun-

25 Assim, ver MARLETTA, Angelo, “The material competence of the European Public Prosecutor’s Office (EPPO) and the PIF Directive”, in SANTOS, Margarida, MONTE, Mário Ferreira e MONTEIRO, Fernando Conde (coord.), Os novos desafios da cooperação judiciária e policial na União Europeia e da implementação da Procuradoria Europeia, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2017, disponível em http://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/os_novos_desafios_cooperacao_jud_e_ policial_ue_implementacao_da_pe/ (última consulta a 20-1-2018), p. 88.

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cionário da União”26 ou um “funcionário nacional”27, aqui se englobando “os funcionários nacionais de outros Estados-Membros e os funcionários nacionais de países terceiros” – al. a) -; bem como “[q]ualquer outra pessoa que assuma e exerça funções de serviço público que impliquem a gestão de interesses financeiros da União ou a tomada de decisões sobre os interesses financeiros da União nos Estados-Membros ou em países terceiros” - al. b). Além do mais, e uma das temáticas mais problemáticas, nos termos do art.º 22.º do Regulamento, a Procuradoria Europeia também é competente no âmbito de outras infrações penais “indissociavelmente ligada[s]”, de acordo com o art.º 25.º n.º 3, do Regulamento28. Com efeito, o Regulamento estabelece um regime (altamente) complexo de exercício de competência da Procuradoria Europeia, contemplando igualmente situações em que este órgão não poderá intervir, muito embora estejam em causa os crimes que lesem os interesses financeiros da União Europeia.

26 Nos termos da alínea a), ponto i), entende-se por “funcionário da União”: “uma pessoa que seja: - funcionário ou outro agente admitido por contrato pela União, na aceção do Estatuto dos Funcionários e do Regime aplicável aos Outros Agentes da União Europeia, estabelecidos pelo Regulamento (CEE, Euratom, CECA) n.º 259/68 do Conselho (1) («Estatuto dos Funcionários»), ou - destacada para a União por um Estado-Membro ou por um organismo público ou privado, e que exerça funções equivalentes às exercidas pelos funcionários ou por outros agentes da União. Sem prejuízo das disposições relativas aos privilégios e imunidades constantes dos Protocolos n.os 3 e 7, são equiparados a funcionários da União os membros das instituições, dos órgãos e dos organismos da União criados nos termos dos Tratados, bem como o pessoal dessas entidades, desde que o Estatuto dos Funcionários não lhes seja aplicável”. 27 Nos termos da alínea a), ponto ii), entende-se por “funcionário nacional”: “uma pessoa definida como «funcionário» ou «funcionário público» no direito nacional do Estado-Membro ou do país terceiro em que exerce as suas funções”. Acrescenta-se que “[n]ão obstante, em caso de ação penal que diga respeito a um funcionário nacional de um Estado-Membro, ou a um funcionário nacional de um país terceiro, instaurada por outro Estado-Membro, este último só é obrigado a aplicar a definição de «funcionário nacional» na medida em que essa definição seja compatível com o seu direito nacional” e que “[a] expressão «funcionário nacional» inclui qualquer pessoa titular de um cargo executivo, administrativo ou judicial a nível nacional, regional ou local. Qualquer pessoa que exerça um cargo legislativo a nível nacional, regional ou local é equiparada a um funcionário nacional”. 28 Como se refere no considerando 54 do Regulamento, “[a] investigação eficiente de infrações lesivas dos interesses financeiros da União e o princípio ne bis in idem podem exigir, em alguns casos, um alargamento da investigação a outras infrações ao abrigo do direito nacional, nos casos em que estas estejam indissociavelmente ligadas a uma infração lesiva dos interesses financeiros da União. A noção de infrações indissociavelmente ligadas deverá ser analisada à luz da jurisprudência pertinente que, para a aplicação do princípio ne bis in idem, mantém como critério relevante a identidade dos factos materiais (ou factos substancialmente idênticos), entendidos no sentido da existência de uma série de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas no tempo e no espaço”.

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Desde logo, nos termos do art.º 24.º, n.os 1 e 2, do Regulamento, as instituições, órgãos e organismos da União e as autoridades dos Estados-Membros competentes devem comunicar à Procuradoria Europeia qualquer conduta criminosa que caiba na sua competência à luz dos art.os 22 e 25.º, n.os 3 e 4, sendo que se a entidade nacional competente abrir uma investigação nesta matéria tem igualmente de informar, para que a Procuradoria Europeia decida se vai ou exercer o seu direito de avocação previsto no art.º 27.º do Regulamento. Na verdade, como se estabelece no considerando 58 do Regulamento, “[a] competência da Procuradoria Europeia relativamente às infrações lesivas dos interesses financeiros da União deverá, regra geral, prevalecer sobre as reivindicações nacionais de competência, de modo a que a Procuradoria Europeia possa garantir a coerência e a direção das investigações e ações penais ao nível da União…”29. Importa, agora, escalpelizar, numa primeira leitura que esperemos retomar, o complexo sistema de exercício - e de não exercício - de competências da Procuradoria Europeia, previsto no art.º 25.º do Regulamento. Com efeito, relativamente ao exercício da competência da Procuradoria Europeia, na esteira do art.º 25.º, n.º 1, do Regulamento, no caso de a Procuradoria Europeia decidir exercer a sua competência (abrindo a investigação ao abrigo do artigo 26.º ou mediante a decisão de fazer uso do seu direito de avocação ao abrigo do artigo 27.º), as autoridades nacionais competentes não exercerão a sua competência relativamente àquele facto criminoso. Não obstante, nos termos do n.º 6, do art.º 25.º, se não houver acordo entre a Procuradoria Europeia e os ministérios públicos nacionais quanto à questão de saber se o facto criminoso cai no leque de competências que supra designamos de competências a título secundário as entidades nacionais competentes decidem a quem compete investigar o caso30. Os n.os 2 e 3 do art.º 25.º, do Regulamento estabelecem limitações ao exercício da Procuradoria Europeia.

29 Referindo-se no considerando 59 do Regulamento que deverá considerar-se existir “… repercussão a nível da União sempre que, por exemplo, uma infração penal tenha natureza e escala transnacional, sempre que essa infração envolva uma organização criminosa, ou sempre que o tipo específico de infração possa constituir uma ameaça grave para os interesses financeiros da União ou o crédito das instituições da União e a confiança dos seus cidadãos”. 30 Art.º 25.º, n.º 6: “Em caso de desacordo entre a Procuradoria Europeia e os ministérios públicos nacionais a respeito da questão de a conduta criminosa estar abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 22.º, n.º 2 ou n.º 3, do artigo 25.º, n.º 2 ou n.º 3, as autoridades nacionais competentes para decidir da atribuição de competências relativas à ação penal a nível nacional decidem quem é competente para investigar o caso. Os Estados-Membros especificam qual a autoridade nacional que tomará decisões em matéria de atribuição de competências.”

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Nos termos do n.º 2, se uma infração penal que cabe na alçada da Procuradoria Europeia tiver lesado ou for suscetível de lesar os interesses financeiros da União em menos de 10 mil euros, a Procuradoria Europeia só pode exercer a sua competência em duas situações: (i) se “[o] processo tiver repercussões a nível da União que exijam que a Procuradoria proceda a uma investigação” - al. a); ou (ii) se “[o]s funcionários ou outros agentes da União Europeia, ou membros das instituições da União, puderem ser suspeitos de ter cometido a infração” - al. b). Além disso, nos termos do n.º 3, a Procuradoria Europeia não irá exercer a sua competência relativamente às infrações penais que cabem na sua competência e reenviará o caso às entidades nacionais competentes nos termos do art.º 34.º, em duas distintas situações. Por um lado, i) nas situações em que a sanção máxima prevista no direito nacional para uma infração abrangida pela competência a título principal (22.º, n.º 1) da Procuradoria Europeia for de severidade igual ou inferior à da sanção máxima para uma infração indissociavelmente ligada (art.º 22.º, n.º 3), a não ser que esta última infração tenha sido instrumental para cometer aquela infração – al. a)31; por outro, ii) nas situações em que se presuma que o prejuízo causado ou suscetível de ser causado aos interesses financeiros da União Europeia pela prática de qualquer infração da competência da Procuradoria Europeia (com exceção da fraude relativa às despesas não relacionadas com a contratação pública; da fraude relativa às despesas relacionadas com a contratação pública e da fraude em relação a receitas provenientes dos

31 Como se estabelece no considerando 55 do Regulamento “[a] Procuradoria Europeia deverá ter o direito de exercer a sua competência quando as infrações estejam indissociavelmente ligadas e a infração lesiva dos interesses financeiros da União seja preponderante em termos de gravidade da infração em causa, conforme refletida nas sanções máximas suscetíveis de ser impostas” E no considerando 56: “[n]o entanto, a Procuradoria Europeia deverá ter também o direito de exercer a sua competência no caso de infrações indissociavelmente ligadas em que a infração lesiva dos interesses financeiros da União não seja preponderante em termos de níveis de sanções, mas em que se considere que a outra infração indissociavelmente ligada tem caráter acessório por ser meramente instrumental para a infração lesiva dos interesses financeiros da União, em particular quando essa outra infração tenha sido cometida com a principal finalidade de criar as condições para cometer a infração lesiva dos interesses financeiros da União, como por exemplo uma infração estritamente destinada a garantir os meios materiais ou legais para cometer a infração lesiva dos interesses financeiros da União, ou para assegurar o lucro ou o produto da mesma” (itálico nosso).

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recursos próprios do IVA)32 não ultrapassa o prejuízo causado ou suscetível de ser causado a outra vítima - al. b)33.

Conclusões Após um longo e difícil debate, foi publicado o Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017, que dá execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia (Regulamento). O texto do Regulamento estabelece “um novo modelo de intervenção penal na União Europeia”, um “tertium genus de intervenção penal na UE”, criando um sistema complexo, híbrido, de multicamadas, onde se desenha um sistema de competências partilhadas entre a Procuradoria Europeia e as autoridades nacionais no exercício da ação penal dos crimes que lesem os interesses financeiros da UE. O âmbito material de atuação da Procuradoria Europeia é definido, a título principal, na Diretiva PIF, onde o nível de harmonização pretendido se afigura reduzido.

32 Art.º 25.º, n.º 3, al. b), segundo parágrafo: “O primeiro parágrafo, alínea b), do presente número não se aplica às infrações referidas no artigo 3.º , n.º 2, alíneas a), b) e d), da Diretiva (UE) 2017/1371, tal como transposta para o direito nacional”. 33 Não obstante, face ao disposto no n.º 4, deste artigo, a Procuradoria Europeia poderá exercer a sua competência mesmo nas situações em que o prejuízo causado ou suscetível de ser causado aos interesses financeiros da UE não ultrapassa o prejuízo causado ou suscetível de ser causado a outra vítima com o consentimento das entidades nacionais competentes, se este órgão da UE estiver melhor posicionado para o efeito: “A Procuradoria Europeia pode, com o consentimento das autoridades nacionais competentes, exercer a sua competência em relação às infrações referidas no artigo 22. º, nos casos que, de outro modo, seriam excluídos devido à aplicação do n.º 3, alínea b), do presente artigo, se se afigurar que a Procuradoria Europeia está mais bem colocada para proceder à investigação ou à instauração da ação penal”. Como se esclarece no considerando 60: “[c]aso não possa exercer a sua competência num caso específico por haver motivos para crer que o prejuízo causado ou suscetível de ser causado aos interesses financeiros da União não excede o prejuízo causado, ou suscetível de ser causado, a outra vítima, a Procuradoria Europeia deverá no entanto poder exercer a sua competência desde que esteja mais bem colocada para investigar ou intentar uma ação penal do que as autoridades do ou dos Estados-Membros em causa. Poderá afigurar-se que a Procuradoria Europeia está mais bem colocada sempre que, por exemplo, seja mais eficaz deixar a Procuradoria Europeia ocupar-se da investigação e ação penal relativas à infração penal em causa devido a esta ter natureza e escala internacional, quando essa infração envolva uma organização criminosa, ou sempre que um tipo específico de infração possa constituir uma ameaça grave para os interesses financeiros da União ou o crédito das instituições da União e a confiança dos seus cidadãos. Nesses casos, a Procuradoria Europeia deverá poder exercer a sua competência com o consentimento das autoridades nacionais competentes do(s) Estado(s)-Membro(s) quando tenha ocorrido um prejuízo para essa(s) outra(s) vítima(s)”.

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Ora, sobretudo se atentarmos que este exercício transnacional da ação penal dependerá, desde logo, da transposição nacional da Diretiva PIF, as (eventuais) divergências neste contexto poderão assumir contornos relevantes e problemáticos. Nesta medida, revela-se mister que exista uma adequada monitorização da implementação da Diretiva PIF e que se alcance uma efetiva “harmonização”, desde logo, nesta matéria de cariz substantivo, para que este modelo assim delineado não coloque em causa os desideratos pretendidos com a sua conceção.

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A CORRUPÇÃO NO SECTOR PRIVADO E NO COMÉRCIO INTERNACIONAL

Anabela Susana de Sousa Gonçalves1

Resumo: Este estudo versa sobre a corrupção no sector privado e no comércio internacional, tendo como pressuposto o conceito de responsabilidade social das empresas, no sentido da atuação ética e transparente das empresas constituir um meio para um desenvolvimento sustentável. Neste sentido, são analisados certos comportamentos que configuram situações de corrupção privada, em primeiro lugar, sob a perspectiva do direito nacional e, posteriormente, sob a perspectiva do Direito Internacional Privado, quando as mesmas situações ocorrem no âmbito do comércio internacional. Abstract: This study analyses the corruption in the private sector and in international trade, based on the concept of corporate social responsibility, so that ethical and transparent business can be a source for sustainable development. In this regard, certain behaviors that constitute situations of private corruption are explored, first, from the perspective of national law and, later, when the same situations occur in the scope of international trade, from the perspective of Private International Law. Palavras-chave: responsabilidade social das empresas; corrupção privada; comércio internacional; relações transnacionais; Direito Internacional Privado 1 Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.

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A corrupção no sector privado e no comércio internacional Anabela Susana de Sousa Gonçalves

Keywords: corporate social responsibility; private corruption; international trade; cross-border relations; Private International Law Sumário: 1. Corrupção e responsabilidade social das empresas; 2. O conceito de corrupção; 3. A corrupção no sector privado; 4. A corrupção no comércio internacional; 4.1. O contrato de corrupção; 4.2. Contrato objecto de corrupção; 5. Conclusão

1. Corrupção e responsabilidade social das empresas Nas sociedades modernas democráticas, a necessidade de transparência na tomada de decisões e no funcionamento do Estado, e outras organizações, chamou a atenção para o fenómeno da corrupção no sector público e privado e para a responsabilidade social das empresas. A responsabilidade social das empresas significa que as empresas devem assumir responsabilidade pelo impacto das suas actividades na sociedade. Tendo como fundamento a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, as Nações Unidas elaboraram os dez Princípios do Pacto Global das Nações Unidas (United Nations Global Compact)2. Estes dez princípios trazem uma aproximação diferente sobre a forma como as empresas desenvolvem a sua actividade negocial, no sentido em que as empresas onde quer que desenvolvam a sua actividade devem assegurar o cumprimento de responsabilidades fundamentais nas áreas dos direitos humanos, do trabalho, do meio ambiente e no âmbito das responsabilidades anticorrupção. Estes princípios implicam a adopção de boas práticas, de valores e princípios em políticas e procedimentos, de forma a estabelecer uma cultura de integridade e de responsabilidade empresarial que permita um desenvolvimento sustentável3. O princípio décimo do United Nations Global Compact é precisamente um princípio anti-corrupção onde se estabelece, como uma das vertentes da responsabilidade social das empresas, que estas devem actuar contra a corrupção em todas as suas formas, incluindo a extorsão e o suborno. Também a OCDE elaborou um conjunto de directizes dirigidas às empresas multinacionais, ou seja aquelas que operam no mercado internacional, e que provêm de países membros da OCDE ou operam em países membros daquele 2

Informação retirada de https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/mission/principles, em 14.01.2018.

3 Idem, ibidem.

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organismo internacional. Estas directrizes são recomendações para uma conduta empresarial e comercial responsável, de acordo com padrões internacionalmente reconhecidos e que os Estados membros da OCDE se comprometem a promover, de maneira a que as empresas contribuam positivamente para o progresso económico, ambiental e social em todo o mundo.4 Entre outras recomendações, de acordo com as directizes da OCDE, as empresas não devem, direta ou indiretamente, oferecer, prometer, dar ou exigir um suborno ou outra vantagem indevida para obter ou reter negócios ou outra vantagem inadequada. As empresas também devem resistir à solicitação de subornos e extorsão5. A actuação ética e transparente das empresas é também visto como um meio de garante para um desenvolvimento sustentável pela União Europeia. A globalização trouxe a redução de barreiras ao comércio, tendo-se tornado mais fácil o acesso a um mercado mundial mais vasto, gerando-se novas oportunidades de negócio para empresas, permitindo-lhe o acesso a mais financiamento, numa palavra, a um maior desenvolvimento. Uma das conclusões a que se chegou no EU Multi Stakeholder Forum on Corporate Social Responsibility, realizado em 2015 na Bélgica, foi que, neste contexto, o comércio internacional pode ser um motor para o crescimento sustentável reduzindo os desequilíbrios sociais e económicos entre os Estados e dentro dos Estados6. Para o efeito é necessário, entre outros, um comportamento empresarial responsável de acordo com os padrões internacionais e uma intervenção dos organismos europeus de forma a que sejam criados mecanismos e canais de diálogo entre Estados e empresas para limitar a corrupção7. Assim, é compromisso da Comissão Europeia promover a responsabilidade social empresarial na União Europeia, encorajando as empresas a aderir às orientações e princípios internacionais, supra referidos, através de uma agenda de acções que passa, entre outros: por divulgar boas práticas; melhorar os processos de auto-regulação e de co-regulação; melhorar as recompensas de mercado para a actuação empresarial responsável; enfatizar a importância das políticas nacionais e subnacionais de responsabilidade social empresarial; alinhar as abordagens europeias e globais…8

4 OECD, OECD Guidelines for Multinational Enterprises, OECD Publishing., 2011, p. 3, https:// www.oecd.org/corporate/mne/48004323.pdf, consultado em 14.01.2018. 5 Idem, ibidem, p. 47. 6 EUROPEAN COMMISSION, EU Multi Stakeholder Forum on Corporate Social Responsibility 3-4 February, 2015 Brussels, Belgium file:///C:/Users/Utilizador/Downloads/Executive%20 Summary_CSR_MSF_2015%20(1).pdf, em 14.01.2018. 7 Idem, ibidem. 8 Informações retiradas de http://ec.europa.eu/growth/industry/corporate-social-responsibility_ en, consultada em 14.01.2018.

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No plano internacional, podemos apontar como instrumentos de combate à corrupção, a Convenção sobre a luta contra a corrupção de agentes públicos estrangeiros nas transacções comerciais internacionais, de 17 de dezembro de 19979, da OCDE e a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, de 31 de Outubro de 200310, e a Convenção da União Europeia sobre o combate contra a corrupção envolvendo funcionários das Comunidades Europeias ou funcionários dos Estados membros da União Europeia de 199711, a Convenção de Direito Criminal contra a Corrupção do Conselho de Europa, de 30 de Abril de 199912.

2. O conceito de corrupção A corrupção é muitas vezes uma prática associada ao poder público e ao abuso de poder público em proveito próprio e para ganhos privados, desviando recursos da sua aplicação normal, mas vários autores têm proposto um alargamento da análise do fenómeno para abranger aquele tipo de corrupção que ocorre entre agentes do sector privado, sendo substituída a ideia de abuso de poder público por um conceito mais amplo de abuso de autoridade13. Assim, neste sentido mais amplo, a corrupção é definida pela Transparency International como «o abuso do poder confiado para ganho privado»14, ou por Antonio Argandoña como «the act or effect of giving or receiving a thing of value, in order that a person do or omit to do something, in violation of a formal or implicit rule about what that person ought to do or omit to do, to the benefit of the person who gives the thing of value or a third party»15 ou no Anti-Corruption Handbook for Business como «any behaviour of any person employed in civil service (state politician, judge, state official, civil servant or other equivalent person) or in the private sector, exceeding one’s authority, behavioral standards established in le9 Aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 32/2000. 10 Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007, de 21 de setembro 11 Resolução da Assembleia da República n.º 72/2001. 12 Resolução da Assembleia da República n.º 68/2001. 13 Neste sentido, BRANCO, Manuel Castelo, Empresa, responsabilidade Social e Corrupção, Observatório de Economia e Gestão de Fraude, Working Paper n.º 6/2010, p. 11, https://obegef.pt// wordpress/wp-content/uploads/2010/07/wp006.pdf, consultado em 14.01.2018; BREW, Peter – CHUNG, Da Woon - COTE-FREEMAN, Susan – HOROWITZ, Brook – MAKINWA, Olajobi – TROTT, Adam – WILKINSON, Peter, Business Against Corruption, A Framework for Action, United Nations Global Compact Office, New York, p. 7; ARGANDOÑA, Antonio, «Corruption and Companies: The Use of Facilitating Payments», Journal of Business Ethics, Volume 60, Issue 3, 2005, p. 252. 14 BREW, Peter, et al., Business Against Corruption, Cit., p. 10. 15 ARGANDOÑA, Antonio, «Corruption and Companies: The Use of Facilitating Payments», Journal of Business Ethics, Volume 60, Issue 3, 2005, p. 252.

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gal acts or company’s internal rules, in the pursuit of private or other persons’ advantage thus causing harm to the interests of the State or individual natural or legal persons»16. Foi também este sentido amplo da corrupção como abrangendo práticas do sector privado que está presente no Relatório sobre a corrupção nos setores público e privado: o impacto nos direitos humanos em países terceiros, do Parlamento Europeu, de 19 de Agosto de 201317. Neste estudo, interessa-nos, precisamente, este conceito amplo de corrupção, para na vertente de sector privado18. Das definições supra elencadas resulta claro que a corrupção influencia negativamente o desenvolvimento, o crescimento19 e, especificamente, no caso da corrupção no sector privado, interfere com o funcionamento normal das instituições e traduz-se em perdas económica através da ineficiência e da má alocação de recursos20. Caso um administrador ou trabalhador ou um intermediário no negócio resolva actuar em benefício próprio ou de outrem, contrariando as suas obrigações e responsabilidades e o dever de velar pelos interesses da empresa em que trabalha ou para quem trabalha, está prejudicá-la, quando a decisão é determinada por um elemento de corrupção em detrimento de um critério de eficácia ou de melhor negócio. Independentemente das consequências criminais destes actos, interessa-nos as suas consequências civis. Além do dano efectivo que este comportamento pode ter para a própria empresa, há um dano causado à reputação da empresa e, numa perspectiva macroeconómica, ao funcionamento do mercado competitivo, a uma concorrência leal e ao desenvolvimento sustentável dos países.

16 Consultado em http://avv.stt.lt/HANDBOOK/4-The-Concept-of-Corruption, em 14.01.2018. 17 Parlamento Europeu, Relatório sobre a corrupção nos setores público e privado: o impacto nos direitos humanos em países terceiros (2013/2074(INI)), Comissão dos Assuntos Externos, A7-0250/2013, 19.8.2013, consultado em http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+REPORT+A7-2013-0250+0+DOC+PDF+V0//EN, 14.01.2018. 18 Note-se que a Convenção de Direito Criminal contra a Corrupção do Conselho de Europa e a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção incidem também sobre a corrupção no sector privado, resultando delas que os países devem proibir o suborno no sector privado (arts. 7.º e 8.º da Convenção de Direito Criminal contra a Corrupção, respectivamente sobre a corrupção activa e passiva); e estabelecendo a obrigação dos Estados criminalizarem a corrupção no sector privado, no decurso de actividades económicas, financeiras ou comerciais (art. 21.º da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção). 19 BRANCO, Manuel Castelo, Empresa, responsabilidade Social e Corrupção, Cit., p. 12. 20 SÖÖT, Mari-Liis - JOHANNSEN, Lars – PEDERSEN, Karin Hilmer – VADI, Maaja – REINO, Anne, Private-to-private corruption: Taking business managers’ risk assessment seriously when choosing anti-corruption measures, p. 2, consultado em https://www.oecd.org/cleangovbiz/Integrity-Forum-16-Soot-Johannsen-Pedersen-Vadi-Reino.pdf, em 14.01.2018.

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3. A corrupção no sector privado

3.1. A corrupção no sector privado pode envolver comportamentos diversos, desde pagamentos indevidos, fraude empresarial, manipulação de contas e uso de informação privilegiada. Nas relações comerciais com clientes e fornecedores pode envolver «(…) o suborno de agentes de compras para ganhar negócios em detrimentos de outras empresas do sector. E até, num ambiente de mercado mais amplo, o abuso do poder confiado pode envolver o conluio de preços com concorrentes, lesando os mercados e os consumidores»21. Pode abarcar ainda o suborno de agentes intermediários que têm como função encontrar no mercado os melhores negócios para certa empresa, no sentido daqueles indicarem certos agentes no mercado em lugar de outros que poderiam se traduzir em negócios mais vantajosos para a referida empresa. Ora, além da responsabilidade contratual, que obrigará o administrador ou trabalhador ou intermediário que resolva actuar em benefício próprio ou de outrem, a ressarcir os danos sofridos pela empresa em resultado da adopção de decisões geradas por critérios de corrupção, em detrimento de critérios de eficácia ou de melhor negócio, é necessário também ponderar a sorte do negócio celebrado. As consequências que advêm de um acto de corrupção podem ser diversas em função das circunstâncias do caso concreto. 3.2. Recorramos, então, a um primeiro exemplo. Um director de compras de uma empresa (X), pessoa coletiva, recebe um suborno de uma empresa (pessoa coletiva), fornecedora de matérias-primas (Y), para que aquela empresa (X) compre uma certa quantidade de matérias-primas a esta empresa (Y), a um certo preço, em lugar de comprar a outra empresa concorrente. O director de compras, motivado pelo suborno, compra da matéria-prima à empresa Y, em lugar de comprar a outra empresa concorrente em nome e por conta da empresa X. Quais as consequências civis da corrupção face ao contrato celebrado? Além da responsabilidade criminal por corrupção no sector privado22, parece-nos óbvio que qualquer contrato entre o corruptor e o agente corrompido é nulo por contrário à lei e aos bons costumes nos termos do art. 280º do CC. Note-se que, no âmbito da tutela penal, para existir corrupção no sector privado 21 BURGOA, Elena, «A Corrupção e a Responsabilidade Social Empresarial», II Congresso Internacional de Ciências Jurídico-Empresariais, p. 144, consultado em https://iconline.ipleiria.pt/ bitstream/10400.8/855/1/artigo8_II_CICJE.pdf, em 14.01.2018. 22 À luz da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, sobre Responsabilidade Penal por Crimes de Corrupção no Comércio internacional e na Actividade Privada, que no art. 8º prevê a corrupção passiva no sector privado e no art. 9º prevê a corrupção activa no sector privado. Esta lei é uma transposição da Decisão-Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003, relativa ao combate à corrupção no sector privado.

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não é necessário um acto de execução. O art. 8º da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, referente à corrupção passiva no sector privado, diz que incorre em crime de corrupção quem solicitar ou aceitar vantagem patrimonial ou a sua promessa para um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais. O mesmo sucede no art. 9.º do referido diploma, em relação à corrupção activa. Isto significa que não é necessário o acto de execução para estarmos perante uma situação de corrupção no âmbito do direito penal, conclusão que nos parece que se pode transpor para o direito civil. Questão mais complicada é a questão do contrato celebrado entre a empresa X e a empresa Y. Temos de admitir, por hipótese que a empresa X pode ter interesse em manter o contrato, caso este não lhe cause prejuízos. Na ordem jurídica portuguesa, a pessoa que compra é a empresa X que tem personalidade e capacidade jurídica para o efeito, nos termos do art. 160º do Código Civil português. Nos termos do art. 115º, n.º 3 do Código do Trabalho, quando a natureza da actividade envolver a prática de negócios jurídicos, considera-se que o contrato de trabalho concede ao trabalhador os necessários poderes, ou seja, o contrato de trabalho é o negócio jurídico de base à representação voluntária23 que permite ao director de compras, celebrar um negócio jurídico, em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem. Cumpridos estes requisitos, o negócio produz efeitos na esfera jurídica do representado, nos termos do art. 258º. Nestes casos temos de ponderar se não estaremos perante uma situação de abuso de representação, ou seja, aquela situação em que o representante actua dentro dos limites formais ou funcionais dos poderes que lhe foram conferidos, utilizando conscientemente esses poderes em sentido inverso ao pretendido pelo representado. Deste modo, estamos perante um abuso de representação quando se verifique «(…) o exercício dos inerentes poderes em oposição com a relação subjacente: com o que dela resulte, de modo directo ou por violação dos deveres de lealdade que ela postula»24. Se a contraparte não conhecia o abuso de representação, nem o deveria conhecer, falta um dos requisitos do art. 269º, não podendo ser aplicado o regime previsto na norma. Logo, de acordo com a regra geral do art. 258º, o representado fica vinculado, produzindo-se os efeitos jurídicos do negócio na sua esfera jurídica, o que é razoável, pois o representado deve ter cuidado na escolha dos seus representantes, devendo arcar com o risco de uma má represen-

23 V. HÖRTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, Coimbra, 1992, p. 485. 24 Neste sentido, CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, tomo IV, Almedina, Coimbra, 2007, p. 112.

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tação, e não a contraparte25. Subjacente a este regime jurídico encontra-se, então, a necessária relação de confiança entre o representante e o representado26, que implica que o representado arque com as consequências jurídicas do negócio celebrado quando a contraparte não conhecia o abuso de representação, nem o deveria conhecer. Todavia, na situação que estamos a analisar o agente que corrompe, a contraparte do negócio conhecia ou deveria conhecer o abuso. Logo, nos termos do art. 269º é aplicável o regime da representação sem poderes, ou seja, o negócio é válido, mas ineficaz em relação ao representado (art. 268º, n.º 1). A ineficácia deste acto beneficia o representado27, pois este terá a possibilidade de o ratificar, chamando a si os efeitos do negócio jurídico, nos termos estabelecidos no art. 268º, o que fará provavelmente se considerar o negócio proveitoso. A ratificação tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiros (art. 268º, n.º 2), considerando-se através dela o negócio eficaz ab initio. Já a contraparte, nesta situação, tem o direito de fixar um prazo cominatório para a ratificação, findo o qual a ratificação se considera negada (art. 268º, n.º 3), fazendo cessar a incerteza que poderá resultar do regime estabelecido no art. 268º, n.º 128. Nas situações de abuso de representação, como nos diz Heinrich Ewald Hörster, existe um abuso de direito, um abuso do direito formalmente existente actuando o representante aos interesses do representado29. Além disso, é necessário que o abuso seja consciente30, no sentido que o representante abuse conscientemente dos seus poderes

25 Há uma maior tutela da contraparte no abuso representação, face à representação sem poderes, por um lado, porque o abuso de representação é menos perceptível por parte da contraparte e a falta de poderes de representação pode ser mais facilmente verificável, já que o art. 260º estabelece que a contraparte pode exigir a justificação dos poderes de representação. V., neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 5ª Ed., Universidade Católica, 2010, pp. 274-275; ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil Teoria Geral, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 260-261; MOTA, Helena, Do abuso de representação: uma análise da problemática subjacente ao artigo 269º do Código Civil de 1966, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 135. 26 ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil Teoria Geral, Cit., p. 261. 27 Nestes termos, ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil Teoria Geral, Cit., p. 257. 28 Nas relações internas, o representante pode exigir ao representado que actuou contrariamente aos seus interesses o ressarcimento pelos danos sofridos. 29 HÖRTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, Cit., p. 489. 30 Neste sentido, HÖRTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, Cit., p. 489; MOTA, Helena, Do abuso de representação, Cit., pp. 144-145; Pires de, VARELA, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 249; VASCONCELOS, Pedro Pais de, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª Ed., 2012, Almedina, Coimbra, p. 294;

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representativos, pondo em causa a relação de confiança que o liga ao representado31. Heinrich Ewald Hörster considera, numa opinião que partilhamos, que quando o representante agindo dentro dos seus poderes funcionais e a contraparte «(…) colaboram conscientemente para prejudicar o representado «(…) o negócio é ofensivo dos bons costumes, caindo assim na alçada do art. 281º tendo como consequência a nulidade», existindo no caso uma colusão. Ora, parece-nos que as situações de corrupção privada está em causa uma colusão em que o representante e a outra parte colaboram conscientemente para prejudicar o representado, enfermando o negócio celebrado de uma nulidade por ofensa dos bons costumes. É certo que há um objectivo de benefício pessoal do agente corruptor e do próprio corrompido, mas há também subjacente um prejuízo para o representante que se poderia traduzir em negócios mais vantajosos para a referida empresa se não fosse a situação de corrupção. Além disso, como vimos supra, a corrupção privada interfere com o funcionamento normal das organizações e traduz-se em perdas económica através da ineficiência e da má alocação de recursos. Esta é também a opinião de Coutinho de Abreu nas situações em que os administradores das sociedades comerciais e terceiros colaboram conscientemente e intencionalmente em prejuízo da sociedade comercial. Ainda que admita que a maioria dos autores aplica analogicamente o art. 269º do CC e o regime do abuso de representação, o referido Autor considera que não está em causa uma mera utilização dos poderes de vinculação contrariamente ao interesse social, mas antes um abuso «(…) qualificado, [em que] há concertação ou conluio entre administradores e terceiros em prejuízo da sociedade»32, devendo a sanção ser a nulidade do negócio por ter um fim contrário aos bons costumes, nos termos do art. 281º do CC.

31 Na ausência de regras especiais, este regime aplica-se também à representação orgânica das fundações e das associações, em que os órgãos, que fazem parte da estrutura da pessoa colectiva, agem pela pessoa colectiva. Quando é o próprio titular do órgão que actua conscientemente e em abuso dos poderes representativos, parece-nos ser de aplicar analogicamente o art. 269º. Assim defende VASCONCELOS, Pedro Pais de, Teoria Geral do Direito Civil, Cit., p. 291, em relação ao regime do art. 298º, mas que por maioria de razão nos parece extensível ao art. 269º, argumentando que «(…) a semelhança de ratio legis permite a sua aplicação, mutatis mutandis». Em relação às sociedades comerciais existe um regime específico no Código das Sociedades Comerciais que não difere muito do regime civil. Defendendo a aplicação analógica do art. 269º quando estão em causa administradores corruptos que celebram negócios em nome da pessoa colectiva, abusando dos seus poderes como administradores, v. PINHEIRO, Luís de Lima, «A corrupção nos contratos comerciais internacionais – uma perspectiva de direito material e de direito internacional privado», Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, A. 11 (2014), 2015, p. 189. 32 ABREU, J. M. Coutinho, «Vinculação das sociedades comerciais» in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, org. António Menezes Cordeiro, Pedro Pais de Vasconcelos, Paula Costa e Silva, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2008, p. 1236.

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O representante, por sua vez, incorre em responsabilidade contratual perante o representado, uma vez que no cumprimento das obrigações negociais tem o dever de agir de acordo com o princípio da boa-fé, segundo a norma do art. 762º, n.º 2. Considerando que existe uma colusão e o negócio é nulo, por ser ofensivo dos bons costumes (art. 281º), o regime regra da nulidade permite uma legitimidade activa ampla. Ou seja, nos termos do art. 286º pode invocar a nulidade qualquer interessado, o que nos parece estar de acordo com a gravidade da conduta em causa. Se, eventualmente, o representado tiver interesse no negócio celebrado resta-lhe a renovação do negócio jurídico, que terá efeitos apenas para o futuro33. 3.3. No segundo exemplo, o agente corrompido é um intermediário do negócio, que tem como função auxiliar a empresa (X) na procura de certo tipo de negócios em condições vantajosas, sendo que por força do ato de corrupção influencia (X) na celebração de um negócio com o agente corruptor (Y). Neste caso, o agente corrompido é apenas um auxiliar do negócio, mas influencia o comportamento negocial da empresa (X). O contrato que liga aquele agente a esta empresa poderá configurar um contrato de mediação, através do qual o agende, mediante retribuição, se vincula a estabelecer uma relação de negociação entre quem o contratou para esse efeito e um terceiro, com vista à celebração com este último de certo negócio jurídico. O mediador age de forma imparcial, com neutralidade com vista à aproximação de eventuais contraentes, mediante retribuição34. O mediador terá como função a prática de um conjunto de actos materiais na procura de eventuais contraentes, com vista à celebração de certo negócio35. Este será um contrato de prestação de serviços (art. 1154º) atípico, que deverá ser executado de acordo com o princípio da boa-fé (art. 762º), o que significa que o mediador incorrerá em responsabilidade contratual, caso aconselhe um negócio motivado pelo acto de corrupção a que sucumbiu. Quanto ao contrato que liga o agente corruptor e o agente corrompido, parece-nos que este deve ser nulo por contrário à lei e aos bons costumes nos termos do art. 280º do CC, nos termos referidos supra. 33 Sobre a renovação, v. HÖRTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, Cit., p. 600. 34 Neste sentido, BARATA, Carlos Lacerda, «Contrato de Mediação» in Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. I, Coord. Luís Menezes Leitão, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 186-187; BRITO, Maria Helena, O Contrato de Concessão Comercial, Almedina, Coimbra, 1990, pp. 115117. 35 ANTUNES, José A. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2014, p. 460.

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Outra questão é determinar se o contrato celebrado entre a empresa (X) e o agente corruptor (Y), influenciado pelo comportamento do mediador corrompido, é válido. Para esse efeito temos de analisar, se o contrato foi celebrado enfermando de um vício de vontade, ou seja, se no caso se verifica uma deformação processo formativo da vontade, viciando-a, sendo que «[a] vontade viciada diverge da vontade que o declarante teria tido sem a deformação (= vontade conjectural ou hipotética)»36, não se tendo esta formado de forma esclarecida e livre. As hipóteses que se podem colocar é a existência de dolo ou de erro sobre os motivos, em função das circunstâncias do caso concreto. O dolo é um vício de vontade, previsto no art. 253º, sendo necessário qualquer sugestão ou artifício que o declaratário ou terceiro empregue ilicitamente com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração (dolo activo), bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante (dolo omissivo). Numa situação de dolo o declarante está em erro, sendo este provocado por acção ou por omissão por um declaratário ou por terceiro. Provindo o dolo do declarário, o negócio é anulável nos termos do art. 254º, n.º 137. Outro fundamento de anulação poderá ser o erro sobre os motivos, vício de vontade previsto no art. 252º, em que o declarante está em erro, porque a sua vontade não se formou correctamente, baseando-se numa ideia ou circunstância inexacta, sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida ou, pelo menos, seria emitida noutros termos. O erro sobre os motivos é juridicamente irrelevante, salvo em três situações elencadas no art. 252º. Um delas é o erro sobre os motivos que se refira à pessoa do declaratário ou o objecto do negócio e que pode dar origem à anulação, nos termos do art. 251º. A segunda é o erro sobre os motivos quando as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade daqueles motivos, o que dá origem à anulação do negócio nos termos do art. 252º, n.º 1. A terceira é o erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, sendo-lhe aplicável nos termos do art. 252º, n.º 2, o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído, ou seja, isto significa que se aplica o regime previsto do art. 437º a 439º.

36 HÖRTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, Cit., p. 567. 37 Cremos que na hipótese de que estamos a tratar não se pode aplicar o regime do dolo de terceiro, previsto no art. 254º, n.º 2, porque, como nos diz HÖRTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, Cit., p. 585, terceiro é «(…) quem não tiver sido envolvido na conclusão do negócio, nem como parte, nem como representante, nem como auxiliar, sendo assim terceiro que é essencialmente alheio ao negócio». Ora, no nosso caso, o mediador não é de todo alheio ao negócio. É certo que não é parte, nem representante, mas aparece como auxiliar do negócio.

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3.4. Analisadas brevemente as duas situações exemplificadas no âmbito do direito nacional português, pode-se colocar a questão de ambos os exemplos de corrupção decorrerem no âmbito de um contrato internacional. Imaginemos que, no primeiro exemplo, a empresa X tem sede num país e o seu director comercial é corrompida por outra empresa Y com sede noutro país, para que seja celebrado um contrato internacional de compra de matérias-primas entre as duas empresas. Num segundo exemplo, a empresa X contrata um mediador para este procurar no mercado internacional um negócio vantajoso de compra de matérias-primas e este mediador, corrompido pela empresa Y, que tem sede noutro país, indica a empresa Y. Em qualquer uma destas situações e independentemente da responsabilidade contratual entre a empresa X e o seu director comercial, e a empresa X e o mediador, pretendemos analisar a sorte dos negócios celebrados entre a empresa X e a empresa Y.

4. A corrupção no comércio internacional Quando a situação de corrupção envolve um contrato internacional, que está em contacto com mais do que um Estados, temos de apurar por que lei vamos aferir as consequências civis da acção de corrupção face aos contratos em causa, pois não será necessariamente aplicável a lei portuguesa. Convém, por isso, fazer uma distinção entre o contrato de corrupção e o contrato objecto de corrupção, para aferir qual a lei aplicável a cada um dos contratos e pela qual vamos aferir a sua validade.

4.1. O contrato de corrupção

4.1.1. Na União Europeia, o regime conflitual referente aos contratos internacionais está previsto no Regulamento n.º 593/2008, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), que veio substituir a Convenção de Roma de 1980 sobre a Lei Aaplicável às Obrigações Contratuais (CR)38. O Regulamento Roma I unificou o direito conflitual referente às obrigações contratual e está estruturado em torno do princípio da autonomia da vontade, do princípio de proximidade, do princípio da protecção da parte mais fraca, do reconhecimento de efeitos a normas de aplicação imediata e do reconhecimento dos interesses nacionais dos Estados, através da figura da reserva de ordem pública internacional. De acordo com o art. 1º, n.º 1, o Regulamento Roma I aplica-se às obrigações contratuais que envolvam um conflito de leis, ou seja, aquelas que estão 38 A CR é um instrumento de direito internacional público, que vincula os Estados-Membros e foi elaborada no âmbito da cooperação intergovernamental. Esta convenção internacional entrou em vigor em 1991. Portugal aderiu à CR, através da Convenção do Funchal de 18 de maio de 1992, tendo aquela entrado em vigor no país em 1 de setembro de 1994.

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em contacto com mais do que uma ordem jurídica em matéria civil e comercial, excluindo-se as questões fiscais, aduaneiras e administrativas39. Ficam simultaneamente excluídas do âmbito material de Roma I, as obrigações emergentes de negócios unilaterais e as matérias elencadas no seu art. 1º, n.º 2. O regulamento Roma I tem um âmbito de aplicação universal, o que significa que a lei designada por força das normas nele previstas é aplicável, ainda que a ordem jurídica indicada não seja a de um Estado-Membro. Quanto ao seu âmbito de aplicação espacial, Roma I é aplicável a contratos celebrados a partir de 17 de dezembro de 2009 (art. 29º). Aos contratos celebrados em data anterior, mas que sejam posteriores a 1 de setembro de 1994 é aplicável a CR de acordo com o seu art. 17º. 4.1.2. Além das normas de conflitos especiais40, o regulamento Roma I contém normas gerais aplicáveis à substância do contrato. Nesta categoria, enquadramos o art. 3º que é uma concretização do princípio da autonomia da vontade. Na ausência de escolha de lei, a norma que indica a lei supletivamente aplicável é o art. 4º, que traduz o princípio de proximidade. Ora, serão estas normas que vamos utilizar para aferir a validade do contrato de corrupção. O art. 3º de Roma I estabelece o princípio da autonomia da vontade, que se traduz na possibilidade de as partes escolherem a lei aplicável à relação jurídica contratual, estabelecendo a autonomia da vontade de forma significativamente ampla. O interesse das partes, que no direito material se traduz pelo princípio da liberdade contratual, no direito conflitual consubstancia-se na designação pelas partes da lei que vai reger a relação jurídica, correspondendo esta escolha a um interesse partilhado por ambos os contraentes. A eleição de lei em Roma I obedece a certos requisitos de validade. Pode resultar de uma declaração expressa ou tácita (art. 3º, n.º 1), pois a escolha de lei pode ser inferida das circunstâncias do caso concreto. A escolha apenas pode incidir sobre uma ordem jurídica estadual, resultado de uma interpretação literal do Regulamento41, nomeadamente: do art.

39 Sobre o conceito de matérias fiscais, aduaneiras e administrativas, v. GONÇALVES, Anabela Susana de Sousa, Da Responsabilidade Extracontratual em Direito Internacional Privado, A mudança de paradigma, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 261-262. 40 Aplicáveis ao contrato de transporte (art. 5º), ao contrato de consumo (art. 6º), ao contrato de seguro (art. 7º) e ao contrato individual de trabalho (art. 8º). 41 O art. 1º, n.º 1, do regulamento Roma I, ao delimitar o seu âmbito de aplicação material, determina que este é aplicável aos contratos que envolvam um conflito de leis; o art. 2º que circunscreve o âmbito de aplicação espacial, refere-se expressamente à lei designada pelo regulamento e à lei de Estados terceiros à União; o art. 3º alude à escolha de leis, não deixando abertura para a escolha dos princípios gerais do direito ou para a lex mercatoria como forma de regular o contrato.

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1º, n.º 1; do art. 2º; do art. 3º, entre outros argumentos42. As partes podem proceder a um depeçage voluntário do contrato, ou seja, as partes podem escolher leis diferentes para regular aspectos parcelares do contrato, nos termos do art. 3º, n.º 1. A escolha pode ser contemporânea ou posterior à celebração do contrato, ficam, porém, ressalvados os direitos de terceiros e a validade formal do contrato (art. 3º, n.º 2). O art. 3º, n.º 3, admite a escolha de lei, quando todos os elementos do contrato se encontram em conexão com a lei de um único país, no entanto, esta não prejudica a aplicação das disposições imperativas da lei deste país. Por fim, no n.º 4, do art. 3º, o regulamento Roma I salvaguarda na escolha de lei as disposições do direito da UE. Parece-nos, todavia, duvidoso que as partes prevejam um acordo de eleição de lei, num contrato de corrupção. Assim sendo, aplica-se a norma supletiva do art. 4º, baseada no princípio de proximidade. Como não nos parece que o contrato de corrupção se possa incluir na tipologia elencada no n.º 1, do art. 4º, resta-nos a aplicação do n.º 2, que manda aplicar a lei da residência habitual do devedor da prestação característica do contrato. De acordo com o Relatório Explicativo da Convenção de Roma, «[a] concepção da prestação característica permite, essencialmente, ligar o contrato ao meio socioeconómico no qual este se vai inserir»43. A prestação que distingue e caracteriza o contrato será a prestação não pecuniária do mesmo, o que, v.g., num contrato de compra e venda será a prestação do vendedor. Ora, num contrato de corrupção será a prestação do agente corrompido, logo ao contrato de corrupção pode ser aplicado a lei da residência habitual do agente corrompido. Note-se, todavia, que o art. 4º, n.º 3, tem ainda uma cláusula de excepção. Se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato tem uma conexão manifestamente mais estreita com uma lei diferente daquela indicada pelas conexões previstas no n.º 1 e n.º 2 da norma, será essa a lei aplicável. Os elementos a ponderar dependem das circunstâncias do caso concreto e das ligações que tenham com a situação. A cláusula de excepção é um mecanismo inspirado no princípio de proximidade e de intervenção excepcional, cuja intervenção está limitada: à exigência da pouca da pouca ligação da lei designada pelas conexões principais com a causa, partindo da análise do caso concreto; à existência de

42 V. GONÇALVES, Anabela Susana de Sousa, «Breves notas sobre as normas de conflitos aplicáveis aos contratos internacionais» in Direito na Lusofonia. Cultura, direitos humanos e globalização, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016, pp. 45-53; PINHEIRO, Luís de Lima, «O novo regulamento comunitário sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) – uma introdução», ROA, Ano 68, 2008, pp. 594-595, ainda que se manifestando a favor da designação da lex mercatoria como lex contractus. 43 Com mais desenvolvimento, v. GIULIANO, Mario, LAGARDE, Paul, Report on the Convention on the law applicable to contractual obligations, JO C 282, de 31.10.1980, pp. 19-21.

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outra ordem jurídica com um contacto manifestamente superior com a situação sub judice. 4.1.3. Chegados a este ponto, temos de considerar duas situações. Ou a lei aplicável é a portuguesa e, nesse caso, aplica-se o regime supra referido. Ou a lei aplicável é estrangeira e aí temos de aferir o seu conteúdo. Caso a lei estrangeira adopte idêntico juízo de censurabilidade em relação ao contrato de corrupção, a questão fica resolvida com a nulidade do negócio. Pelo contrário, a lei estrangeira pode considerar o negócio válido ou sancioná-lo com uma invalidade menor. Coloca-se, neste caso, a questão de determinar se os tribunais portugueses, julgando o caso, devem aplicar lei estrangeira. Parece-nos que, neste caso, podemos lançar mão de um limite à aplicação da lei competente e que é a reserva de ordem pública internacional. Esta é um limite à aplicação da lei estrangeira competente ou ao reconhecimento de sentenças ou atos públicos estrangeiros, quando o resultado da intervenção da lei estrangeira ou do reconhecimento da sentença ou ato público estrangeiro seja manifestamente incompatível com os princípios fundamentais do Estado do foro ou com as suas concepções ético-jurídicas fundamentais. A reserva de ordem pública internacional é um mecanismo que visa defender a coerência da ordem jurídica do Estado do foro nas situações em que é aplicável uma lei estrangeira44. Através desta figura são salvaguardados os princípios e valores nucleares e axiais da ordem jurídica do foro, estando a sua intervenção dependente das considerações materiais do ordenamento jurídico daquele Estado. A reserva de ordem pública internacional está prevista no art. 21º do Regulamento. Ora, o combate à corrupção no sector privado tem, em Portugal, tutela jurídico-criminal, cuja intervenção está sujeita aos estreitos limites constitucionais do interesse público e do princípio da proximidade. Além disso, vimos que no direito civil a corrupção é sancionada com a invalidade mais grave, ou seja, aquela que não permite a produção de efeitos volitivo-finais. Por fim, podemos dizer, pelas convenções internacionais de que Portugal faz parte que o combate contra a corrupção é um imperativo de interesse da comunidade nacional, mas também da comunidade internacional. Assim sendo, e considerando o combate à corrupção como um valores nucleares e axiais da ordem jurídica portuguesa, se a lei estrangeira considerar o negócio válido ou sancioná-lo com uma invalidade menor, os tribunais portugueses podem invocar a reserva de ordem pública

44 Afirmando esta ideia, v. CALVO CARAVACA, Alfonso-Luis; CARRASCOSA GONZÁLEZ, Javier, Derecho Internacional Privado, Vol. I, Ed. 9.ª, Editorial Comares, Granada, 2008, p. 351; MOSCONI, Franco, Diritto Internazionale Privato e Processuale, Parte Generale e Contratti, Ed. 2.ª, UTET, Torino, 2001, p. 167 e p. 169.

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do Estado português como fundamento de não aplicação da lei estrangeira. Em consequência, será aplicada a lei do foro.

4.2. Contrato objecto de corrupção

4.2.1. Quanto ao contrato objecto de corrupção, é necessário recorrer a outro instrumento internacional, para avaliar a vinculação da empresa ao contrato celebrado, situação em causa no primeiro exemplo que apresentamos: a Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e de Representação (Convenção de Haia). A Convenção de Haia aplica-se às relações de carácter internacional que se estabelecem quando uma pessoa, o intermediário, tem o poder de agir, age ou pretende agir junto de um terceiro, por conta de outrem, o representado, quer quando age em nome próprio quer quando age em nome de outrem, quer a sua actividade seja ocasional ou habitual (art. 1º). Abarca, ainda, a actividade do intermediário que consista em receber e em comunicar propostas ou em efectuar negociações por conta de outras pessoas (art. 1º). Excluem-se as matérias elencadas no art. 2º como: as questões de capacidade; a forma dos actos; a representação legal em direito de família, regimes matrimoniais e sucessões; a representação em virtude de decisão de uma autoridade judicial ou administrativa ou que se exerça sob o controle directo de uma tal autoridade; a representação ligada a processos de carácter judicial; a representação pelo capitão do navio actuando no exercício das suas funções. Assim, a actividade do director de compras que age em nome da empresa enquadra-se no âmbito de aplicação material desta Convenção. Esta Convenção tem um âmbito de aplicação especial universal, conforme o identificado no art. 4º, onde se estabelece que a lei indicada pelas normas da Convenção é aplicável ainda que seja a de um Estado não contratante. Quanto ao âmbito de aplicação temporal, a Convenção está em vigor em Portugal, desde 1 de maio de 1992. Para aferir qual a lei que regula nas relações entre o representado e o terceiro, a existência e a extensão dos poderes do intermediário, assim como os efeitos dos actos do representante, em primeiro lugar, temos de verificar se houve ou não escolha de lei. Esta escolha será válida se feita pelo representado ou por terceiro, por escrito, e expressamente aceite pela outra parte, nos termos do art. 14º da Convenção de Haia. Na ausência de electio iuris, ou no caso de uma escolha inválida, a lei aplicável será apurada com recurso ao art. 11º da Convenção de Haia. O primeiro parágrafo desta norma manda aplicar a lei do Estado no qual o intermediário tinha o seu estabelecimento profissional no momento em que agiu. No caso em que a relação de representação tem como relação jurídica de base um contrato de

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trabalho, estabelece o art. 12º que quando em virtude de um contrato de trabalho com o representado, o representante não tiver estabelecimento profissional pessoal, considera-se que o seu estabelecimento se situa no local onde se situe o estabelecimento profissional do representado ao qual se encontra vinculado. Será, então, a lei do lugar do estabelecimento profissional do representado que irá determinar se o representado está ou não vinculado ao acto praticado pelo seu representante, no caso de corrupção privada que apresentamos. Esta ideia é confirmada pelo art. 15º, onde se lê que a lei apurada por força daquelas normas regula as relações entre o intermediário e o terceiro que resultem do facto de o intermediário ter actuado no exercício dos seus poderes, para além deles ou sem eles. Ou seja, abrange as situações de abuso de representação que estamos a analisar ou do abuso agravado que configura a colusão, e as consequências que daí resultarão. Na aplicação do art. 11º da Convenção de Haia há ainda uma salvaguarda que importa referir. Nos termos da segunda parte desta norma é ainda possível a aplicação da lei do Estado no qual o intermediário agiu no caso: de o representado ter o seu estabelecimento profissional ou, na ausência deste, a sua residência habitual nesse Estado e o intermediário agiu em nome do representado (a); ou o terceiro ter o seu estabelecimento profissional ou, na ausência deste, a sua residência habitual nesse Estado (b); ou o intermediário ter agido na bolsa ou numa venda em hasta pública (c); ou o intermediário não ter estabelecimento profissional (d). Note-se, ainda, que caso uma das partes tenha vários estabelecimentos profissionais, deve-se considerar relevante o estabelecimento com o qual a actuação do intermediário está mais estreitamente relacionada (nos termos do art. 11º in fine). A figura da reserva de ordem pública está também presente na Convenção de Haia, no seu art. 18º. 4.2.2. Para avaliar a validade do contrato celebrado, é de recorrer ao regime previsto no Regulamento Roma I já referido e para o qual remetemos. Todavia, para determinar o facto da vontade do declarante se encontrar viciada por dolo ou erro sobre os motivos, como no segundo exemplo que apresentamos, é necessário recorrer ao art. 10º do Regulamento Roma I. O art. 10º, n.º 1, estabelece que para decidir da existência e da validade do contrato, ou seja, a relevância do dolo ou erro sobre os motivos na formação do contrato, teremos que recorrer à lei que seria aplicável ao contrato se o mesmo fosse válido. O mesmo estabelece o art. 3º, n.º 5, ao remeter para o art. 10º, em

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relação à questão de apurar a existência e a validade do consentimento das partes quanto à escolha da lei aplicável45.

5. Conclusão Versou este estudo sobre a corrupção no sector privado e no comércio internacional, tendo como pressuposto o conceito de responsabilidade social das empresas, no sentido da atuação ética e transparente das empresas constituir um meio para um desenvolvimento sustentável. Neste sentido, foram analisados certos comportamentos que configuram situações de corrupção privada, em primeiro lugar, sob a perspectiva do direito nacional e, posteriormente, sob a perspectiva do Direito Internacional Privado, quando as mesmas situações ocorrem no âmbito do comércio internacional. Em relação ao contrato que vincula o agente corrompido e o agente corruptor e que tem por objecto a prática de um acto de corrupção, face à gravidade da situação, a sanção que resulta do Código Civil será também a mais grave – a nulidade. Caso o contrato tenha uma natureza internacional, parece-nos que, sendo o combate à corrupção um valor nuclear e axial da ordem jurídica portuguesa, justifica-se a aplicação da reserva de ordem pública do Estado português como fundamento de não aplicação da lei estrangeira. Já quanto ao quanto ao contrato objecto de corrupção, foram analisadas duas hipóteses típicas de corrupção privada. Na primeira, o agente corrompido trabalha numa empresa recebendo um suborno, para que essa empresa compre uma certa quantidade de matérias-primas a um certo vendedor (agente corruptor). Na segunda, a empresa contrata um mediador para procurar um negócio vantajoso e este mediador é corrompido por outra empresa, para indicar um determinado o negócio. Ambas as situações foram analisadas na perspectiva dos contratos de direito nacional e dos contratos do comércio internacional. No âmbito do direito nacional, verificámos que o legislador civil tem soluções que acompanham a censurabilidade dos comportamentos em causa. No plano do comércio internacional, a resposta depende da lei aplicável em função das normas 45 Note-se que o art. 10º, n.º 2, permite a atribuição de relevância à lei do país da residência habitual do declarante, em nome do princípio da confiança, mas apenas em relação à existência do consentimento. De acordo com a norma, o declarante pode invocar a lei da sua residência habitual para demonstrar que não deu o seu acordo, se resultar das circunstâncias que não seria razoável determinar os efeitos do seu comportamento nos termos da lei designada no n.º 1, do art. 10º. O objectivo da norma é que o declarante não fique vinculado quando o seu comportamento, no país da sua residência habitual – país onde este age numa base regular e cujo direito conhece melhor -, não tem o valor de declaração negocial, desde que demonstre que não seria espectável que o declarante contasse com a aplicação de outra lei. Com mais pormenor, v. GIULIANO, Mario, LAGARDE, Paul, Report on the Convention on the law applicable to contractual obligations, p. 28.

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de conflitos que analisámos. Todavia, também aqui a reserva de ordem pública internacional aparece como um mecanismo ao dispor da ordem jurídica do foro para responder a situações de incompatibilidade manifesta entre o resultado de aplicação da ordem jurídica estrangeira e valores axiais da ordem jurídica do foro.

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BREVES NOTAS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DA CORRUPÇÃO (POR DANOS CAUSADOS A TERCEIRO)

Sónia Moreira1

Resumo: O presente trabalho visa encontrar o fundamento legal para responsabilizar civilmente aquele que aceite uma vantagem patrimonial indevida (ou a sua promessa) como “pagamento” para preterir um terceiro da negociação para a celebração de um contrato, pelos danos causados a este terceiro. Esta situação poderá ocorrer no âmbito de um concurso público (havendo corrupção no sentido tradicional do termo) ou no âmbito da actividade privada (onde a existência de “corrupção” é mais discutível). Ainda se discute, brevemente, qual o quantum indemnizatório nestes casos. Palavras-chave: corrupção; responsabilidade civil; responsabilidade pré-contratual; quantum indemnizatório. Abstract: The present paper aims to find the legal basis to consider liable those who accept an undue patrimonial advantage (or its promise) as “payment” in order to pretermit a third party from the negotiation to celebrate a contract for 1 Prof.ª Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho.

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Breves notas sobre a responsabilidade civil no âmbito da corrupção (por danos causados a terceiro) Sónia Moreira

damages caused to this party. This situation may occur in the bounds of a public contest (therefore existing here corruption in the traditional terms) or in the bounds of private activity (where the existence of “corruption” is more doubtful). It is still discussed briefly the compensation quantum in these cases. Keywords: corruption; civil liability; precontractual liability; compensation quantum. Sumário: 1.Três (?) hipóteses de corrupção 2.Responsabilidade civil no âmbito da corrupção 2.1.Fundamento legal: ilicitude da conduta? 2.2.A responsabilidade solidária (?) do Estado decorrente da corrupção dos funcionários públicos 2.3.A corrupção no sector privado 2.4.A ilicitude fora dos casos de corrupção “tradicional” 2.5.A responsabilidade pré-contratual como alternativa 2.6.Quantum indemnizatório Conclusão

1. Três (?) hipóteses de corrupção António é funcionário público e encontra-se à frente do processo de selecção da melhor proposta num concurso público. Bernardo apresentou a proposta mais favorável ao interesse público. Carlos, um concorrente de Bernardo, dirige-se a António e oferece-lhe uma soma avultada para que este escolha a sua proposta e celebre antes o referido contrato consigo. António assim faz. Bernardo perde uma oportunidade de negócio que lhe teria trazido grandes lucros. Imaginando que Bernardo descobre o sucedido, pode ele ver ressarcidos os seus danos? Imaginemos, em alternativa, que António não é um funcionário público, mas apenas o administrador de uma entidade de direito privado (uma associação, uma sociedade comercial, etc.). Nas suas funções cabe-lhe seleccionar o fornecedor de certo serviço ou de certos produtos que a empresa irá adquirir. Bernardo faz a oferta de negócio mais favorável, mas Carlos oferece a António um valor “por fora” do contrato, para que este vincule a empresa que administra à sua proposta, apesar de esta ser menos favorável à empresa. António aceita e contrata com Carlos em nome da empresa. Bernardo descobre e quer ser ressarcido. Quid iuris? Finalmente, imaginemos, agora, que António é apenas um particular que se encontra em negociações com Bernardo para a celebração de um contrato, negociações estas em estado já avançado. Carlos apresenta a António uma proposta, oferecendo-lhe uma soma avultada para que celebre o contrato consigo em vez de o fazer com Bernardo. Pode Bernardo ser ressarcido das suas perdas?

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Como verificamos, a situação é semelhante nas três hipóteses apresentadas, diferindo apenas na posição do “corrompido”: na primeira, António é funcionário público e recebe uma vantagem patrimonial indevida para praticar um acto no âmbito das suas funções públicas; na segunda, é administrador de uma empresa privada, vinculando-a a um contrato menos favorável por ter cedido à oferta feita por Carlos; na terceira, António não está ao serviço de ninguém, mas aceita dinheiro para se afastar de negociações avançadas. Estaremos perante corrupção em todas as situações? É possível responsabilizar alguém pelos danos sofridos pelo lesado? E, se sim, com que fundamento legal?

2. Responsabilidade civil no âmbito da corrupção Para que possamos fazer alguém responder, os pressupostos da responsabilidade civil têm de estar preenchidos. O primeiro pressuposto, sem o qual nada há a indemnizar, é o dano. Não há dúvidas, aqui, de que Bernardo sofreu danos. Bernardo deixou de obter um lucro em consequência da quebra das negociações. Perdeu uma oportunidade de negócio. Sofreu uma grande perda patrimonial à qual chamamos “lucros cessantes”. A lei define “lucros cessantes” no art. 564.º, n.º 1, do CC, como “os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”. Trata-se de valores que iriam entrar no património do lesado em consequência da celebração do contrato. Como este não chegou a celebrar-se, estes valores ficaram por ser percebidos. Ora, os lucros cessantes são indemnizáveis caso tenham sido causados pela lesão. A não celebração de um contrato pode ser considerada uma lesão nos termos do art. 483.º?

2.1 Fundamento legal: ilicitude da conduta? Na segunda hipótese colocada, é possível argumentar-se que, valendo o princípio da liberdade contratual, princípio fundamental em direito privado, António não estava obrigado a celebrar o contrato e, portanto, a não celebração não poderá ser considerada uma lesão. António estava no seu “direito”. Logo, não se lhe poderia imputar dano algum. António podia desistir da celebração a qualquer momento, sem ter de dar explicações do sucedido2. Como aplicar aqui a figura da responsabilidade civil? Na verdade, encontramo-nos a braços com o problema do preenchimento (ou não) do pressuposto da ilicitude. Ou seja, para que haja responsabilidade 2 “A liberdade contratual é (…) a mais visível manifestação da autonomia privada. (...) A liberdade de celebração dos contratos consiste na faculdade de livremente realizar contratos ou recusar a sua celebração. (…) Se uma pessoa quiser, pode celebrar contratos; se não quiser, a sua recusa é legítima”. PINTO, Carlos Alberto da Mota, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. por MONTEIRO, António Pinto e PINTO, Paulo Mota, Coimbra Editora, Coimbra, 2012 (reimpr.), p. 107.

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civil é necessário que tenha sido violado um direito subjectivo de Bernardo (1.ª modalidade do pressuposto da ilicitude) ou um interesse legalmente protegido (2.ª modalidade do pressuposto da ilicitude), já que a nossa lei não prevê a indemnização dos chamados “danos puramente patrimoniais”3. Ora, qual o direito subjectivo aqui violado? Bernardo não tinha direito a que o contrato fosse celebrado. Encontrava-se ainda em negociações, que podem ser rompidas a qualquer momento, em respeito pelo princípio da liberdade contratual. No entanto, podemos tentar recorrer às normas do Código Penal, que prevêem o crime de corrupção, para tentar preencher a segunda modalidade de ilicitude prevista no art. 483.º do CC4. Poderá dizer-se que Bernardo possuía um interesse legalmente protegido de que a sua contraparte não fosse aliciada a romper negociações consigo nos termos dos arts. 372.º a 374.º-B do CP? Cremos que será esse o caso se António se encontrar no exercício de funções públicas, como colocamos na primeira hipótese, pois teria incorrido no crime de corrupção passiva, previsto e punido pelo art. 373.º, n.º 1, do CP. Esta norma determina que “[o] funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de um a oito anos”. Por outro lado, Carlos incorreria em crime de corrupção activa, nos termos do art. 374.º, n.º 15. Ou seja, António, funcionário público, aceitou uma vantagem patrimonial de Carlos para a prática de um acto contrário aos deveres do seu cargo e que seriam escolher a melhor proposta a concurso de acordo com o interesse público, o que não se verificou no caso, visto ter preterido a melhor proposta de Bernardo, a pedido de Carlos e em seu benefício, devido à vantagem patrimonial recebida ou prometida por este. Há, portanto, responsabilidade penal. Contudo, não é esta que aqui nos traz, mas a possibilidade de trazer a lume responsabilidade civil que permita reparar os danos sofridos por Bernardo. 3 Sobre o conceito de ilicitude e de danos puramente patrimoniais, v., por todos, VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017 (reimpr.), pp. 530 e ss.; COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, pp. 562 e ss.; MONTEIRO, Sinde, «Rudimentos da responsabilidade civil», Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano II, 2005, pp. 361 e ss., em especial, p. 363 e ss. 4 Dando conta de que, quanto aos danos puramente patrimoniais, alguns autores entendem que se deve usar de extrema cautela na atribuição do carácter de disposição legal de protecção, que, em princípio, só deveria ser reconhecido a normas penais, v. MONTEIRO, Sinde, «Rudimentos da responsabilidade civil», cit., p. 366. 5 O art. 374.º, n.º 1, determina que “[q]uem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro por indicação ou com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim indicado no n.º 1 do artigo 373.º, é punido com pena de prisão de um a cinco anos”.

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Nesta primeira hipótese, o pressuposto da ilicitude estará preenchido. O facto voluntário será a preterição do candidato; esta será ilícita por ter sido violado o interesse legalmente protegido de Bernardo de que o concurso público fosse decidido imparcialmente e não fosse maculado por corrupção; António é culpado (há dolo, visto existir intenção de sua parte de afastar Bernardo para beneficiar Carlos e receber a vantagem patrimonial); houve danos (lucros cessantes) e estes foram provocados pelo facto voluntário de acordo com a teoria da causalidade adequada, já que a preterição ilícita de uma proposta contratual é idónea, em abstrato, para provocar a perda de oportunidade de negócio e de obtenção de lucros. Portanto, tudo indica que António poderá ser directamente responsabilizado perante Bernardo nos termos do art. 483.º, n.º 1, do CC.

2.2 A responsabilidade solidária (?) do Estado decorrente da corrupção dos funcionários públicos No entanto, neste caso, e uma vez que se tratará também da actuação de uma entidade pública, estaremos perante responsabilidade civil extracontratual do Estado, por danos resultantes do exercício da função administrativa, nos termos da Lei n.º 67/2008, de 31 de Dezembro (que estabelece o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas – RRCEE), bem como de responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes públicos, por danos decorrentes de acções ou omissões, adoptadas no exercício da função administrativa e por causa desse exercício. O RRCEE determina no seu art 7.º, n.º 1, que “[o] Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício” 6 (itálico nosso), sendo que se presume a culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos (art. 10.º, n.º 2). No entanto, caso haja danos que resultem de acções ou omissões ilícitas cometidas com dolo ou culpa grosseira (com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo), o art. 8.º, n.º 1, responsabiliza directamente os referidos titulares de órgãos, funcionários e agentes. Nos termos do art. 9.º, a ilicitude deriva da violação de “disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares” ou da infracção “de regras de ordem técnica 6 Excluindo-se, assim, a actividade de gestão privada dos entes públicos (que continua adstrita ao direito civil) e, ainda, os actos lesivo praticados por titulares de órgãos, funcionários ou agentes fora do exercício das suas funções ou, ainda que dentro destas, não por causa desse exercício. Cfr. CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, p. 141.

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ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos”7, cabendo aqui, perfeitamente, as normas de direito penal supramencionadas. Assim, e uma vez que existe dolo de António, haveria responsabilidade deste perante Bernardo, nos termos do art. 8.º da referida Lei. O lesado poderia, no entanto, optar por intentar a acção de responsabilidade apenas contra o Estado (ou contra ambos), visto que este responde solidariamente com os titulares de órgãos, funcionários e agentes, se os danos tiverem sido causados por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício, nos termos do art. 8.º, n.º 2, como sucede no caso em apreço. Caso Bernardo assim o fizesse, o Estado possuiria, depois, direito de regresso contra António relativamente a tudo o que pagasse ao lesado (art. 8.º, n.º 3)8. Contudo, visto encontrarmo-nos no âmbito de um concurso público, existe uma norma que se aplica directamente a este caso e que é o art. 7.º, n.º 2, do RRCEE. Esta norma insere-se no âmbito da responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas de direito público e determina que “[é] concedida indemnização às pessoas lesadas por violação de norma ocorrida no âmbito de procedimento de formação dos contratos referidos no artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de acordo com os requisitos da responsabilidade civil extracontratual definidos pelo direito comunitário”9. Rui Cardona Ferreira explica que o art. 2.º, n.º 1, al. c), da Directiva 89/665/CEE, do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos pro7 “Ilícita é, por isso, qualquer conduta que viole o bloco de legalidade (isto é, que seja ilegal)”. SOUSA, Marcelo Rebelo de/MATOS, André Salgado de, Responsabilidade Civil Administrativa. Direito Administrativo Geral, Tomo III, D. Quixote, Alfragide, 2008, pp. 20-21. 8 Este direito de regresso tem de ser obrigatoriamente exercido pelo Estado, tal como determina o art. 6.º do regime jurídico em apreço. Significa isto que a responsabilidade das entidades publicas se aproxima de uma garantia do cumprimento do dever de indemnizar que recai sobre os titulares dos órgãos ou agentes, para que sejam estes a arcar com os danos por eles causados e não os contribuintes. Nesse sentido, SOUSA, Marcelo Rebelo de/MATOS, André Salgado de, Responsabilidade Civil Administrativa. Direito Administrativo Geral, cit., p. 36. 9 Carlos Cadilha explica que esta norma foi alterada para a redacção actual com vista a ir de encontro à jurisprudência do TJUE, que “considera que a obrigação de reparar os prejuízos causados aos particulares (…) não pode ficar subordinada a uma condição extraída do conceito de culpa (…)”, pelo que a nova redacção tem a vantagem de “substituir o regime de presunção de culpa que resultava da remissão para o disposto no art. 10.º, n.º 2,” e que podia ser ilidida, por um “critério de objectivação de culpa consonante com o entendimento da jurisprudência comunitária”. CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (…), cit., p. 160. Pelo contrário, numa perspectiva crítica sobre o RRCEE e a sua concatenação com o Direito da União Europeia, v. MESQUITA, Maria José Rangel de, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 27 e ss.

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cessos de recurso em matéria de contratos de direito público, “apenas estabelece que os órgãos jurisdicionais devem dispor da faculdade de atribuir indemnizações aos lesados, não regulando os termos em que essas indemnizações devem ser atribuídas”10, pelo que a aplicação do art. 7.º, n.º 2, do RRCEE não inibe a aplicação das regras gerais do sistema de responsabilidade civil português, considerando que este tipo de situações se deve enquadrar ou aproximar do regime da responsabilidade pré-contratual11. Assim, pensamos que o facto de o art. 7.º, n.º 2, do RRCEE parecer afastar a responsabilidade de António perante Bernardo ao estabelecer a responsabilidade exclusiva do Estado no âmbito de concursos públicos é meramente aparente. Na verdade, num caso como o aqui apresentado, em que, mais do que culpa leve ou mesmo negligência grosseira, há dolo e crime praticados por António, não faz sentido que este seja desresponsabilizado civilmente quando foi beneficiado com uma vantagem patrimonial indevida, cometendo um crime de corrupção para viciar o concurso público. Além disso, a responsabilização civil do funcionário público poderá ser um elemento dissuasor da corrupção, pelo que deve ser privilegiada uma interpretação que a permita, atendendo ao escopo do legislador de prevenir este tipo de ilícito. Se, de facto, o art. 7.º, n.º 2, deve ser interpretado no sentido de não limitar a aplicação das regras do direito interno no que toca à responsabilidade civil, pode lançar-se mão, neste caso, do art. 8.º do mesmo RRCEE nos termos já expostos supra; mesmo que se entenda que não deve ser assim, por a norma do art. 7.º, n.º 2, (responsabilidade exclusiva do Estado) não permitir a aplicação do art. 8.º (responsabilidade solidária em caso de dolo ou culpa grave), sempre se poderá recorrer ao art. 227.º do CC para responsabilizar directamente António (visto que foi ele quem negociou com Bernardo violando o princípio da boa fé) e, sendo este um dos responsáveis, ao lado do Estado nos termos do art. 7.º, n.º 2, do RRCEE, a responsabilidade de ambos será solidária, havendo direito 10 O autor refere ainda que a Directiva 92/13/CEE, do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1992 (relativa aos processos de recurso referentes a contratos públicos relativos a água, energia, transportes e telecomunicações) contém uma norma especial que limita a indemnização ao interesse contratual negativo (os custos decorrentes com a preparação da proposta levada a concurso ou com a participação neste procedimento), mas explica que esta norma estabelece apenas um patamar mínimo, pois não pode conduzir a uma diminuição da indemnização determinada nos termos das regras gerais de responsabilidade civil do direito interno. Neste sentido, FERREIRA, Rui Cardona, «Responsabilidade pré-contratual das entidades adjudicantes e perda de chance», in AAVV., Contencioso Pré-Contratual, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2017, pp. 78 e ss., disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Contencioso_Precontratual. pdf, consultado em 6/02/2018. 11 FERREIRA, Rui Cardona, «Responsabilidade pré-contratual das entidades adjudicantes e perda de chance», cit., p. 80, consultado em 6/02/2018. Igualmente no sentido de que estamos aqui perante responsabilidade pré-contratual e que a norma não indica qual a medida da indemnização, tendo de se recorrer às regras comunitárias e aos princípios gerais, CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (…), cit., p. 101.

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de regresso entre os responsáveis na medida das respectivas culpas nos termos gerais (art. 497.º do CC). Na verdade, um argumento que pode ser utilizado para a defesa da responsabilização directa do funcionário é o facto de o art. 22.º da CRP determinar que “[o] Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”. No âmbito do regime jurídico anterior (o DL 48051, de 21 de Novembro de 1967) discutia-se se a norma que ilibava o funcionário de responsabilidade directa perante o lesado em caso de falta grave (só em caso de dolo havia responsabilidade solidária) seria constitucional. O actual regime, dando razão às críticas da doutrina, ainda assim, deixou de fora os casos de culpa leve, o que se justificará em razão do adequado funcionamento da máquina administrativa, que poderia paralisar se os seus funcionários temessem ser responsabilizados por qualquer pequena falha12, mas seguramente não se justifica em casos de dolo ou de culpa grave, ainda que se defenda a existência de direito de regresso13 14.

2.3 A corrupção no sector privado Contudo, na segunda hipótese que colocamos no início desta exposição, já não estamos perante um concurso público. Estamos perante uma situação em que a corrupção aparece no âmbito da vida dos particulares. Um particular oferece a outro uma vantagem patrimonial indevida para que este cesse negociações com outro particular, causando-lhe danos. Neste caso, não podemos recorrer ao CP. E, até 2008, diríamos que não havia, sequer, corrupção. Contudo, a Lei n.º 12 Entendendo que a lei esteve bem em não responsabilizar directamente o funcionário que cause danos actuando com culpa leve, desde que a sua conduta seja desculpável e não reiterada (visto que ele é humano, sujeito a erros, facto com o qual a Administração tem de contar), “em nome dos princípios da prossecução do interesse público e da eficiência administrativa (artigos 266.º/1 e 267º/2 da CRP)”, já que “a responsabilização directa do funcionário por qualquer falta poderia conduzir à paralisação da actividade administrativa, devido ao espectro de ressarcimento de danos”, GOMES, Carla Amado, Três textos sobre o Novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, AAFDL, Lisboa, 2008, p. 35. 13 GOMES, Carla Amado, Três textos sobre o Novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, cit., p. 44. 14 Considerando que, mesmo que se entenda que a aplicação do art. 7.º, n.º 2, faz responder apenas o Estado, nada impede que se averigue sobre a existência de dolo ou de culpa grave do titular do órgão, funcionário ou agente para fazer funcionar o direito de regresso previsto no art. 8.º, n.º 4, CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (…), cit., p. 161.

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20/2008, de 21 de Abril, veio prever responsabilidade penal por crimes de corrupção no comércio internacional e na actividade privada15. Nos termos do seu art. 8.º (corrupção passiva no sector privado), n.º 1, “[o] trabalhador do sector privado que (…) aceitar (…) sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”. E, nos termos do n.º 2 da referida norma, “[s]e o ato ou omissão (…) for idóneo a causar uma distorção da concorrência ou um prejuízo patrimonial para terceiros, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos”. Tendo António aceitado valores patrimoniais para beneficiar um concorrente negocial em prejuízo dos interesses da própria empresa que administra, viola, claramente, os seus deveres funcionais, incorrendo neste crime. Poderíamos discutir sobre se António é abrangido pela norma supracitada, uma vez que esta se refere a “trabalhadores” do sector privado e António é mais do que isso: é um administrador. No entanto, se atentarmos no art. 2.º deste regime jurídico, que define uma série de conceitos utilizados no Decreto-Lei em análise, veremos que a lei utilizou um conceito alargado de “trabalhador do sector privado”, que pretende incluir todos os funcionários de uma empresa (e não apenas os que se encontrem vinculados a esta através de um contrato de trabalho). Na verdade, a al. d) da referida norma define “[t]rabalhador do sector privado” como “a pessoa que exerce funções, incluindo as de direcção ou fiscalização, em regime de contrato individual de trabalho, de prestação de serviços ou a qualquer outro título, mesmo que provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, ao serviço de uma entidade do sector privado” (itálico nosso); a al. e) define, ainda, “[e]ntidade do sector privado” como “a pessoa colectiva de direito privado, a sociedade civil e a associação de facto”, não dando margem para dúvidas quanto à extensão das entidades incluídas, não exigindo, sequer, a sua personalidade jurídica. A nosso ver, este conceito amplo de “trabalhador” faz todo o sentido, pois, naturalmente, os membros de órgãos de gestão e administração são quem possui poderes vinculativos em relação à empresa e, portanto, são quem, em princípio, estará sujeito a incorrer neste tipo de crimes. Tudo isto sem prejuízo de eventual responsabilidade de António perante a empresa (disciplinar, civil ou contratual). Mas não é sobre essa questão que nos debruçamos. Questionamo-nos sobre a possibilidade de ressarcir o terceiro preterido, Bernardo.

15 Dando cumprimento à Decisão Quadro n.º 2003/568/JAI, do Conselho, de 22 de Julho.

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Graças à Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, já podemos preencher o pressuposto da ilicitude através do recurso às normas penais, como normas que protegem – ao menos indirectamente – interesses alheios. Assim, é possível defender neste caso a possibilidade de António ser obrigado a indemnizar Bernardo nos termos gerais do art. 483.º, n.º 1, 2.ª alternativa, do CC.

2.4 A ilicitude fora dos casos de corrupção “tradicional” Mais duvidosa é a última hipótese que colocamos, ou seja, o caso de António não trabalhar para nenhuma entidade, sendo, apenas, um particular em negociações para a celebração de um contrato com Bernardo. Se, desta vez, Carlos se dirigir a António e lhe oferecer uma vantagem patrimonial para que abandone as negociações com Bernardo e celebre antes o negócio consigo, não há corrupção nos termos em que a lei a define. Aqui não há a possibilidade de preenchermos o pressuposto da ilicitude através do recurso às normas penais. E, como se disse, Bernardo não tem o direito de ver as negociações atingirem o necessário consenso. Não é lícito a António, simplesmente, entender que a proposta de Carlos é melhor (devido à vantagem patrimonial oferecida)? Se se entender que sim, não haverá, obviamente, ilicitude da conduta de António, nem responsabilidade civil. Contudo, se se entender que a conduta de António é particularmente desleal – e tal poderá depender do grau de desenvolvimento atingido nas negociações – a ruptura das negociações poderá consubstanciar um abuso de Direito da sua parte, por violação do princípio da boa fé. Ou, no caso em concreto, poderá violar o mínimo ético-jurídico que todos os membros de uma comunidade devem respeitar, sendo manifestamente contrária aos bons costumes. Grande parte da doutrina considera que é possível extrair da norma que proíbe o abuso de direito uma terceira cláusula (residual) de ilicitude16. O art. 334.º do CC afirma que “[é] ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou

16 Neste sentido, por exemplo, MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 180-181 e n. 13, pp. 552 e ss.; MONTEIRO, Jorge Sinde, «Responsabilidade delitual. Da ilicitude», in AAVV., Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III. Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 464 e 465.; VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, cit., pp. 544 e ss.; COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, cit., p. 564.

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pelo fim social ou económico desse direito”17. A actuação de António, ao aceitar uma vantagem patrimonial para interromper as negociações, poderá ser contrária à boa fé e aos bons costumes se for atentatória do mais elementar sentido de justiça. No entanto, é discutível que desta norma se possa retirar a possibilidade de atribuir a Bernardo um direito de indemnização. Heinrich Hörster considera que “[a] previsão do art. 334.º não abrange situações deste tipo e, muito embora uma obrigação de indemnizar possa ser justificável, ela não pode ser obtida por via do art. 334.º”. O autor entende que esta norma deve cingir-se “à tarefa para a qual foi concebid[a] e que consiste em evitar abusos no exercício de direitos subjectivos”; ir mais além desta seria tornar o preceito demasiado elástico, fazendo com que deixe de ser previsível o âmbito da responsabilidade civil18. O art. 334.º do CC português é semelhante ao § 226 do BGB. Esta norma também proíbe o exercício abusivo dos direitos subjectivos. Contudo, a obrigação de indemnizar no direito alemão advém de uma outra norma no âmbito da responsabilidade extracontratual, o § 826 do BGB, que determina que quem causar dolosamente um dano a outrem, através do exercício abusivo de um direito subjectivo, é obrigado a indemnizar o lesado19. Esta norma não existe quae tale no direito português. Ou se segue na esteira da doutrina de Coimbra e a desentranhamos do art. 334.º20, apesar de a sua letra não ir seguramente nesse sentido; ou entendemos que há uma lacuna no direito português e recorremos à norma que o intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, nos termos do art. 10.º, n.º 3. De posse desta norma, já seria possível defender, caso entendamos que a preterição de Bernardo a favor de Carlos foi ilícita, a existência de uma obrigação de indemnizar nos termos do art. 483.º.

17 A aplicação do princípio da boa fé só será possível havendo uma relação específica ou especial (cfr. MONTEIRO, Jorge Sinde, «Responsabilidade delitual. Da ilicitude», cit., p. 462), o que será o caso, visto estarmos perante negociações para a celebração e um contrato. 18 HÖRSTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2017 (reimpr.), p. 288. 19 MONTEIRO, Jorge Sinde, «Responsabilidade delitual. Da ilicitude», cit., p. 458 e ss. 20 Como defende Sinde Monteiro (Idem, pp. 460 e ss.). A vantagem desta posição é, parece-nos, permitir que também Carlos possa ser responsabilizado. Na verdade, a actuação de Carlos pode considerar-se contrária aos bons costumes, principalmente nos casos em que a sua conduta se encontra tipificada como crime. A situação assemelha-se à de indução dolosa da quebra de contrato, que Sinde Monteiro considera poder resolver-se através do recurso à figura do abuso de direito, em vez de se recorrer à teoria da eficácia externa das obrigações como modo de resolver o problema da interferência de terceiros nos direitos de crédito. Cfr. MONTEIRO, Sinde, «Rudimentos da responsabilidade civil», cit., p. 352.

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2.5 A responsabilidade pré-contratual como alternativa Há ainda uma outra via para responsabilizar António, visto que a situação cabe perfeitamente no âmbito de um outro instituto jurídico. Não há como negar que estamos na fase pré-contratual. O que significa que, se Bernardo não tem direito à celebração do contrato, tem, pelo menos, direito a que as negociações se realizem em respeito pelo princípio da boa fé. Portanto, ainda que possamos não estar perante responsabilidade civil tout court, extracontratual, no âmbito do art. 483.º, sempre poderemos estar perante responsabilidade pré-contratual. É que, como sabemos, nos termos do art. 227.º do CC português, “[q]uem negoceia para a celebração de um contrato deve, tanto nos seus preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”. Também aqui é necessário que os pressupostos da responsabilidade civil estejam preenchidos (facto, dano, ilicitude, culpa, nexo de causalidade), mas a ilicitude deriva da violação das regras da boa fé em sentido objectivo. Cada um dos contraentes deve comportar-se nas negociações de acordo com o comportamento de um negociante honesto, correcto e leal, o que, poderá não ter sucedido no caso em apreço. Na verdade, seguramente que tal não sucedeu nem na primeira hipótese apresentada, nem na segunda, pelo que a responsabilidade pré-contratual é uma alternativa da qual sempre se poderá lançar mão nos casos de corrupção no sector público e no sector privado, nos termos apresentados supra.

2.6 Quantum indemnizatório A questão da determinação do valor a indemnizar ao lesado levanta-se em qualquer uma das três hipóteses apresentadas. Se entendermos estar em causa responsabilidade civil extracontratual tout court, deve aplicar-se a regra geral prevista no art. 562.º do CC, que determina que “[q]uem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Contudo, como vimos, nos três casos apresentados estará em causa simultaneamente responsabilidade pré-contratual. Ora, há doutrina que defende que os danos indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual não são os mesmos do regime geral da responsabilidade civil. Nos casos de cic deveria apenas indemnizar-se o chamado inte-

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resse contratual negativo21 (os danos que não se teriam sofrido se não se tivesse entrado em negociações para a celebração do contrato, visto o contrato acabar por não chegar a celebrar-se ou, sendo celebrado, se revelar nulo) e já não o chamado interesse contratual positivo (os danos sofridos em virtude de o contrato celebrado não ter sido cumprido)22. Estes últimos só seriam indemnizáveis nos casos em que o contrato foi celebrado, é válido, mas não foi cumprido ou foi cumprido defeituosamente, sendo, em princípio, mais abrangentes. O interesse contratual positivo diria respeito, portanto, à responsabilidade contratual. Não poderia lançar-se mão deste quantum indemnizatório para a responsabilidade pré-contratual: como fazer responder alguém pelos danos do não cumprimento do contrato (ou do seu cumprimento defeituoso) se nem sequer existe contrato ou se este não produz efeitos? Contudo, não concordamos com a doutrina apresentada. Cremos que o critério pelo qual deve aferir-se o quantum indemnizatório em sede de responsabilidade pré-contratual é o critério geral do art. 562.º. Na verdade, o art. 227.º 21 A responsabilidade pré-contratual foi criada por Jhering como forma de fazer responder por danos provenientes de contratos nulos em virtude de vícios na sua formação. Assim, o autor defendia que o lesado deveria ser colocado na situação em que estaria se não tivessem ocorrido as negociações e o respectivo contrato nulo. Indemnizar o interesse contratual positivo seria colocar o lesado na situação em que se encontraria se o contrato fosse válido, o que não acontecia. Segundo Jhering, o lesante não tem de ressarcir o equivalente da prestação prometida pois os contratos nulos não fazem nascer uma obrigação de cumprimento. Contudo, esta nulidade não implicaria a ausência de todos os efeitos jurídicos, persistindo um direito de indemnização do “interesse na não conclusão do contrato”, ou seja, do interesse contratual negativo. JHERING, Rudolf von, Culpa in contraendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição, (trad. de Paulo Mota Pinto), Almedina, Coimbra, 2008, pp. 12 e ss.; V., também, BENATTI, Francesco, A responsabilidade pré-contratual (trad. de Adriano Vera Jardim e Miguel Caeiro), Almedina, Coimbra, 1970, p. 166. 22 Neste sentido, v., por exemplo, PINTO, Carlos Alberto da Mota, «A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos contratos», in BFD, suplemento XIV, Coimbra, 1966, pp. 179 e 180; CORREIA, Ferrer, Erro e interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2001 (reimpr.), pp. 54, 55 e 57; ASCENSÃO, José Oliveira de, Direito Civil - Teoria Geral, vol. II, Acções e Factos Jurídicos, 2.ª ed. Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 449 e 450; FERNANDES, Luís Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5.ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, pp. 104 e 105; VASCONCELOS, Pedro Pais de, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017 (reimpr.) (reimpr.), pp. 435 e ss.; TELLES, Inocêncio Galvão, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra editora, Coimbra, 2010 (reimpr.), pp. 77 e ss.; VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017 (reimpr.), pp. 270 e 271; LIMA, Pires de/ VARELA, Antunes (com a colaboração de MESQUITA), Henrique, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra editora, Coimbra, 2010 (reimpr.), p. 216; COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018 (reimpr.), pp. 310 e 598 a 599 e COSTA, Mário Júlio de Almeida, Responsabilidade civil pela ruptura das negociações preparatórias de um contrato, Coimbra Editora, Coimbra, 1994 (reimpr.), pp. 74 e ss.; LEITÃO, Luís Manuel Teles Menezes, Direito das Obrigações, vol. I, Introdução. Da Constituição das Obrigações, 13.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 324 e 325.

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do CC não determina a forma de determinar a indemnização no caso de responsabilidade pré-contratual, pelo que se deve recorrer às regras gerais23 24. Aliás, o mesmo sucede em relação à própria responsabilidade contratual. Na verdade, de acordo com um argumento sistemático, tendo a lei optado por estabelecer a obrigação de indemnizar num único local, independentemente do facto que lhe dá origem, pelo que se aplicam estas regras quer esta obrigação advenha de responsabilidade extracontratual ou contratual, também deverá considerar-se o mesmo em relação à responsabilidade pré-contratual25. O que pode suceder é que a aplicação das regras gerais conduza a um quantum indemnizatório que corresponda ou ao interesse contratual positivo ou ao interesse contratual negativo, dependendo das circunstâncias e da prova carreada para os autos. No primeiro caso apresentado e visto que o próprio RRCEE não determina regras para o estabelecimento do quantum indemnizatório (nem o Direito da União Europeia o faz, como vimos26), limitando-se a estabelecer no art. 3.º que “[q]uem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, numa reprodução do princípio geral do art. 562.º do CC, é legítimo considerar-se que devem ser indemnizados todos os danos causados pela lesão. Assim, a indemnização não deve ficar limitada ao interesse contratual 23 Para mais desenvolvimentos, v. os nossos SILVA, Eva Sónia Moreira da, Da Responsabilidade Pré-Contratual por Violação dos Deveres de Informação, Almedina, Coimbra, 2006 (reimpr.), pp. 209 e ss.; MOREIRA, Sónia, «Danos indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual – anotação ao Ac. do TRC de 4.2.2003, Apelação 3488/02», Cadernos de Direito Privado, n.º 7, Julho/Setembro, 2004, pp. 32 a 45; MOREIRA, Sónia, «De novo os danos indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual», Cadernos de Direito Privado, número especial sobre o II Seminário dos Cadernos de Direito Privado, 02, Dezembro 2012, pp. 97 a 106. 24 Em sentido algo semelhante, v. por exemplo, CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, Formação. Conteúdo e Interpretação. Vícios da vontade. Ineficácia e Invalidades, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017 (reimpr.), pp. 289 e ss.; PRATA, Ana, Notas sobre responsabilidade pré-contratual, Almedina, Coimbra, 2005 (reimpr.), pp. 166 e ss.; CABRAL, Rita Amaral, «A responsabilidade por prospectos e a responsabilidade pré-contratual – anotação ao acórdão do Tribunal Arbitral, de 31 de Março de 1993», ROA, ano 55, 1995, pp. 216 e ss.; CUNHA, Daniela Mouta Ferreira, Responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 193 e ss.; ALMEIDA, Ferreira de, Contratos, I, Conceitos, Fontes, Formação, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pp. 251 e ss. 25 E, mesmo que queiramos afastar este argumento recorrendo ao argumento histórico, visto que o projecto de Vaz Serra consagrava para a responsabilidade pré-contratual a indemnização do interesse contratual negativo, a verdade é que a norma prevista neste projecto não chegou a vingar, pelo que se poderia entender que foi afastada; por outro lado, o próprio projecto previa uma situação excepcional (art. 10.º, n.º 2) em que também seria de indemnizar o interesse contratual positivo: “se, porém, caso se houvesse procedido regularmente, o contrato tivesse chegado a aperfeiçoar-se, deve indemnizar-se o interesse no cumprimento dele”. SERRA, Vaz, «Culpa do devedor ou do agente», BMJ, n.º 68, 1957, pp. 145 e 146. 26 Cfr. n. 9.

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negativo, como sendo as despesas decorrentes da preparação da proposta levada a concurso público e os custos inerentes com estudos de mercado ou outros, mas deve incluir também os benefícios que o lesado auferiria se lhe tivesse sido adjudicado o concurso, caso se prove que, sem a actuação ilícita de António, teria sido este o seu desfecho. Ou seja, tudo dependerá da prova produzida relativamente ao nexo causal entre o acto ilícito e o dano, devendo apurar-se exactamente qual o dano causado27. Na verdade, nas palavras de Paulo Mota Pinto, “[h]á, pois, antes de mais, que apurar qual é ‘o evento que obriga à reparação’, a partir da exacta identificação da violação de deveres pré-contratuais de que se queixa o demandante”. Assim, caso se tenha tratado da violação de deveres de cuidado ou de informação, tendo sido criadas expectativas que se vieram a frustrar, pois os concorrentes, caso os deveres tivessem sido cumpridos, não se teriam apresentado a concurso (e não teriam feito tais despesas, ou não teriam perdido outras oportunidades de negócio), será indemnizado o interesse contratual negativo, pois a violação em causa só deu azo a esses danos. Caso a violação em causa provoque a perda do concurso, é, ainda assim, necessário distinguir entre duas hipóteses: ou o autor do concurso já estava vinculado pelas regras deste a celebrar o contrato (p. ex., por o anúncio conter uma verdadeira proposta e não um mero convite a contratar); ou o autor reservou para si a possibilidade de decidir a final sobre a sua celebração ou não. Na primeira hipótese, existindo um dever de conclusão do contrato, o lesado poderá exigir uma indemnização pelo interesse contratual positivo, desde que prove que, sem a violação dos deveres em causa, o contrato teria sido celebrado consigo28. Apesar de o autor se referir a concursos no âmbito do direito privado, a aplicação destas asserções neste contexto pode ser feita, pois, como vimos, está em causa a aplicação das regras gerais da responsabilidade civil. Na verdade, o autor di-lo expressamente em obra específica sobre contratação pública: “Pensamos que também nos casos de não conclusão do contrato por violação de regras

27 CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (…), cit., p., entende que, em regra, o dano a ser ressarcido será o correspondente ao do interesse contratual negativo, embora admita que o interesse contratual positivo ou do cumprimento possa ser indemnizado quando “a conduta culposa da parte consistir na violação do dever de conclusão do negócio”. CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (…), cit., p. 102. V., ainda, nas pp. ss. vários casos interessantes de jurisprudência do STA a este respeito. 28 Por exemplo, porque não existia margem de discricionariedade na apreciação dos candidatos, ou porque o lesado já tinha sido até seleccionado como o vencedor. PINTO, Paulo Mota, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 1357 e 1358.

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de um concurso o problema da medida da indemnização deve ser resolvido recorrendo às regras gerais sobre a medida da indemnização”29. Também Sinde Monteiro afirma que “a indemnização parece dever orientar-se pelo interesse positivo na hipótese ilícita/culposa não adjudicação de um contrato em concurso publico”30.

Conclusão Colocamos três casos em apreciação no início deste trabalho; nos dois primeiros, António incorreu em crime de corrupção, ao vincular o Estado (no primeiro caso) ou uma entidade privada (no segundo caso) a um contrato menos benéfico, prejudicando igualmente o terceiro preterido, Bernardo. No terceiro caso, António afastou-se das negociações decorrentes com Bernardo devido ao pagamento de uma soma avultada por um terceiro. Nas duas primeiras hipóteses colocadas, estamos perante a violação de interesses legalmente protegidos de Bernardo por normas penais, pelo que se encontra preenchido o requisito da licitude do art. 483.º (na segunda modalidade), o que significa que há responsabilidade civil. Contudo, na primeira, existe um regime específico a aplicar, visto que estamos perante a celebração de um contrato no âmbito de um concurso público, aplicando-se o RRCEE. Nos termos do seu art. 7.º, n.º 2, o Estado responderá perante Bernardo. Cremos, no entanto, que também Bernardo deverá responder directamente perante o lesado: não se compreende que aquele que incorre num crime tenha um tratamento mais benéfico do que qualquer outro funcionário que actue com dolo ou negligência grosseira (sendo responsabilizado nos termos do art. 8.º do RRCEE) apenas por a situação se encontrar no âmbito de um concurso público. Na terceira hipótese colocada, e atendendo ao princípio da liberdade contratual, apenas existirá ilicitude da conduta de António se o caso preencher os requisitos do abuso de direito (desentranhando-se uma terceira cláusula residual de ilicitude do art. 334.º CC, ou utilizando a prerrogativa do art. 10.º, n.º 3, CC 29 PINTO, Paulo Mota, «Responsabilidade por violação de regras de concurso para celebração de um contrato (em especial o cálculo da indemnização», in GONÇALVES, Pedro (org.), Estudos de Contratação Pública, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 286. O autor reitera as afirmações feitas no texto nas pp. 288, 289 e ss. Explica, ainda, que “[s]e nada se prevê expressamente [no art. 7.º, n.º 2, do RRCEE], além do pressuposto de violação de norma no âmbito de procedimento de formação do contrato, quanto à suficiência da prova de que o lesado ‘teria tido uma possibilidade real de lhe ser atribuído o contrato que foi prejudicada por essa violação’, na expressão do referido art. 2.º, n.º 7, da citada Directiva 92/13/CE, parece que tal omissão significa (…), que se entende que essa prova já é suficiente para o pedido de indemnização, por ser essa a solução que exige o direito comunitário, na referida Directiva”. Idem, p. 279. 30 MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde, «Culpa in contrahendo», Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 42, 2003, p. 12.

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para esse efeito), ou caso se entenda que foram violados deveres pré-contratuais decorrentes do princípio da boa fé in contrahendo. Pensamos que a solução mais simples será a de recorrer aqui ao regime da responsabilidade pré-contratual. Mesmo nas primeiras hipóteses apresentadas, estará sempre em causa a violação de deveres pré-contratuais, pelo que se levanta a questão de saber qual o montante a indemnizar. Defendemos que a determinação do quantum indemnizatório passa, nos três casos, pela aplicação da regra geral do art. 562.º, dependendo da prova que seja feita relativamente aos danos causados. No primeiro caso que colocamos a apreciação, Bernardo só foi preterido por causa da conduta criminosa de António (que cedeu às “luvas” pagas por Carlos), visto ter apresentado a proposta mais consentânea com o interesse público. Havia um dever de conclusão do contrato com António, desde logo por existir um dever de escolher a melhor proposta apresentada31 e que, das duas, era a sua. Logo este deverá ser indemnizado na totalidade dos prejuízos provocados pela sua não celebração, abrangendo-se o chamado interesse contratual positivo. Quanto ao segundo e terceiro casos apresentados, mais uma vez, tudo dependerá da prova que for carreada para os autos. Se Bernardo conseguir provar, nos termos da causalidade adequada, que teria celebrado o contrato e que teria obtido os lucros previstos, será justo indemnizar menos do que esse valor? Cremos que não.

Referências bibliográficas ALMEIDA, Ferreira de, Contratos, I, Conceitos, Fontes, Formação, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017. ASCENSÃO, José Oliveira de, Direito Civil - Teoria Geral, vol. II, Acções e Factos Jurídicos, 2.ª ed. Coimbra Editora, Coimbra, 2003. BENATTI, Francesco, A responsabilidade pré-contratual (trad. de Adriano Vera Jardim e Miguel Caeiro), Almedina, Coimbra, 1970. CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra. 31 No sentido da existência de “um dever de prosseguir o procedimento pré-contratual e de escolher a melhor proposta com vista à celebração do contrato, conquanto que essa proposta não se situe aquém dos patamares de exigência previamente fixados pela própria entidade adjudicante”, FERREIRA, Rui Cardona, «Responsabilidade pré-contratual das entidades adjudicantes e perda de chance», cit., p. 81, consultado em 6/02/2018.

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MESQUITA, Maria José Rangel de, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2009. MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde, «Culpa in contrahendo», Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 42, 2003, p. 5 a 14. MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989. MONTEIRO, Jorge Sinde, «Responsabilidade delitual. Da ilicitude», in AAVV., Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III. Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 453 a 481. MONTEIRO, Sinde, «Rudimentos da responsabilidade civil», Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano II, 2005, pp. 349 a 390. MOREIRA, Sónia, «Danos indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual – anotação ao Ac. do TRC de 4.2.2003, Apelação 3488/02», Cadernos de Direito Privado, n.º 7, Julho/Setembro, 2004, pp. 32 a 45. MOREIRA, Sónia, «De novo os danos indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual», Cadernos de Direito Privado, número especial sobre o II Seminário dos Cadernos de Direito Privado, 02, Dezembro 2012, pp. 97 a 106. PINTO, Carlos Alberto da Mota, «A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos contratos», in BFD, suplemento XIV, Coimbra, 1966. PINTO, Carlos Alberto da Mota, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. por MONTEIRO, António Pinto e PINTO, Paulo Mota, Coimbra Editora, Coimbra, 2012 (reimpr.). PINTO, Paulo Mota, «Responsabilidade por violação de regras de concurso para celebração de um contrato (em especial o cálculo da indemnização», in GONÇALVES, Pedro (org.), Estudos de Contratação Pública, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 273 a 295 PINTO, Paulo Mota, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008. PRATA, Ana, Notas sobre responsabilidade pré-contratual, Almedina, Coimbra, 2005 (reimpr. CABRAL, AMARAL, Rita, «A responsabilidade por prospectos e a responsabilidade pré-contratual – anotação ao acórdão do Tribunal Arbitral, de 31 de Março de 1993», ROA, ano 55, 1995, pp. 191 a 223. 247


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INOVAÇÃO E TECNOLOGIA NAS EMPRESAS DE PEQUENO PORTE

Fabiano Del Masso1

Resumo: Este artigo cuida das condições fundamentais para que as empresas de pequeno porte no desenvolvimento normal de suas atividades econômicas, tenham a possibilidade de inovar, aproveitando as oportunidades para concorrer com as mesmas eficiências que possuem as empresas de médio e grande porte. A aplicação do tratamento diferenciado previsto na Constituição Federal também deve considerar o acesso das empresas de pequeno porte às inovações tecnológicas, seja para criá-las, seja para delas usufruir. Palavras-chave: inovação – tecnologia – empresas de pequeno porte – sociedade tecnológica Abstract: This article takes care at the fundamental conditions for small enterprises in the normal development of their economic activities to be able to innovate, taking advantage of the opportunities to compete with the same efficiencies as medium and large enterprises. The application of the differential treatment provided for in the Federal Constitution should also consider the access of small enterprises to technological innovations, either to create them or to enjoy them. 1 Mestre e Doutor em Direito Comercial pela PUC/SP. Professor do curso de graduação em Direito do Mackenzie. Professor dos cursos de mestrado e doutorado em Direito Político e Econômico do Mackenzie. Advogado em São Paulo.

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Inovação e tecnologia nas empresas de pequeno porte Fabiano Del Masso

Keywords: innovation – technology – small enterprises – technological society Sumário: Introdução; 1. Realidade econômica das empresas de pequeno porte; 2. O tratamento favorecido e diferenciado previsto na Constituição Federal; 3. Principais características das empresas de pequeno porte; 3.1 Organização da exploração da atividade econômica; 3.2 Montante de capital para investimento; 3.3 Recursos humanos; 3.4 Inovação nas empresas de pequeno porte; 3.5 Criação de ativos imateriais; 4. Condições de acesso de acesso aos recursos para desenvolvimento de inovações; 4.1 Transparência dos editais; 4.2 Elaboração de propostas; 4.3 O que mudar; 5. A importância do desenvolvimento tecnológico; 6. Democracia econômica e responsabilidade social nas sociedades tecnológicas; Referências bibliográficas.

Introdução A atividade desempenhada pelas empresas de pequeno porte, que geralmente são tratadas nos ordenamentos jurídicos com a denominação de pequenas empresas e microempresas, depende de tratamento diferenciado para que esses pequenos empreendedores possam usufruir de condições compatíveis com as estruturas de produção, comercialização e administração disponíveis para este tipo de empresa. Dessa forma, as condições para que as empresas de pequeno porte possam criar e usufruir de novas tecnologias também merecem atenção, pois o acesso aos mercados tecnológicos pode ser dificultado se não tomadas algumas providências adaptativas. O estudo da realidade econômica das empresas de pequeno porte torna-se essencial para compreender a sua importância no cenário econômico dos mais variados países, de forma a justificar, de fato, um tratamento compatível com as suas formas peculiares de administração, de formação dos custos dos seus serviços ou mercadorias, da sua força de trabalho. Enfim, o acesso e a permanência das empresas de pequeno porte nos mercados necessitam de amparos legislativos que lhe garantam tratamento proporcional as suas condições de produção. A análise das principais características das empresas de pequeno porte, bem como dos principais fatores que podem dificultar a possibilidade destas empresas desenvolverem novas tecnologias são primordiais para adequar o sistema legislativo e consequentemente proporcionar o acesso a recursos disponíveis para financiar as atividades produtivas.

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Nas sociedades tecnológicas não mais cabem empreendedores que estejam longe de preocupações referentes ao desenvolvimento de novas tecnologias, inovar significa criar uma mercadoria nova, e não é possível acompanhar um mercado dinâmico que recebe inovações com uma frequência tão rápida, sem poder criar ou usufruir também das inovações de processo, ou seja, aquelas que modificam as técnicas de produção. Como bem observa Richard R. Nelson: “Também é claro que a inovação está longe de constituir um processo estritamente aleatório; pelo contrário, os esforços para fazer avançar a tecnologia são cuidadosamente direcionados pelo que os inovadores acreditam ser viável e potencialmente lucrativo”.2 Neste estudo, o objetivo consiste em identificar, analisar e sugerir novas formas de tratamento para as empresas de pequeno porte, para que assim possam ser incluídas como empreendedoras competitivas em uma sociedade cada vez mais tecnológica.

1. Realidade econômica das empresas de pequeno porte Diante da quebra das fronteiras do comércio, em razão tanto do processo de internacionalização dos mercados quanto da criação de tecnologias de comunicação, que permitem o contato instantâneo entre contratantes dos mais variados países, a permanência de empresas de pequeno porte parecia ser muito difícil devido a necessidade de investimentos substanciais para acessar um mercado geograficamente cada vez maior e mais competitivo. As empresas de pequeno porte, entretanto, suportaram as mudanças econômicas e ainda participam de maneira intensa em todos os mercados. A relevância das empresas de pequeno porte podem ser justificadas, por exemplo: em razão da grande quantidade de empregos e renda que geram; da contribuição para integração nacional e para a coesão social, uma vez que, se dispersam por todo o território nacional; contribuem para o aumento da competição, proporcionando a liberdade de escolha dos consumidores; integram cadeias produtivas e de circulação da riqueza, complementando a atividade de médias e das grandes empresas, que muitas vezes se utilizam das empresas de pequeno porte para terceirizar alguns segmentos de industrialização, comercialização e de serviços.3 Classificar as empresas de pequeno porte como hipossuficientes talvez não seja a melhor maneira de contribuir para a criação e permanências destas empresas no mercado, o que se sugere é apenas o reconhecimento de sua forma estrutural de funcionar, o que significa considerar a realidade dos fatores de 2 As fontes do crescimento econômico, Campinas/SP: Unicamp, 2006, p. 92. 3 Antonio de S. Limongi França. As pequenas e as microempresas no direito brasileiro. Curitiba: Juruá, 2011, p. 43.

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Inovação e tecnologia nas empresas de pequeno porte Fabiano Del Masso

produção que auxiliam o acesso competitivo de estruturas menos abastadas em recursos das mais variadas naturezas. É importante considerar, inicialmente, que as empresas de pequeno porte geralmente resultam de uma necessidade de empreender que não advém de uma vocação hereditária para gerir um negócio próprio. Em outras palavras, o empreendedor não possui experiência anterior em outros empreendimentos e mesmo a sua formação não reúne conhecimentos suficientes para administrar uma empresa, sem falar em outros recursos importantes para a segurança da atividade econômica, como por exemplo: capital de giro, pesquisas prévias de mercado para identificar o que oferecer, a que preço e quem são os consumidores em potencial dos produtos ou serviços que pretende explorar, falta de amparo jurídico nos contratos que são realizados entre outros. Assim, os famosos empreendedores por necessidade acessam mercados com o intuito de apenas criar recursos para subsistência da família, sendo que as decisões de negócio na maioria das vezes serão tomadas nessa perspectiva, ficando o desenvolvimento tecnológico e a capacidade de inovação em planos inferiores, ou seja, o esforço centra-se na permanência da empresa e na produção de recursos suficientes para o sustento da família, a preocupação com o aumento de custos para um futuro de resultados positivos, em razão de inovações ou implantação de novas tecnologias no processo produtivo, é constantemente negligenciado. Dessa forma, o Estado deve proporcionar um ambiente propício para que as empresas de pequeno porte possam inovar e desenvolver tecnologias como também aplicar as existentes em seus processos industriais.

2. O tratamento favorecido e diferenciado previsto na Constituição Federal Um dos princípios da ordem econômica na constituição federal de 1988, dispõe que deve ser conferido “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. (IX, do artigo 170). Da mesma maneira, o artigo 179 da mesma Constituição, assim dispõe: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”. Como se observa no texto constitucional as expressões tratamento favorecido e tratamento diferenciado demandam que medidas de natureza legislativa sejam tomadas no interesse de empreendedores de menor porte. Nesse sentido,

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se a atividade econômica atual requer que as empresas inovem e tenham acesso aos meios de produção mais avançados que existem, tais condições também devem compreender tratamento favorecido e diferenciado no que diz respeito ao acesso e criação de novas tecnologias. É sempre bom lembrar que o legislador constitucional utilizou termo infeliz, qual seja, tratamento favorecido, pois a atividade econômica não pode ser tratada de forma favorecida, o que o legislador quis dizer, talvez, é que o favorecimento compreende a criação de facilidades compatíveis com a natureza e estrutura das empresas de pequeno porte no Brasil.4 Nas palavras de André Ramos Tavares: “O tratamento favorecido para esse conjunto de empresas revela, contudo, a necessidade de se proteger os organismos que possuem menores condições de competitividade em relação às grandes empresas e conglomerados, para que dessa forma efetivamente ocorra a liberdade de concorrência (e de iniciativa). É uma medida tendente a assegurar a concorrência em condições justas entre micro e pequenos empresários de uma parte, e de outras, grandes empresários”.5 Compreender o significado e alcance da expressão tratamento favorecido/diferenciado demanda a construção da identidade das empresas de pequeno porte, para que na legislação complementar e ordinária possa-se compensar as obrigações impostas com a estrutura específica das empresas de pequeno porte, o que acontece, por exemplo, com a diminuição da burocracia para registro formal das empresas, ou a forma simplificada de recolhimento de obrigações tributárias, mas possibilitar que tais empresas criem inovações e usufruam de tecnologias novas para melhorar o processo de produção de mercadorias ou de prestação de serviços, da mesma maneira necessitam de adequações que considerem as características de administração e condução do negócio, realizada em geral, pelos próprios empreendedores. O acesso a recursos disponíveis para permitir o financiamento de projetos de inovação, no caso das empresas de pequeno porte, devem considerar as dificuldades e deficiências decorrentes da estrutura incompleta para ter condições de concorrer com médias e grandes empresas na obtenção desses recursos. Dessa maneira, o esforço para inclusão das empresas de pequeno porte deve resultar tanto do tratamento diferenciado, quanto de outros mecanismos que equiparem as condições de participação de empresas de porte distintos.

4 Fabiano Del Masso. Direito Econômico Esquematizado. 4ª ed, Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 71. 5 Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 72.

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O que se quer, na verdade, é que os dispositivos previstos na Lei Complementar nº 123, no caso os artigos 64 a 67 tenham condições de serem realmente aplicados a fim de proporcionar estímulos à inovação.

3. Principiais características das empresas de pequeno porte Como já mencionado linhas atrás, conhecer a estrutura e forma de funcionamento das empresas de pequeno porte contribui de forma determinante para refletir maneiras eficientes de fazê-las inovar. O primeiro passo para adequar a legislação às empresas de pequeno porte, requer a identificação das suas características.

3.1 Organização da exploração da atividade econômica A atividade do empreendedor consiste, de forma simples, em bem organizar os fatores de produção, hoje, com todas as novas ferramentas utilizadas nos mercados, como por exemplo, administrar estratégias de marketing, negociação de créditos e débitos entre outros. No caso das empresas de pequeno porte deve-se considerar que, de forma geral, a organização do negócio é deficiente, ou seja, a organização contábil, jurídica, estrutural é desenvolvida de maneira bem diferente das empresas de médio e grande porte. Para exemplificar, basta se atentar que uma empresa de pequeno porte não será, em regra, auditada, nem internamente e muito menos por auditorias contratadas, a maior parte dos seus documentos negociais não passarão pelo crivo de profissionais da área jurídica, a próprias contabilidade será realizada por escritório externo contratado, que praticamente cuidará apenas do cumprimento das obrigações formais necessárias. A organização da exploração econômica realizada pelas empresas de pequeno porte, dificilmente proporcionarão a possibilidade, por exemplo, de fornecer documentos de ordem contábil, jurídica e até mesmo técnicos para atestar a sua capacidade de produção, os seus custos, as suas necessidades de investimento entre outros.

3.2 Montante de capital para investimento Outra característica importante das empresas de pequeno porte, consiste na disponibilidade reduzida que possui para a utilização de capital próprio. Geralmente, o investimento do empreendedor ou dos sócios no caso de ser uma sociedade é substancialmente pequeno, muitas vezes até aquém do necessário para iniciar as atividades econômicas. Tal característica demonstra que o investimento para a instituição do negócio muitas vezes é insuficiente até mesmo para

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estruturar de forma completa os recursos produtivos para o desenvolvimento do objeto econômico específico que pretende desenvolver o pequeno empreendedor. No curso da atividade a situação não é diferente, o administrador de empresas de pequeno porte costuma ser um verdadeiro malabarista no que diz respeito ao financiamento de sua atividade econômica, sendo extremamente comum, por exemplo, que a produção esteja atrelada ao adiantamento de recursos realizados pelo próprio destinatário dos produtos ou serviços que serão fornecidos.

3.3 Recursos humanos disponíveis Em regra, os profissionais que desempenham as suas atividades nas empresas de pequeno porte, não possuem qualificação específica para a atividade que desenvolvem, é o próprio caso do administrador do negócio, que na maioria das vezes se confunde com o próprio empreendedor, a característica dos outros profissionais contratados exige na maior parte das vezes, a realização de mais de uma atividade, sem a preocupação de realizar a separação em atividades administrativas, comerciais ou técnicas. Como fica fácil de perceber pela estrutura de recursos humanos disponível nas empresas de pequeno porte, o cumprimento de burocracias torna-se praticamente impossível, daí a necessidade da constante simplificação no cumprimento de suas obrigações formais, mas exigências externas como prestação de contas, projetos de desenvolvimento de novos produtos ou de requerimento de financiamentos são extremamente penosos para a empresa de pequeno porte.

3.4 Inovação nas empresas de pequeno porte Diante da realidade organizacional das empresas de pequeno porte é fácil constatar que a produção ou o acesso à novas tecnologias são por demais custosas para estas empresas. Dessa forma, o desenvolvimento de inovações que dependam de uma grande estrutura e de substanciais investimentos estão sempre fora da mira de alcance das empresas de pequeno porte. Sabendo o custo, por exemplo, para a produção de um novo medicamento, fica claro que apenas os grandes laboratórios é que terão condições de produzir inovações de tal monta. Assim, as inovações que podem ser produzidas por empresas de pequeno porte são muito mais de natureza incremental, ou seja, a finalidade e intenção é de apenas aperfeiçoar algumas técnicas. Conclui-se que a estrutura utilizada para o desenvolvimento de atividades econômicas por empresas de pequeno porte não é suficiente para proporcionar condições favoráveis a produção de inovações, até mesmo o próprio reconheci-

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mento da importância em inovar é difícil nessas empresas, ou seja, também não existe uma cultura de que o sucesso e continuidade do negócio está vinculado à produção de inovações, as preocupações dos administradores está sempre focada no curto prazo, o que os faz ficarem defasados no mercado, sem conhecer os rumos que as inovações levarão as exigências dos consumidores daquele produto ou serviço específico. Assim, mesmo a qualidade do produto acaba sendo diminuída em face das modificações e atualizações decorrentes das inovações tecnológicas. Portanto, se não forem criadas políticas públicas específicas para as empresas de pequeno porte, dificilmente terão condições de participar de mercados tecnológicos que se transformam em curtos espaços de tempo.

3.5 Criação de ativos imateriais Dificilmente as empresas de pequeno porte possuem ativos imateriais relevantes, como por exemplo: marcas, desenhos industriais, patentes, direitos autorais entre outros. A falta de recursos tanto para criá-los quanto para protegê-los impossibilitam a sua criação. Investimentos em marketing, anúncios publicitários são exceções nas empresas de pequeno porte. É bom esclarecer que o investimento na criação de marcas, em desenhos industriais são muito importantes para promover a modificação de alguns produtos no mercado, pois a criação de novos produtos, muitas vezes, se desenvolve apenas por alterações ornamentais, sem qualquer melhora na sua utilidade.

4. Condições de acesso aos recursos para desenvolvimento de inovações As condições estruturais das empresas de pequeno porte as impedem de financiar com recursos próprios a produção de novas tecnologias. De forma que os pequenos empreendedores deverão buscar financiamentos disponíveis para o desenvolvimento e a execução de projetos de inovação, principalmente, no âmbito de instituições públicas que publicam os seus editais para custeio de projetos, mas que também são de difícil acesso aos empreendedores de pequeno porte. Veja-se logo abaixo, algumas das dificuldades enfrentadas diante dos editais publicados, que reclamam modificações imediatas para garantir as empresas de pequeno porte as condições de esclarecimentos para a participação e o necessário cumprimento de todos os requisitos.

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4.1 Transparência dos editais Os créditos disponíveis para o desenvolvimento de pesquisas que podem gerar conhecimento tecnológico serão dispostos em editais que estipulam as regras para obtenção dos recursos. A divulgação dos editais, em regra, é realizada de forma velada para os pequemos empreendedores, que dificilmente possuem recursos para acompanhar as publicações. Da mesma maneira, são inúmeras as dificuldades que enfrentam as empresas de pequeno porte para compreensão dos requisitos necessários para poder concorrer aos recursos que serão fornecidos. Com frequência os que não estão habituados com os editais e, também não tem condições de contratar pessoas especializadas para a realização das propostas, reclamam da redação incompreensível e das exigências que excluem de antemão as empresas de pequeno porte. Da forma como são elaborados os editais, fica patente que são destinados a empresas de médio e grande porte, cuja estrutura já é compatível com o oferecimento de propostas mais consistentes e elaboradas.

4.2 Elaboração de propostas A elaboração de propostas também não configura um trabalho fácil para os pequenos empreendedores, devido a complexidade exigida por muitos julgadores nos documentos formais apresentados. Na verdade, não existe um projeto de auxilio as empresas de pequeno porte para tornarem-se concorrentes reais nos procedimentos administrativos que visam atribuir recursos para financiamento de atividades de criação de novas tecnologias.

4.3 O que mudar O tratamento favorecido ou diferenciado que merecem as empresas de pequeno porte pode ser realizado de maneira a tornar mais transparentes as regras de acesso a recursos financeiros de financiamento, a própria criação de programas de apoio para que os pequenos empreendedores possam criar a cultura de investimento e dedicação na produção de novas tecnologias. Da mesma maneira, incentivos fiscais podem direcionar os administradores de empresas de pequeno porte para participar de atividades que esclareçam de forma simples como desenvolver projetos de inovação. Mesmo a possibilidade de concessão de subsídios tecnológicos para que as empresas se estruturem com as tecnologias disponíveis.

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Como explanado as empresas de pequeno porte, muitas vezes ao contrário do que se imagina, são responsáveis sim por parte substancial da geração de postos de trabalho e consequentemente de renda, ou seja, são importantes para o desenvolvimento econômico dos países. Entretanto, com a internacionalização dos mercados os fatores de tecnologia produzida e tecnologia utilizada na produção passaram a ser substanciais na competitividade dos mercados. Dessa forma, o Estado deve se preocupar com a capacitação tecnológica dos pequenos empreendedores de forma mais ativa. Do contrário, a maior parte das empresas de pequeno porte continuarão a ter uma sobrevida mais curta após a sua constituição. Não mais se contesta a importância da inovação no sucesso dos empreendimentos econômicos.

5. A importância do desenvolvimento tecnológico O objetivo agora é ponderar se as empresas de pequeno porte poderão sobreviver se não inseridas no ambiente de produção de inovações, de participação nas ferramentas tecnológicas para implementar a produção e o próprio uso de mecanismos modernos de comunicação que revolucionaram as formas usuais de comércio. Como bem pondera Luc Ferry: “Antes de tudo é necessário se ter uma ideia clara das razões pelas quais o capitalismo, como já havia compreendido um dos maiores economistas do século XX, Joseph Schumpeter, nos destina, inelutavelmente, à perpétua lógica da inovação pela inovação e, por isso, o que dá no mesmo, à lógica da ruptura, também ela incessante, com todas as formas de herança, de patrimônio e de tradição”.6 Há muito tempo já ensinava Adam Smith: “(...) nem todos os aperfeiçoamentos introduzidos nas máquinas foram produto da invenção daqueles que tinham ocasião de as utilizar. Muitos deles foram produto do engenho dos construtores de máquinas. Desde que este trabalho se tornou uma actividade independente; e alguns foram criação daqueles a quem é costume denominar de filósofos ou homens de pensamento, cujo ofício não consiste em fazer alguma coisa, mas em tudo observar; e que, por isso mesmo, são muitas vezes capazes de combinar as aptidões de objectos muito distantes e dissemelhantes. Com o progresso da sociedade, a filosofia ou especulação torna-se, como qualquer outra actividade, na única ou principal tarefa e ocupação de uma determinada classe de cidadãos. Também como qualquer outra actividade, subdivide-se num grande número de ramos distintos, cada um dos quais proporciona ocupação a uma certa tribo ou classe de filósofos; e esta subdivisão do emprego da filosofia, como nas outras atividades, aumenta a destreza e economiza tempo. Cada individuo 6 A Inovação Destruidora: ensaio sobre a lógica das sociedades modernas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p.12/13.

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se torna mais perito no ramo que lhe compete, acresce-se o volume de trabalho realizado, e a ciência progride consideravelmente graças a isso”.7 A clássica obra citada acima, já no século XVIII demonstrava a compreensão e esclarecia a importância do uso da tecnologia na produção, ainda que de forma rudimentar, a percepção de que a produção pode sofrer mudanças que melhoram o desempenho da atividade produtiva, sejam elas decorrentes do aprimoramento da destreza de quem as produz, ou da criação de novas ferramentas que possibilitam o ser humano melhorar a produção em qualidade e utilizando menos tempo. Parece, portanto, desnecessária a defesa da importância da tecnologia na economia moderna, como ressaltam Chris Freeman e Luc Soete: “No mundo da microeletrônica e da engenharia genética não se faz necessário destacar a importância da ciência e da tecnologia para a economia. Quer encaremos a tecnologia primordialmente como um meio de escravização humana e de destruição, como acreditam Marcuse e Simone de Beauvoir, ou quer como Adam Smith e Marx, como uma força libertadora. Por mais que queiramos, não podemos escapar do seu impacto em nossas vidas, nem dos dilemas morais, sociais e econômicos em que ela nos envolve. Podemos amaldiçoar ou abençoar a tecnologia, mas nunca ignorá-la”.8 A questão primordial no caso da preocupação de proporcionar um ambiente viável de desenvolvimento e acesso tecnológico por parte das empresas de pequeno porte consiste no fato de aceitar que a exclusão destas empresas do processo inovativo as retirarão do mercado, o que parece ser caótico para a demanda de produtos e serviços. As empresas de pequeno porte para que estejam inseridas na produção econômica atual devem identificar o progresso tecnológico como fundamental para a sua subsistência. O progresso tecnológico foi percebido por Schumpeter como uma via eficiente de competição entre as empresas, fundamental para o desenvolvimento econômico. A concepção de destruição criadora identificou a necessidade de que todos os empreendedores estejam inseridos no processo econômico que passa por mudanças rumo ao desenvolvimento econômico. Em suas palavras: “O capitalismo é, por natureza, uma forma ou método de transformação econômica e não, apenas, reveste caráter estacionário, pois jamais poderia tê-lo. Não se deve esse caráter evolutivo do processo capitalista apenas ao fato de que a vida econômica transcorre em um meio natural e social que se modifica e que, em virtude dessa mesma transformação, altera a situação econômica. Esse fato é importante e essas transformações (guerras, revoluções e assim por diante) pro7 Riqueza das Nacões. Tomo I, 6ª ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 88/89. 8 A Economia da Inovação Industrial. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2008, p. 18.

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duzem frequentemente transformações industriais, embora não constituam seu móvel principal. Tampouco esse caráter evolutivo se deva a um aumento quase automático da população e do capital, nem às variações do sistema monetário, do qual se pode dizer exatamente o mesmo que se aplica ao processo capitalista. O impulso fundamental que põe e mantém em funcionamento a máquina capitalista procede dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados e das novas formas de organização industrial criadas pela empresa capitalista”.9 Dessa forma, a concorrência se estabelece com base nas inovações que são produzidas, tanto pela criação constante de novos produtos como também dos meios de produção que se aperfeiçoam de forma voraz na eficiência da produção. A dinâmica do capitalismo impõe que as transformações dos produtos oferecidos ocorram de forma mais rápida, uma simples mudança de aspectos estilísticos ou estéticos são suficientes para o abandono das formas antigas pelo mercado de consumo. É bom lembrar que é o próprio mercado que demanda as inovações, pois os empreendedores sempre estão observando quais são as novas necessidades dos consumidores para tentar transformar o produto existente em mercadoria transformada pela tecnologia com a finalidade de melhorar a sua utilidade. Um último ponto importante a ser abordado consiste na necessidade de organizar uma estrutura de produção tecnológica que extrapola os limites da estrutura empresarial do empreendedor, ou seja, dificilmente se inova sozinho, é necessária a criação de uma rede que reúne capital, inteligência, treinamentos, pesquisa, investimento e, se possível, subsídios públicos.

6. Democracia econômica e responsabilidade social nas sociedades tecnológicas A constatação de que se vive em uma sociedade tecnológica é indiscutível, as pessoas estão habituadas a aguardar o lançamento de produtos mais sofisticados que supram as sempre novas necessidades. Assim, a geração de novos medicamentos, de veículos com dispositivos de segurança modernos, de mecanismos que melhoram as imagens produzidas nos telefones celulares, nas máquinas de fotografias digitais e nas televisões são aguardados por todos. Mas, é bom se atentar que “o progresso faz vítimas. Os teares mecanizados destruíram a maioria dos artesãos têxteis, os trens substituíram a maioria dos donos de diligências, os computadores substituíram a maioria dos balconistas. Hoje, entre-

9 Joseph A. Schumpeter. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 105.

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tanto, estamos vivenciando algo além do progresso: vivenciamos uma mudança na natureza dinâmica econômica da produção”.10 Em razão dos diversos fatores que foram identificados ao se analisar as características especificas das empresas de pequeno porte, conclui-se, que a necessidade de intervenção estatal na economia para proporcionar a participação e continuidade dessas empresas na produção de mercadorias e serviços é de rigor. Da mesma maneira, mesmo com todas as dificuldades de estrutura enfrentadas, as empresas de pequeno porte demonstram em alguns estudos que possuem capacidade inovadora, pois em muitos casos a ausência de burocracia interna, a rapidez nas decisões, a propensão aos riscos funciona como eficiências inovativas. De toda forma, as dificuldades de acesso a recursos financeiros disponíveis e a dificuldade em organizar parcerias para a realização de projetos de inovação comprometem os resultados positivos. Diante das diferenças de estruturas das pequenas e grandes empresas é fácil constatar que as vantagens de umas sobre outras se alternam na medida que a maior disponibilidade de recursos financeiros e tecnológicos pelas grandes empresas lhes permitem a realização de projetos inovativos mais radicais, com prazos mais estendidos e de custos substanciais. É claro que as atividades econômicas em alguns setores específicos contribuem para impossibilitar que uma empresa de pequeno porte produza tecnologia. Nesse sentido, dificilmente será encontrada uma empresa de pequeno porte que explora o setor automobilístico ou aeronáutico, por exemplo. Dessa maneira, para que as empresas brasileiras tenham condições de participar e concorrer produzindo tecnologia é necessário que se desenvolva em primeiro plano uma conscientização da importância em se preocupar com tecnologia na exploração de qualquer atividade econômica para que dai partam as outras iniciativas. Os estudos devem considerar as deficiências especificas destas empresas, para que as mesmas tenham acesso a recursos que financiam a implementação de projetos de inovação. Não parece ser difícil constatar, que dependendo do objetivo da pesquisa, as estruturas menores podem ser mais eficientes dos que as maiores, de forma que os editais devem privilegiar também qualidades inovativas das empresas de pequeno porte. Enfim, o sistema jurídico pode contribuir para a inclusão de tais empresas no processo econômico, e essas condições garantem também a aplicação de outros princípios importantes da ordem econômica, como por exemplo: da livre iniciativa e da livre concorrência.

10 Luigi Zingales. Um Capitalismo para o povo. São Paulo: BEI Comunicação, 2012, p. 113.

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Referências bibliográficas DEL MASSO, Fabiano. Direito Econômico Esquematizado. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016. FERRY, Luc. A Inovação Destruidora: Ensaio sobre a lógica das sociedades modernas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. FRANÇA, Antonio de S. Limongi. As pequenas e as microempresas no direito brasileiros. Curitiba: Juruá, 2011. FREEMAN, Chris. SOETE, Luc. A Economia da Inovação Industrial, Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2008. NELSON, R. Nelson. As fontes do crescimento econômico. Campinas/SP: Unicamp, 2006. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961. SMITH, Adam. Riqueza das Nacões. Tomo I, 6ª ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003. ZINGALES, Luigi. Um Capitalismo para o povo. São Paulo: BEI Comunicação, 2012.

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COLABORAÇÃO PREMIADA E SEUS EFEITOS

Everton Luiz Zanella1 / Rogério Cury2

Resumo: O presente trabalho tem como escopo tratar do instituto da colaboração premiada e seus efeitos no âmbito do sistema legislativo brasileiro. Neste contexto foram abordados os requisitos para a obtenção da colaboração premiada, previstos na Lei 12.850/2013, bem como os benefícios conferidos ao colaborador. Houve a indicação do procedimento para a realização da colaboração e a indicação das autoridades públicas que poderão tratar dos termos com o colaborador. No caso, mostrou-se que o juiz não participará do acordo, preservando-se, desta forma, sua necessária imparcialidade. Abordou-se ainda a natureza jurídica do benefício do não oferecimento da denúncia, na hipótese de o colaborador não ser o líder da organização criminosa e o primeiro a delatar. Os direitos do colaborador e o valor probatório da colaboração também foram tratados, em especial, aos olhos da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

1 Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Doutor e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 2 Advogado, Especialista e Mestre em Direito e Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie; cursou Direito Penal Alemão, Europeu e Internacional - George-August-Universitat - Gottigen – Alemanha.

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Colaboração premiada e seus efeitos Everton Luiz Zanella / Rogério Cury

Por fim, passou-se à análise dos efeitos positivos e negativos da colaboração premiada. Na primeira hipótese, merece destaque a cessação da prática do próprio crime investigado, a oportunidade de se romper a affectio societatis entre os membros da organização criminosa, a obtenção de novas provas, a recuperação de ativos e a comprovação da estrutura da organização criminosa. Por sua vez, como efeitos negativos, destacamos a acomodação das atividades investigativas, o aumento de imputações de prática de organização criminosa, a ausência de proporcionalidade entre a pena/punição do autor/ colaborador e do partícipe/ não colaborador, o desinteresse em recuperar e ressocializar o criminoso, bem como a falta de sintonia com o acordo de leniência. Palavras-chave: Colaboração premiada. Direitos do colaborador. Valor probatório. Procedimento. Efeitos positivos e negativos. Abstract: The purpose of this article is to study the institute of the plea agreement and its effects within the Brazilian legislative system. In this context, the requirements for obtaining the plea agreement provided for in Law 12850/2013, as well as the benefits offered to the defendant, were addressed. There was an indication of the procedure for the plea agreement and the indication of the public authorities that could handle the terms with the defendant. In this case, it was shown that the judge will not participate in the agreement, thus preserving its necessary impartiality. It was also investigated the reason and consequences of not offering a complaint by the Public Ministry, in the hypothesis that the defendant is not the leader of the criminal organization and he is the first to report the facts to the authorities. The rights of the employee and the probative value of the agreement were also dealt with in the view of the doctrine and jurisprudence of the Federal Supreme Court. Finally, we proceeded to analyze the positive and negative effects of the plea agreement. In the first hypothesis, we highlight the cessation of the practice of the crime investigated itself, the opportunity to break the affectio societatis among members of the criminal organization, obtaining new evidence, recovering money and property and demonstrating the structure of the criminal organization . In turn, as a negative effect, we focused on the accommodation of investigative activities, the increase in accusations of practicing the criminal organization, the lack of proportionality between the authors / collaborator’s punishment and the

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participant / non-collaborator, the disinterest in re-socialize the perpetrator of the crime, as well as the lack of harmony with the leniency agreement. Keywords: Plea agreement. Rights of the defendant who cooperates. Proof value. Procedure. Positive and negative effects. Sumário: Introdução 1. Requisitos da colaboração premiada e o prêmio do colaborador 2. Procedimento da colaboração premiada 3. Não-oferecimento de denúncia e sua natureza jurídica 4. Direitos do colaborador 5. O valor probatório 6. Efeitos da colaboração premiada após a sentença condenatória 7. Efeitos positivos e negativos da colaboração premiada

Introdução A colaboração premiada é um meio de busca da prova, mediante o qual o Estado, titular do jus puniendi, concede uma recompensa legal ao investigado ou acusado, em troca das informações que sejam úteis e importantes para a resolução de uma ou mais infrações penais. Este instituto guarda certa semelhança com a plea bargaining do direito anglo-saxão3, instrumento de política criminal celebrado entre a acusação pública e o autor de um fato criminoso, o qual confessa sua participação e aceita colaborar com as investigações, recebendo, em contrapartida, um abrandamento da pena. A negociação premial é adotada por diversos países como uma forma de investigar e combater organizações e associações criminosas, como ocorre nas legislações alemã (parágrafo 129-6 do Código Penal Alemão), espanhola (artigo 579 da Ley de Enjuiciamento Penal) e italiana (artigo 3º da Lei nº 304/82, artigo 18 da Lei nº 34/87 e o artigo 10 da Lei nº82/914). Esta tendência mundial é refletida na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado (Convenção de Palermo), que prevê a colaboração premiada no seu artigo 26: 1. Cada Estado-Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados:

3 MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 3.ed. São Paulo: Método, 2017, p.120121. 4 SILVA, Eduardo Araújo da. Organizações criminosas. São Paulo: Atlas, 2014, p.54-55.

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Colaboração premiada e seus efeitos Everton Luiz Zanella / Rogério Cury

a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente: I) A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos criminosos organizados; II) As conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos organizados; III) As infrações que os grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar; b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes, susceptível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do produto do crime. (grifo nosso). 2. Cada Estado-Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de reduzir a pena de que é passível um arguido que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção. (grifo nosso). 3. Cada Estado-Parte poderá considerar a possibilidade, em conformidade com os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno, de conceder imunidade a uma pessoa que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção. (grifo nosso).

No Brasil, além da previsão da própria Convenção de Palermo (promulgada no ordenamento jurídico interno por meio do Decreto Presidencial nº 5.015/2004), a colaboração premiada é prevista em diversas normas legais: Lei nº 9.807/99, artigos 13 e 14 (proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas e ao réu colaborador); Lei nº 9.613/98, artigo 1º, parágrafo 5º, com a redação da Lei nº 12.683/12 (lavagem de dinheiro); Lei nº 8.072/90, artigo 8º, parágrafo único (crimes hediondos); Lei nº 8.137/90, artigo 16, parágrafo único (crimes contra a ordem tributária, ordem econômica e relações de consumo); Lei nº 7.492/86, artigo 25, parágrafo 2º (crimes contra o sistema financeiro nacional); Código Penal, artigo 159, parágrafo 4º (crime de extorsão mediante sequestro); Lei nº 11.343/06, artigo 41 (tráfico de drogas); Lei nº 12.850/2013, artigos 4º a 7º (combate às organizações criminosas).

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Referidos dispositivos legais preveem requisitos específicos (que guardam pertinência temática com os crimes neles tipificados) e prêmios distintos ao colaborador.

1. Requisitos da colaboração premiada e o prêmio do colaborador As Leis acima apontadas trazem requisitos próprios para a colaboração premiada, mas é possível sintetizar que o Poder Público busca do colaborador: a identificação dos demais coautores e partícipes do crime, a recuperação de seu produto ou proveito, e a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. A Lei nº12.850/13, inspirada nas legislações estrangeiras, acrescentou a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa e a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização5. A legislação pátria, em todos os diplomas que tratam do instituto, prevê como recompensa ao colaborador a redução da pena de um a dois terços. Porém, vantagens ainda mais robustas foram trazidas na lei de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98, com redação dada pela Lei nº 12.683/12), na lei de proteção a vítimas, testemunhas e réus colaboradores (Lei nº9.807/99) e na Lei de combate ao crime organizado (Lei nº 12.850/13). A Lei nº 9.807/99 confere a possibilidade de perdão judicial (causa extintiva da punibilidade) ao colaborador primário, a partir da análise de sua personalidade, da natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão do crime (artigo 13, parágrafo único), bem como da eficácia da colaboração. A Lei nº 9.613/98 (com redação da Lei nº12.683/12) e a Lei nº 12.850/13 permitiram ainda mais ao estender a possibilidade de perdão judicial ao colaborador sem qualquer verificação de sua vida pregressa ou das circunstâncias do delito. Foram além: estatuíram a faculdade ao Juiz de substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direito. A Lei de lavagem de dinheiro ainda confere ao magistrado a possibilidade de fixação de regimes de pena aberto ou semiaberto ao colaborador. E, aqui, nos parece evidente que o juiz pode substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direito ainda que ausentes os requisitos do artigo 44 do Código Penal; pode ainda fixar regimes mais brandos de cumprimento de pena mesmo que ultrapassem os limites legais estipulados no artigo 33, parágrafo 2º, do diploma, 5 ZANELLA, Everton Luiz. Infiltração de agentes e o combate ao crime organizado – análise do mecanismo probatório sob o enfoque da eficiência e do garantismo. Curitiba: Juruá, 2016, p. 169.

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ou que o crime seja de natureza hedionda. Do contrário, não haveria nenhuma necessidade de previsão legal destas benesses, já que a situação estaria abarcada pelo próprio Código Penal6. Esta variedade de Leis tratando da temática da colaboração premiada pode, salvo melhor juízo, ensejar um conflito aparente de normas quanto aos requisitos que se pode exigir para a aplicação do instituto, bem como quanto aos benefícios que poderão ser aplicados ao colaborador. Isto porque é possível, por exemplo, que um colaborador esteja sendo investigado por participar de uma organização criminosa que opere o tráfico de drogas e faça a lavagem do capital obtido. Neste caso, considerando que no mínimo três normas legais propõem-se a solucionar a questão, qual seria a legislação aplicável? Pensamos que existem três possíveis entendimentos: I) Prevalece a lei posterior, adotando-se o critério cronológico. Por este posicionamento, a Lei mais recente, no caso a Lei nº 12.850/13, teria revogado tacitamente as normas anteriores, sendo aplicável para todos os casos de colaboração premiada. Parece-nos que esta solução é simplista e deixa de considerar os requisitos específicos das legislações especiais. II) Prevalece a lei especial aplicada à espécie de crime praticado. Por exemplo: aplicar-se a Lei n.º 8.137/90 para um colaborador que esteja envolvido em crimes contra a ordem tributária, devendo o acordo de colaboração observar seus requisitos e prêmios específicos. Na ausência de uma Lei especial que regule sobre o tema (exemplo: colaborador responde por crime de roubo), mas estando o investigado ou acusado sob a égide da proteção estatal, seria aplicada a Lei nº 9.807/99, que traz contornos gerais sobre o tema. Pensamos que este critério, embora respeite os requisitos próprios de cada Lei, é incompleto, por não resolver casos em que duas Leis sejam potencialmente aplicáveis (caso de concurso de crimes ou de crimes praticados por organizações criminosas). III) Prevalece a lei especial quanto à exigência dos requisitos legais, podendo, contudo, ser aplicado o benefício que mais favoreça o colaborador. Exemplo: se o colaborador praticou extorsão mediante sequestro, ele só fará jus à colaboração se delatar os coautores e der informações que permitam a libertação do sequestrado (artigo 159, § 4º, do Código Penal). Porém, se o colaborador for primário e as circunstâncias judiciais forem favoráveis, ele poderia receber o perdão judicial, nos termos do artigo 13, parágrafo único, da Lei nº 9.807/99. De outro vértice, se a infração praticada for a do artigo 2º da Lei nº 12.850/13 ou a do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, possível aplicar as benesses da colaboração premiada previstas nestas normas, que disciplinam vantagens mais contundentes, 6 ZANELLA, Everton Luiz. Op. cit., p. 170.

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como o perdão judicial, a fixação de regime mais brando ou a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito. Este terceiro critério parece-nos o mais acertado, porque, de um lado, adota a lei especial concernente ao crime praticado, a qual melhor protege o bem jurídico tutelado e determina exigências específicas para a investigação e repressão do ilícito (exemplo: se o crime praticado é o de tráfico de drogas, a Lei deve ter como meta apreender tal substância); e, de outro lado, porque permite a concessão dos maiores benefícios legais ao colaborador (como o perdão judicial), medida que o incentivará a fornecer às autoridades, de forma efetiva, todas as informações que possuir sobre o crime apurado.

2. Procedimento da colaboração premiada Embora diversas normas legais tratem dos requisitos e dos prêmios para a colaboração, a Lei nº 12.850/13, em seus artigos 4 e seguintes, foi a primeira e é a única a prever qual o seu procedimento, sendo este aplicável qualquer que seja o delito praticado. Consoante artigo 4º, § 2º, da Lei n.º 12.850/2013, o acordo de colaboração premiada poderá ser formulado pelo membro do Ministério Público, na fase de investigação ou durante o processo-crime; ou representado pela autoridade policial na fase de investigação. Nesta última hipótese, o dispositivo legal prevê que o acordo será precedido de manifestação do Ministério Público, o que se justifica pelo fato de que o órgão, além de titular da ação penal, exerce também a função de controle externo da atividade policial (artigo 129, incisos I e VII, da Constituição Federal). A possibilidade de a autoridade policial firmar compromisso de colaboração premiada foi questionado pela Procuradoria-Geral da República, que ajuizou a ação direta de inconstitucionalidade n.º 5508 perante o Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que somente o Ministério Público, órgão titular da ação penal, poderia firmar tal espécie de acordo premial. O julgamento foi rea-

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lizado no dia 14 de dezembro de 2017, mas foi suspenso após a votação de sete Ministros, não havendo, ainda, uma definição exata sobre o tema7. A Lei exige que o acusado, ao celebrar o acordo, esteja acompanhado de Defensor (público ou particular), preservando-se o princípio da ampla defesa. O artigo 4º, § 13, da Lei nº 12.850/13, reza que “sempre que possível o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações”. O acordo será reduzido a termo, o qual conterá o relato da colaboração e seus possíveis resultados, as condições da proposta do Ministério Público ou do Delegado de Polícia, a declaração de aceitação do colaborador e de seu advogado, as assinaturas dos presentes e, se necessário, a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família (artigo 6˚). Se o acordo de colaboração premiada ocorrer na fase investigativa (o que na prática geralmente ocorre), o prazo para o oferecimento da denúncia poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas pactuadas (artigo 5º, § 3º). O prazo prescricional também permanece suspenso pelo mesmo período. O lapso temporal de um semestre é assaz relevante para se comprovar o que foi declarado pelo colaborador, pois durante seu transcurso, a autoridade policial e o membro do Ministério Público poderão certificar-se da veracidade das informações por meio da adoção de medidas necessárias para tal fim, como, por exemplo, por meio de busca e apreensão (autorizada judicialmente) para encontrar documentos mencionados ou confirmar se o produto do crime está no local indicado; oitiva de testemunhas que confirmem as informações do colaborador; quebras de sigilos bancário e fiscal (também autorizadas judicialmente) para confirmar a existência de contas bancárias; dentre muitas outras diligências. O Juiz não participa do acordo, preservando-se, desta forma, sua necessária imparcialidade. Deve ele, tão somente, homologar o termo de colaboração, 7 É certo que o Tribunal atingiu uma maioria de sete votos pela permissão do acordo por Delegado de Polícia, havendo, no entanto, a tendência de imposição de limites. Com efeito, o Relator, Ministro Marco Aurélio, votou pela improcedência da ADIN, mantendo a possibilidade de que Delegados de Polícia firmem os acordos de forma plena. Outros cinco Ministros (Alexandre de Morais, Luiz Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli) votaram pela parcial procedência da ADIN, entendendo que a autoridade policial pode celebrar os compromissos de colaboração com algumas restrições, excluindo-se a propositura de imunidade processual (não propositura de denúncia) e o perdão judicial, institutos que somente poderiam ser acordados pelo Ministério Público, titular da ação penal. O Ministro Edson Fachin foi o único a interpretar que as tratativas do acordo competem ao Ministério Público, não podendo a Polícia Judiciária fazê-lo sem participação do Parquet (Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe. asp?idConteudo=364763, acesso em 11/02/2018).

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após uma análise de regularidade, legalidade e voluntariedade, facultando-se a ele, se entender pertinente, a oitiva do colaborador e, se o caso, a adequação da proposta com o fito de sanar eventuais vícios (artigo 4º, §§ 7º e 8º). Se o Juiz se recusar a homologar o acordo de colaboração premiada, ele remeterá o termo ao Procurador-Geral (da República ou de Justiça, a depender se a esfera é Federal ou Estadual), para a aplicação do artigo 28 do Código de Processo Penal (artigo 4º, § 2º, da Lei nº 12.850/13). O acordo de colaboração pode ser realizado tanto na fase pré-processual (investigativa), como na fase processual. Os efeitos nestas hipóteses são basicamente os mesmos e serão analisados na sentença (artigo 4˚, § 11). A diferença fica por conta da imunidade processual (não-oferecimento de denúncia), que obviamente só tem cabimento quando o acordo n fase investigativa, como forma de evitar o processo. A Lei de combate ao crime organizado também admite a colaboração premiada após a sentença condenatória (artigo 4º, § 5º, da Lei nº 12.850/13)8. Neste caso, o Juiz poderá reduzir a reprimenda até ½ (metade) ou autorizar a progressão de regime, ainda que não cumprido o lapso temporal estabelecido pelo Código Penal9. O colaborador, ao assinar o compromisso de colaboração, na presença de seu Defensor, renunciará ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade (artigo 4º, § 14). Se ele imputar falsamente a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações falsas sobre a estrutura de organização criminosa, poderá incorrer no crime do artigo 19 da Lei nº 12.850/13, com pena de reclusão de 1 a 4 anos. Todos os signatários do termo devem zelar pelo seu sigilo, até o recebimento da denúncia (artigo 7º, § 3º). A formalização do acordo, por escrito, conforme determina a norma, proporciona ao investigado ou acusado maior segurança jurídica e certeza do recebimento do prêmio, desde que comprovada a efetividade de sua colaboração10.

8 Esta medida já havia sido admitida pela Lei nº 9.613/98, com redação da Lei nº 12.683/12, a qual estabelece que o juiz, “a qualquer tempo” (sem limite temporal) pode deixar de aplicar a pena, aplique-a com redução de 1/3 a 2/3, ou a substitua por restritiva de direito, quando o réu colaborar voluntariamente com as autoridades na apuração do crime de lavagem de dinheiro, na identificação dos coautores, ou na localização dos bens ou valores relativos ao crime. 9 As obras de Cleber Masson e Vinícius Marçal (Op. cit., p.157), e de Eduardo Araújo da Silva (op. cit., p. 63) expõem que o acordo de colaboração pode ser realizado mesmo após o trânsito em julgado da condenação (no momento da execução penal), já que a lei é expressa neste sentido. 10 ZANELLA, Everton Luiz. Op. cit., p. 172.

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3. Não-oferecimento de denúncia e sua natureza jurídica O artigo 4, § 4º define que se o colaborador não for o líder da organização criminosa e, cumulativamente, for o primeiro a prestar efetiva colaboração, o Ministério Público poderá deixar de oferecer a denúncia em relação a ele. Questão que nos parece duvidosa é: qual a natureza jurídica do não oferecimento de denúncia em relação ao colaborador? Como deve o Ministério Público proceder em face dele? Para Cleber Masson e Vinícius Marçal, o Ministério Público promoverá o arquivamento do inquérito policial em relação ao colaborador, com esteio em uma causa extintiva da punibilidade sui generis. O juiz homologará ou não (nesse último caso, ele aplicaria o artigo 28 do Código de Processo Penal)11. Pensamos, particularmente, que não é o caso de simples arquivamento, pois haveria elementos a embasar a ação penal, uma vez que não estamos diante de ausência de provas de materialidade ou de indícios de autoria, tampouco de causas excludentes de tipicidade, ilicitude ou culpabilidade. Igualmente, não nos parece que o não-oferecimento de denúncia seria um pedido, antecipado, de perdão judicial pelo Ministério Público, que levaria a uma sentença declaratória, imediata, de extinção da punibilidade12. Isto porque o Juiz apenas pode declarar uma situação se ela for consolidada e imutável, como, por exemplo, o perdão judicial para quem comete homicídio culposo de um ente querido13. Esta situação é completamente distinta do perdão judicial decorrente de colaboração premiada, o qual, para ser judicialmente reconhecido, não depende somente da comprovação do fato típico e da culpabilidade, mas também do cumprimento integral dos termos da colaboração, incluindo-se, naturalmente, a eventual necessidade de confirmar os fatos em instrução judicial sob o crivo do contraditório. Neste compasso, o magistrado somente poderá reconhecer o instituto do perdão judicial decorrente da colaboração premiada na fase de sentença, e, somente se forem cumpridos os termos do acordo. Se descumprida a avença, o compromisso será revogado e o perdão não será efetivado. 11 MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Op. cit., p.161-163. 12 Um pedido de perdão judicial antecipado teria base jurídica na Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça, a qual reconhece que a decisão judicial concessiva do perdão é meramente declaratória e pode dar-se a qualquer momento, sem a necessidade de processo-crime ou condenação do réu para aplicação da causa extintiva da punibilidade (prevista no artigo 109, IX, do Código Penal). 13 Como acontece quando o juiz reconhece que as consequências da morte da vítima atingiram o autor de homicídio culposo de forma tão grave que a pena tenha se tornado desnecessária (artigo 121, § 5º, do Código Penal). Nesta hipótese, a culpa do homicida está configurada e o óbito está consumado, sendo irreversível o quadro, bastando a declaração do perdão, que pode, a nosso ver, ocorrer a qualquer momento.

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Assumimos o entendimento, então, de que o não-oferecimento de denúncia é uma forma de imunidade processual já antes prevista no artigo 37, IV, da extinta Lei nº 10.409/2002 (Lei de Drogas revogada em 2006), que enseja uma causa de perdão judicial futura e condicional. Ora, nos parece que somente é possível ao Ministério Público deixar de denunciar o colaborador se no termo de colaboração constar como laurel o (futuro) perdão judicial. Se o promotor de justiça pretender como recompensa uma causa de diminuição da pena privativa de liberdade ou sua substituição por restritiva de direito ele deverá oferecer a denúncia e buscar a condenação judicial. Porém, se o prêmio avençado é o perdão judicial – e se o agente é o primeiro a colaborar e não é o líder da organização criminosa –, o Ministério Público poderá simplesmente deixar de denunciar, o que gerará um sobrestamento do feito em relação ao colaborador14. Se ele cumprir os termos do acordo, terá sua punibilidade extinta na sentença; se não cumprir, poderá ser denunciado15. Para Andrey Borges de Mendonça, uma vez homologado em juízo o acordo de colaboração, não seria possível a propositura ou retomada de ação penal contra o colaborador em razão da formação de coisa julgada material, mesmo que ele não cumpra o acordo16. Discordamos deste raciocínio, por entendermos que a homologação judicial é feita de imediato para um controle de legalidade e fornecimento de segurança jurídica ao pacto firmado, e não para promover um imediato perdão judicial, o qual, frisa-se, deverá ser reconhecido somente na sentença (condicional), de maneira que o desrespeito ao acordo por parte do colaborador não obstaria o oferecimento de denúncia ou a retomada da ação penal.

4. Direitos do colaborador A Lei n.º 12.850/2013 estampa, no seu artigo 5º, um rol de direitos do colaborador, quais sejam: usufruir das medidas de proteção previstas no artigo 7º da Lei nº 9.807/99; ver preservadas sua qualificação e imagem, inclusive pelos meios de comunicação; ser conduzido para oitiva em juízo separadamente dos demais coautores e partícipes e com eles não ter contato visual; e cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus condenados. 14 Não se trata da suspensão do prazo de seis meses, prorrogáveis por igual prazo, para oferecimento de denúncia, previsto no artigo 4º, parágrafo 3º, da Lei, mas sim do período do processo criminal que tramita em relação aos demais agentes denunciados (artigo 22, parágrafo único, da Lei), dentro do qual o colaborador poderá ser chamado para oitiva em juízo (artigo 4º, parágrafo 12) para confirmar os fatos narrados por ocasião da colaboração. 15 ZANELLA, Everton Luiz. Op. cit., p. 174. 16 MENDONÇA, Andrey Borges de. A colaboração premiada e a nova lei do crime organizado. Custos Legis. Revista Eletrônica do Ministério Público Federal, v.4, 2013.

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5. O valor probatório A Lei n.º 12.850/2013 prevê, no seu artigo 4º, §16, vedação de que uma sentença condenatória seja proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador. A colaboração premiada constitui meio de obtenção prova, conforme previsto no artigo 3º, I da lei em referência, e é reconhecida pelas Cortes brasileiras como “(...) uma técnica especial de investigação, meio de obtenção de prova advindo de um negócio jurídico processual personalíssimo, que gera obrigações e direitos entre as partes celebrantes (Ministério Público e colaborador), não possuindo o condão de, por si só, interferir na esfera jurídica de terceiros, ainda que citados quando das declarações prestadas, faltando, pois, interesse dos delatados no questionamento quanto à validade do acordo de colaboração premiada celebrado por outrem (…)” (STJ - RHC 69.988/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca).

Desta feita, diante de suas peculiaridades, deve ser observada com muita cautela para que a investigação do fato não seja ignorada em detrimento da pessoa do colaborador. Nessa esteira, bem asseveram Bitencourt e Busato que a chamada do corréu já era vista com reservas diante de sua falta de compromisso para com a verdade, sendo reconhecida com mais peso apenas quando não implicava a própria isenção de responsabilidade para a atribuição desta a terceiro, tanto mais quando, para atribuir responsabilidade a terceiro, o corréu resta beneficiado17. Sobre o tema, analisando medida cautelar em ação impugnativa de mandado de segurança 34842-DF (Pet 7.003/DF), o e. Min. Celso de Mello já declarou em seu voto: “A impossibilidade de condenação penal que tenha por suporte, unicamente, o depoimento prestado pelo agente colaborador, tal como acentua a doutrina (EDUARDO ARAÚJO DA SILVA, “Organizações Criminosas: aspectos penais e processuais da Lei nº 12.850/13”, p. 71/74, item n. 3.6, 2014, Atlas, v.g.), constitui importante limitação de ordem jurídica que, incidindo sobre os poderes do Estado, objetiva impedir que falsas imputações dirigidas a terceiros “sob pretexto de colaboração com a Justiça” possam provocar inaceitáveis erros judiciários, com injustas condenações de pessoas inocentes. Na realidade, o regime de colaboração premiada, definido pela Lei nº 12.850/2013, estabelece mecanismos destinados a obstar abusos que possam ser 17 BITENCOURT, Cesar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à lei de organização criminosa : lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva. 2014. p. 137.

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cometidos por intermédio da ilícita utilização desse instituto, tanto que, além da expressa vedação já referida (“lex. cit.”, art. 4º, § 16), o diploma legislativo em questão também pune como crime, com pena de 1 a 4 anos de prisão e multa, a conduta de quem imputa “falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente” ou daquele que revela “informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas” (art. 19) (grifamos).

Logo, é de conhecimento geral que o magistrado, ao avaliar a prova, deve aplicar o princípio da persuasão racional, é dizer, o livre convencimento motivado, ocasião na qual ao apreciar livremente a prova, ter convencimento sobre ela, deve fundamentar especificamente sua decisão. Desta feita, uma condenação criminal, com todas as suas consequências e gravames, deve estar apoiada em prova cabal e extreme de dúvidas, não podendo sustentá-la meras ilações. Nesse caminhar a colaboração premiada, por si só, sem elementos probatórios robustos que a sustentem, não poderá servir como base de uma condenação criminal.

6. Efeitos da colaboração premiada após a sentença condenatória A Lei n.º 12.850/2013, em seu artigo 4º, § 5º, prevê a possibilidade da incidência de benefícios para aquele que colabora após a sentença, podendo ter sua pena reduzida até a metade ou a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos para tanto. No caso, o sobredito dispositivo causa preocupação, pois caso tenha havido o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nos parece inviável desfazer a coisa julgada, em razão da colaboração premiada, salvo nas hipóteses processualmente e tecnicamente admitidas, via ação impugnativa de revisão criminal, nos casos dos incisos do art. 621 do Código de Processo Penal. Assim, a considerar que a colaboração premiada possa atacar a coisa julgada, estaríamos a afrontar dispositivo constitucional, qual seja, o inciso XXXVI do artigo 5º que prevê, no ponto, “a lei não prejudicará (...) a coisa julgada”. Se ainda considerarmos que o termo posterior à sentença não implica necessariamente o trânsito em julgado, outras incongruências poderão advir. Imaginemos a seguinte hipótese: A e B respondem, em conjunto com outros réus, pelo delito de organização criminosa e, ao final do processo, advém sentença condenatória contra A e sentença absolutória em relação à B. O Ministério Público não interpõe recurso contra a absolvição de B, mas A realiza colaboração premiada e consegue provar que B era o chefe a organização criminosa.

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Tal colaboração não terá efeito prático algum contra B, pois pensar o contrário seria admitir se desfazer a coisa julgada em desfavor de corréu absolvido, com trânsito em julgado. Ademais, vale lembrar que o instituto da revisão criminal só poderá ser admitido em favor do réu, salvo na hipótese onde o fundamento da decisão que deu ensejo à coisa julgada, ainda que material, foi uma falsidade. No caso, a coisa julgada poderá ser desfeita, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 87.395 e HC 104.998).

7. Efeitos positivos e negativos da colaboração premiada O meio de obtenção de prova da Colaboração Premiada, festejado por uns, e questionado por outros, em que pese ser uma realidade em nosso sistema jurídico, ainda sofre severas críticas. Diante do quadro passaremos a apontar e analisar os efeitos positivos e negativos do instituto.

7.1 – Efeitos positivos Inquestionável que o acordo de colaboração premiada tem gerado benefícios, não só ao colaborador, conforme já demonstrado, mas à coletividade. Diante do quadro, em que pese as autoridades terem ciência da existência da criminalidade organizada e tentarem se preparar para enfrenta-la, muitas vezes, não conseguem fazer frente à forma de atuação dos criminosos, da execução dos delitos e da destinação e/ou distribuição dos ativos. Assim, em vários casos, a colaboração daquele que participou da organização criminosa é imprescindível para o seu desvelamento. Desta feita, podemos citar os seguintes efeitos positivos da colaboração, no âmbito da sociedade / bem comum: - cessação da prática do próprio crime investigado: em várias hipóteses, a organização criminosa pratica crimes em continuidade delitiva ou até mesmo crimes permanentes, de modo que a cessação da atividade criminosa, por intermédio da colaboração premiada, é de profunda eficácia. Ao menos a sua desestruturação já é importante para minimizar os efeitos da organização perante a sociedade em geral; - previne ou inibe a prática de novos crimes: a colaboração premiada, assim como a pena, também apresenta um caráter de prevenção geral, ou seja, demonstra que o novo instituto é capaz de mostrar à sociedade que os componentes da organização poderão ser delatados por seus comparsas e, com efeito, inibir a entrada do indivíduo na organização criminosa ou até mesmo desestruturá-la.

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- criar a oportunidade de quebrar a “affectio societatis” entre os membros da organização criminosa: um fator que gere a organização criminosa é a confiança entre seus componentes. Assim, ao criar e estruturar o instituto da colaboração premiada, o legislador flerta com o criminoso quando concede à ele a possibilidade de trair os demais e obter benefícios bastante eficazes e, até mesmo, confortáveis em relação aos demais integrantes da organização; - obtenção de novas provas: diante das peculiaridades da atuação e formação da organização criminosa, nem mesmo investigações aprofundadas conseguem encontrar determinadas provas, o que somente seria alcançado por meio do auxílio de um integrante direto, ao fornecer às autoridades mais elementos para a identificação de outros integrantes ou mesmo a prova da materialidade de outros delitos praticados pela organização; - recuperação de ativos e repatriação de recursos: muitas organizações criminosas, com o intuito de ocultar ou dissimular a origem, natureza, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente das infrações penais por elas praticadas, adquirem imóveis, promovem operações centenas ou milhares de pequenas operações financeiras em várias contas correntes de terceiros ou remetem, via cabo, grandes quantias ao exterior, em especial para paraísos fiscais. Toda essa complexa movimentação nem sempre é alcançada, em todos os detalhes pelas autoridades e, com efeito, a colaboração premiada traz elementos e informações imprescindíveis para que sejam tomadas medidas cautelares a fim de recuperar os ativos e/ou repatriar os recursos das infrações penais praticadas pela organização criminosa; - comprovação da estrutura da organização criminosa: tratando do tema autoria e participação, uma das tarefas mais difíceis das autoridades é identificar os coautores e participes da organização criminosa, bem como revelar a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas entre os seus componentes. Muitas vezes tal circunstância só é alcançada por meio da colaboração de um de seus integrantes e o resultado é bastante importante para fins de individualizar a conduta de cada qual, fator que terá repercussão na aplicação da pena. Nucci, tratando do instituto como delação premiada, aponta os seguintes pontos positivos: a) no universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria natureza da prática das condutas que rompem as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado; b) não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. (...); c) o crime praticado por traição é grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a traição com bons propósitos, agindo

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contra o delito e em favor do Estado Democrático de Direito; d) os fins podem ser justificados pelos meios, quando estes forem legalizados e inseridos, portanto, no universo jurídico; e) a ineficiência atual da delação premiada condiz com o elevado índice de impunidade reinante no mundo do crime (...); f) o Estado já está barganhando com o autor de infração penal, como se pode constatar pela transação (...); g) o benefício instituído (...), pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior, um dos fundamentos da própria aplicação da pena; h) a falsa delação, embora possa existir, deve ser severamente punida; i) a ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para delação premiada (...) 18. Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto, tratando do tema delação e da Lei 12.850/2013, ensinam que “(...) traz aspectos positivos ao garantir ao delatado maior possibilidade de questionar o depoimento do delator, ao buscar diminuir a possibilidade de erro judiciário vedando-se condenação com fundamento exclusivo em delação, ao procurar garantir a integridade física do colaborador e ao regulamentar o acordo de colaboração, o que antes inexistia”19.

É fato que, alguns crimes praticados em organização criminosa, seja pela complexidade com que são praticados ou pela dinâmica de atuação de seus participantes, acabam atingindo um número indeterminado de pessoas e há uma grande dificuldade na investigação, o que justificaria a aplicação do instituto da colaboração premiada.

7.2 – Efeitos negativos Em que pesem os efeitos positivos, não podemos fechar os olhos para os reflexos negativos gerados pela colaboração premiada. Dentre eles podemos citar: - acomodação das atividades investigativas: que poderá buscar solucionar as investigações apenas por meio da realização do acordo de colaboração e dando ênfase exclusiva ao seu conteúdo;

18 NUCCI, Guilherme de Souza. Organização criminosa. Comentários à lei 12.850, de 02 de agosto de 2013. 1. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 48. 19 DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Leis penais especiais comentadas. 2.ed. São Paulo: Saraiva. 2014. p. 1.031.

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- possibilidade de desídia nas investigações: que poderá resultar em ausência de preocupação com uma investigação mais intensa e profunda. Muitas vezes, estamos presenciando as autoridades seguindo exclusivamente uma linha fática traçada pelo colaborador, fato que poderá induzi-las a erro e levar à impunidade de vários criminosos, participantes da organização, pois forma preservados pelo agente colaborador em sua fala; - aumento da quantidade de imputações/tipificações de prática de organização criminosa: para que haja uma pressão/tendência ao acordo de colaboração premiada e a consequente facilidade nas investigações, casos típicos de associação criminosa (art. 288, CP), ou até mesmo simples de concursos de quatro ou mais pessoas para a prática de crimes, estão sendo levados à imputação de organização criminosa, desvirtuando o sentido do tipo penal e do instituto da colaboração criminosa; - no Brasil os maiores benefícios penais, em termos de colaboração premiada, estão previstos expressamente para os casos da prática de organização criminosa: no ponto, ainda que se tenha conhecimento da extensão e repercussão na tentativa de se desestruturar ou fazer cessar a atividade de uma organização criminosa, não podemos fechar os olhos para a hipótese em que, inexistente o delito de organização criminosa, mas havendo outro delito, como por exemplo, a associação criminosa, a colaboração de um integrante, salvo no caso de haver delito de lavagem de capitais, em regra, resultará apenas no benefício da diminuição de pena. Contudo, caso esse mesmo indivíduo, em conjunto com os demais, conseguisse estruturar sua atividade ilícita, a configurar uma organização criminosa, havendo colaboração premiada, teria uma maior gama de benefícios penais a indicar que, em tese, a criminalidade organizada, para fins de colaboração premiada, é mais interessante e poderia potencializar sua prática; - ausência de proporcionalidade entre a pena/punição do autor – colaborador e do partícipe (de menor importância) – não colaborador: haverá situação na qual o líder da organização criminosa, ao aderir ao acordo de colaboração premiada, receberá uma pena/punição menor do que a aplicada àquele que figurou como partícipe, de menor importância. Tal situação demonstraria a ausência de proporcionalidade do instituto e, até mesmo, no incentivo para que outros continuem atuando como líderes de organizações, sabendo que sua colaboração poderá colocá-los em situação mais privilegiada daqueles que eram apenas partícipes, no evento criminoso, ferindo a proporcionalidade e a individualização da conduta; - desinteresse em recuperar / ressocializar o criminoso: ao pactuar com o criminoso, o Estado concede-lhe benefícios, como o cumprimento de pena em regime mais brando, por exemplo, tendo em vista o preenchimento de requisi-

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Colaboração premiada e seus efeitos Everton Luiz Zanella / Rogério Cury

tos objetivos. Contudo, em determinadas situações, se desapega dos princípios e finalidade da pena que, segundo o sistema brasileira é misto, buscando a reprovação e prevenção do crime (art. 59, CP); - prisão cautelar e acordo de colaboração: o Poder Judiciário deve agir com muita atenção e cautela antes de homologar acordo de colaboração, em especial se tratando de colaborador preso. No caso, é necessário tomar medidas com o objetivo de aferir se o aderente está ou não sofrendo pressão de qualquer natureza para aceitar o acordo e, se a prisão não influenciou em sua decisão; - desrespeito à direitos básicos: alguns acordos de colaboração têm previsto cláusulas que suprimem direitos fundamentais do colaborador, como, por exemplo, lançar mão da interposição de recursos. Ora, o judiciário, ao analisar o acordo de colaboração, não poderá homologá-lo caso constate a violação de direitos básicos ou a afronta a dignidade da pessoa humana; - falta de sintonia com o acordo de leniência: muitas vezes, tratando dos mesmos fatos, há acordo de leniência (colaboração efetivada no âmbito das empresas), regido pela Lei 12.846/2013, perante a Controladoria Geral da União, que não é comunicado à esfera criminal, o que pode resultar na desnecessidade de determinadas diligências em sede de investigação ou instrução criminal, podendo ser compatibilizada, em termos de proporcionalidade, com os efeitos da colaboração no juízo criminal. Nucci, cita vários aspectos negativos da colaboração premiada, destacando-se os seguintes: (...) d) não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos; e) a existente delação premiada não serviu até o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, regra a falar mais alto no universo do delito; f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade; g) há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais20.

Em nossa opinião, mesmo diante dos aspectos negativos da colaboração premiada, há que se reconhecer a utilidade do instituto e de sua função para tentar contribuir, senão com a cessação, ao menos com a desestruturação de organizações criminosas, desde que haja o respeito a direitos e garantias fundamentais dos envolvidos, e seja observada a livre manifestação de vontade do colaborar, pois o bem maior a ser tutelado é o Estado Democrático de Direito21.

20 NUCCi, Guilherme de Souza. Op. cit, p. 48. 21 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit, p. 49.

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Democracia Económica e Responsabilidade Social nas Sociedades Tecnológicas p.263 - p.281

Nesse contexto, será importante contribuição para a justiça, desde que respeitados os direitos e garantias constitucionalmente garantidas aos envolvidos.

REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cesar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à lei de organização criminosa : lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva. 2014. CURY, Rogério; CURY, Daniela Marinho Scabbia. Estudo comparado da Lei 12.403/2011 – prisão e medidas cautelares. São Paulo: Rideel. 2011. DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Leis penais especiais comentadas. 2.ed. São Paulo: Saraiva. 2014. MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 3.ed. São Paulo: Método, 2017. MENDONÇA, Andrey Borges de. A colaboração premiada e a nova lei do crime organizado. Custos Legis. Revista Eletrônica do Ministério Público Federal, v.4, 2013. NUCCI, Guilherme de Souza. Organização criminosa. Comentários à lei 12.850, de 02 de agosto de 2013. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. SILVA, Eduardo Araújo da. Organizações criminosas. São Paulo: Atlas, 2014. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em <www.stf.jus.br> campo “notícias”. Acesso em 11/02/2018. ZANELLA, Everton Luiz. Infiltração de agentes e o combate ao crime organizado – análise do mecanismo probatório sob o enfoque da eficiência e do garantismo. Curitiba: Juruá, 2016.

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TÍTULO DEMOCRACIA ECONÓMICA E RESPONSABILIDADE SOCIAL NAS SOCIEDADES TECNOLÓGICAS DATA Fevereiro 2019 COORDENAÇÃO CIENTÍFICA Maria Miguel Carvalho Ana Flávia Messa Irene Patrícia Nohara AUTORES Ana Flávia Messa | Anabela Susana de Sousa Gonçalves | Antonio Cecilio Moreira Pires | Antônio Ernani Pedroso Calhao Carlos Eduardo Nicoletti Camillo | Everton Luiz Zanella | Fabiano Del Masso | Irene Patrícia Nohara | Joana Covelo de Abreu João Luiz Martins Esteves | Lilian Regina Moreira Gabriel Pires | Margarida Santos | Rogério Cury | Sónia Moreira | Sophie Perez Fernandes EDIÇÃO EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho APOIO JUSGOV Centro de Investigação em Justiça e Governação ISBN 978-989-54194-3-2


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